O blog agrega fotos, vídeos e crônicas de Naldo Moreira, especialmente sobre o Vale do Jequitinhonha.
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A TECNOLOGIA DA FESTA SERTANEJA TRÊS: o Rosário de Minas Novas
Foto - cartaz de apresentação da Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas, junho de 2024
"Viva que serve, tão voluntária, a Virgem Santa, Mãe do Rosário", o cartaz, belo, bem bolado, figura o tema do ano.
Nas últimas três postagens do blog, primeiro, teorizo a respeito, em seguida, passo o testemunho escrito e apresento histórias e imagens ilustrativas daquilo que denomino "tecnologia da festa sertaneja".
Para quem se interessar, o material está nos links respectivos, abaixo, fato farto facilmente acessível e consumível, basta um clic do dedo indicador e despertam-se os deuses da ciência e arte a favor da leitora e do leitor e os deuses do algoritmo a meu favor, pelo que, de antemão, agradeço aos que acessaram e aos que acessarem:
E assim, finalmente, chegamos ao núcleo do giro da festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas: 23, 24 e 25 de junho.
Foto - o velho mestre puxa o verso e os atabaques contestam, fortes, durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas, em junho de 2024
O Rosário, conforme o modelo das folias que vagam entre a cidade e as roças há séculos, vivo dizendo, é um "festival da dádiva", semelhante àqueles há muito retratados pela história e pela antropologia indígena e camponesa em exemplos abundantes mundo afora.
A engrenagem da circulação de donativos é o cerne da "tecnologia dionisíaca" de que viemos aqui tratando, nos links citados.
Foto - mãos delicadas retiram os decalques com a ilustração da Nossa Senhora do Rosário, um a um, e os colam nos fechos das sacolinhas de doces sortidos distribuídos durante a festa da padroeira, em Minas Novas, junho de 2024
Existem as doações de cidadãos mais ou menos abastados que se destinam, sem intermediários, à promoção de várias "bocas livres" no curso das três jornadas, ou seja, nesse caso, o dom particular retorna direta e amplamente para o povo geral através de novos presentes, abertos e irrestritos.
Foto - saquinhos de doces sortidos são embalados, um a um, durante os preparativos da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
É o caso, por exemplo, de homem de negócios, pequeno empresário, comerciante ou profissional liberal, que dá dez, vinte, cinquenta quilos de arroz para compor um almoção servido na rua ou uma dezena de sacas de açúcar, sal, farinha de trigo ou barricas de cachaça que vão produzir uma montanha de brindes a distribuir, entre doces finamente embalados, baciadas sem fim de biscoitos e outras quitandas, caldos gordos de carne e mandioca às carradas, maravilhosos, salvadores das noites de intensa bebedeira, caixas, estantes repletas de garrafas de licor prontinhas para entrarem na roda em momentos especiais, etc., etc.
Foto - o nome da Juíza Maior Terezinha Barbosa está impresso no rótulo de garrafinhas de licor de figo, jenipapo e banana ofertadas a mancheias durante a festa do Rosário de Minas Novas de 2024 - patrimônio religioso e cultural do povo fanadeiro, diz a estampa
A região ainda tem uma zona rural tomada por comunidades caboclas, um sem número de famílias vivendo hoje em dia sobretudo das parcas rendas que buscam fora e distante daqui, nas capitais do Capital, ou nas franjas do Capital que já se instalou nesses "sertões remanescentes", como gosto de chamá-los.
Foto - o atabaque é artesanal afro-raiz, feito ao modo milenar para tocar forte em festa indígena e não para ser vendido ao turista sem noção do que se trata, mas o relógio atesta como os tempos mecânicos já correm nesse velho pulso que bate, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Apesar disso, da sociedade local seguir sendo essencialmente de trabalho braçal e baixa produtividade, um dos "esquentas" do Rosário de Minas Novas deste ano, que descrevo em postagem anterior, demonstra um atual estado de prosperidade capitalista que todavia ainda se constrói, em parte, conforme os velhos modelos de coesão comunitária. No post, descrevo e ilustro com imagens o festão que foi capaz de promover o Velho Onório, um dos poucos "empreendedores" nativos dessas roças do Fanado em atividade, que vive no mais como sempre viveu e no lugar onde nasceu, sertanejo.
