A TECNOLOGIA DA FESTA SERTANEJA UM: o "esquenta" na casa do velho Onório
Ninguém há de pensar que o Rosário de Minas Novas se dê apenas nas três jornadas consagradas há séculos como o coração da festa, nos dias 23, 24 e 25 de junho.
Quem pensa assim está errado, eu acho, e por duas razões.
Primeira razão: tais eventos de grande dimensão são idealizados e preparados durante meses pelas famílias dos festeiros de cada ano, seus parentes próximos, além de uns tantos agregados, voluntários e contratados instáveis, uns somem, outros aparecem, mas ao fim tudo se encaixa milagrosamente.
Trata-se de um empreendimento intrincado e me surpreende como sempre os núcleos sociais que o lideram dão conta do recado, com muito suor, na certa, mas com notável eficiência e comprovada qualidade caseira. Só quem está diretamente envolvido sabe como é trabalhoso e complexo organizar e executar grandes celebrações desse tipo por meio de toda uma rede de atividades comunitárias mais ou menos dirigidas, mais ou menos descentralizadas ou apenas e tão somente espontâneas.
Segunda razão: uma festa grande assim não acontece só nos dias principais, evidentemente, ninguém é besta de desperdiçar a grande ocasião e deixar de comparecer às rodas de boteco, na cidade, ampliadas por velhos amigos de volta à terrinha, de ir aos encontros de famílias reunidas após meses, anos, separadas, de pegar a estrada para ver o arraiá de terreiro ou o show de forró dançado na varanda ou no galpão do centro comunal de um povoado qualquer das cercanias.
O festival assim se estende nas jornadas, se irradia por toda a semana anterior e não acontece apenas nos dias da "apoteose", digamos assim, ao contrário do que muitos imaginam. A festa em si, do 23 ao 25, atua dessa forma como um catalisador e um multiplicador de agito social por tempo e espaço dilatados, tanto na zona urbana quanto na dos campos do entorno.
E por isso mesmo fazemos questão de dar as caras pelo menos sete dias antes do 25 para aproveitarmos, do começo ao fim do espetáculo, as chances de encontro de toda a gente.
Entre dezembro e janeiro próximos haveremos de estar de volta para seguirmos as folias de roça de Reis e São Sebastião, mas por enquanto a mexida é mais na "rua" mesmo.
Neste último junho fomos premiados porque chegamos pouco antes da ocorrência de um festejo de "esquenta" do Rosário de Minas Novas ocorrido numa comunidade que conheço bem pois é o lar de algumas de minhas velhas amigas paneleiras e bonequeiras, a comunidade de Cachoeira do Fanado, um conjunto de casas de roça dispersas por um planaltinho ao redor do "centro" onde está a casa-venda de Onório, a capela católica e a lojinha da Associação de Ceramistas, que veio por último mas já tem lá seus vinte anos ou mais.
Desde então acompanho com interesse a coisa de perto e percebo que o pequeno adensamento de população se urbanizou muito pouco, mas o ritmo das transformações tende a se acelerar desde que o asfalto passou a ligar, meses atrás, a cidade de Minas Novas ao povoado próximo de Lagoa Grande, que há muito se tornou uma cidadezinha mas agora, tudo indica, tomará impulso rumo à independência da sede municipal.
Como observo e registro há quase três décadas esse processo local de povoamento, acredito que tenha muito a demonstrar e a especular a respeito.
O fenômeno moderno se firmou muitas décadas antes do outro lado do vale, em Veredinha, Buriti, Campo Alegre, Galego, Vendinhas, entre outros, depois que esses lugarejos ganharam acesso à rede nacional de estradas asfaltadas que veio vindo do sul e, por fim, ligou a histórica Diamantina às cidades de Turmalina e Capelinha meio século atrás, na esteira das grandes plantations de eucaliptos da Siderúrgica Acesita.
Acontece que, por conta da "Festa da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas", Onório de Cachoeira do Fanado, ainda não sei bem porque, se é que existe um porque, decidiu financiar sozinho e por em prática uma grande festa para a comunidade e convidados nas dependências de sua casa-comércio-centro social.
Era o "esquenta" de que precisávamos para dar o ponta pé inicial à semana de festas, portanto, cá estamos.
O "teatro" de companheiro Onório tornou-se perfeito para uma festa desde que formou um conjunto composto de uma cozinha interna muito ampla, fechada, ligada a duas grandes varandas e outra cozinha, externa, coberta mas aberta nas bordas. O vídeo seguinte nos dá uma boa ideia das dimensões do aparato:
O homem tem hoje um belo espaço festivo, amplo como é necessário para caber um mundaréu de gente e abrigar grandes rodas de dança e filas do nóvi. Muitas casas da rota das folias da região se fazem conforme o mesmo ideal festeiro-arquitetônico.
Mas imagino que, organicamente, tudo foi crescendo devagar, com os anos, foi vivido sem pensar. As coisas aqui não são muito na verdade planejadas senão que acontecidas na medida do possível, sem que para isso, no entanto, falte de todo organização e inteligência muito próprias, conformadas pela vida de ações coletivas que produzem um palco de feitio e efeito comum embora de propriedade e destinação privadas.
Sim, sem dúvida, aquelas são as duas cozinhonas, a externa e a interna, e as amplas e arejadas varandas de Onório, figura marcante e proprietário do lugar. O edifício com certeza pertence a ele, mas foi pensado e construído, não de supetão, com a força imediatista dos grandes capitais que ele nem de longe possui, mas paulatinamente, de acordo com a disposição incerta de recursos todavia sempre em acordo com a finalidade de abrigar grandes ritos comungados.
Portanto, está provado, em Cachoeira do Fanado o particular se rende ao espírito cultural mais geral pois ainda está a ele integrado de forma orgânica e só assim é possível que a riqueza acumulada do hábil comerciante ainda encontre excedentes para gastos inerentes à engrenagem do sonho da satisfação geral.
Parece utópico? Mas, amigos, eu e meu amor estivemos lá, nós vimos e ouvimos e eu filmei, fotografei, e também bebemos, comemos, proseamos, e ela dançou em roda e eu cantei e podemos lhes assegurar: é real, não é o passado nem o futuro, aconteceu no presente vivido de verdade há poucos meses atrás ou seja, dá-se agorinha mesmo, em nosso tempo atual.
Infelizmente, fiquei tão distraído com o baile que nem questionei melhor alguns dos presentes sobre como se deu a rede de financiamento da festa mas, até onde sei, o principal do donativo, no caso, veio mesmo do velho Onório. Esse personagem notável, que ainda conheço pouco, octogenário de postura muito ereta, olhar direto e forte, fala firme porém humilde, o que atesta o caboclo que ainda é, na essência, conseguiu, na certa a custa de muito trabalho braçal e inteligência prática acima da média, elevar-se ligeiramente sobre a condição de sua vizinhança sertaneja devido às atividades da vendinha, a oferta de transporte automotivo, a pequena pecuária, o plantio e o comércio de eucaliptos, e vá lá saber o que mais. Embora eu não tenha condições, infelizmente, por enquanto, de contar sua história com pormenores, posso assegurar que não teve e não tem uma vida fácil, de hábitos leves, gastos soltos e luxos burgueses. Mas algo existe em Onório que o impulsiona a torrar um pouco de sua pequena fortuna pessoal apenas para trazer para os cafundós de Cachoeira do Fanado um pouco do brilho dos festejos do Rosário de Minas Novas de 2024 por meio de uma "boca livre", como se diz, de dar inveja aos barões da cidade. Claro, nosso herói ganha em prestígio com sua aglomeração e prestígio sempre foi uma tremenda motivação narcísica. Mas também ganha em força social, prazer de estar entre a gente, promover a desabrida felicidade geral, porque não. Enfim, ganharam o indivíduo egoísta e o sujeito comunal juntos, afinal o ser humano, felizmente, é um bicho heterogêneo e muitas vezes contraditório.
Depois do meio dia, quando nós, a comitiva dos cantadores, finalmente aparecemos para botar fogo na lenha, aconteceu nem que foi necessário pois ele já andava alto e assim permaneceu a tarde inteira, almoço servido de ponta a ponta após a farta distribuição de churrasco de primeira, pinguinha daqui, cafizin dacolá, um freezer profissional inteiro lotado de cerveja gelada até o topo o qual, bem antes do cair da noite, se encontrava totalmente vazio. Muita comida, muita bebida, tudo de graça, sem exagero mas mais do que suficiente para todos, muita gente presente, bebês, crianças, jovens, velhos, tudo junto e misturado como é bom de acontecer, tenho plena certeza de que todos saímos de estômago cheio e ânimos elevados, senão pelo álcool, pela potência do fazer coletivo.
Porque afinal deixamos de (nos) produzir em economias-sociedades desse formato?
Não sei responder, mas sei dizer que elas, apesar de tudo, ainda existem, do modo que as tenho descrito, filmado, fotografado, há décadas, ou seja, é fato por demais documentado e, claro, não apenas por mim.
Mas antes do "esquenta" de Onório ocorreu, sem querer querendo, o "esquenta do esquenta" na casa de Mestre Arthur da comunidade do Brejo.
Digo como a coisa aconteceu do modo seguinte, sem tirar nem por, na próxima postagem, basta pular para lá e, se gostar, por favor, deixe seu comentário, pois ele enriquece o texto e pode ser visualizado por qualquer leitor, além de movimentar, em tese, os deuses do algoritmo a meu favor.
Mais importante do que vivenciar tudo isso é o sentir estando lá presente....felizardo vces que viram tudo isso
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