Foto - rei e rainha, festeiros do ano de 2024, no átrio da Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, se assentam diante dos representantes do clero presentes a um dos rituais que compõem a festa
A cidade não tem, por enquanto, grandes instalações produtivas ou plantas agroindustriais, mas possui alguns comerciantes de destaque e outros "homens fortes" capazes de jogar, se não por prestígio ou por ostentação, quiçá por senso religioso, engajamento social ou liberalidade genuína, um bocadinho de seus capitais na roda viva do coletivo católico, o festival do Rosário mais destacado da região, que reúne pequenas multidões desde dentro e desde fora, movimenta a economia local de forma não desprezível e é uma fábrica de prestígio para os personagens principais promotores e atores do espetáculo. Nas grandes cidades muitas vezes não se entende o valor sócio-econômico do prestígio de um homem ou mulher diante de sua comunidade, mas a engrenagem dessas festas de giro de donativos dos sertões remanescentes ilustra muito bem como a coisa funciona na prática ainda.
Foto - o chapéu é fosco, da cor de terra, e o celular alçado, em contraste, é prata, mas quem se destaca é, de vermelho, o grupo dos "tamborzeiros" que vai conduzindo um dos tantos desfiles que cortam a cidade de cima abaixo fazendo o arrasto diário de rios de gente durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Isso posto,vale muito dar um pulo à periferia construtora da empreitada, a casa da rainha e seus arredores, e ver, e fotografar, filmar, e questionar a gente que, na medida em que se aproxima o ápice das comemorações, trabalha ainda mais duramente nas oficinas temporárias dando os arremates na apresentação dos brindes visual-comestíveis ofertados nas diversas "bocas livres".
Vídeo - na parte baixa da casa da rainha, enquanto meu amigo Fião colabora levando e elevando caixas de papelão, as mulheres se ajuntam e se ajudam na embalagem de doces e biscoitos a serem doados ao povo geral dentro de poucos dias, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
A obra feminina prepondera nos trabalhos finos de cozinhar os doces, partir as barras em iguais pedacinhos, separar as unidades, embala-las, etiquetar os sacos enfeitados e enche-los da variedade correta de guloseimas. Um a um, de mão em mão, aos milhares, brotam os futuros dons e só por isso já dá para termos uma ideia do poder deste engenho de sonhos muito orgânico.
Vídeo - na casa em frente à da rainha, todos se unem na embalagem de doces para a festa, que se aproxima, do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Há muitos homens envolvidos na trabaiêra também, claro, prestando seus serviços específicos, entre voluntários e empregados temporários remunerados com os recursos arrecadados durante meses e sobretudo na semana do evento principal.
Vídeo - trabalhadores contratados pela comunidade da festa do ano montam o palco principal do show de forró atrás da Matriz do Rosário durante os preparativos para os eventos de junho de 2024
Entre os dedicados trabalhadores aparece, nas filmagens, o Márlio, apelidado Fião, já nosso conhecido, pois o vimos neste blog, nas ilustrações da postagem do link abaixo, referente ao Rosário de 2017:
Vídeo - Fião nos esclarece sobre a complexidade do sistema de dons que reina nas folias da roça e também durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017
Na ocasião, a rainha foi uma das irmãs de Márlio, a Magda, e a família Lourenço comandou bravamente a grande empresa comunitária, desde os investimentos iniciais ao estopim do gran finale. E assim é que se "entra para a história":
Fotos - em junho de 2024, acima de alguns donativos, um cartaz de pano muito bem tecido e bordado foi dependurado na grossa parede interna da nave lateral da Matriz, e nele estão nomeados, ano a ano, a partir de 1913, todos os festeiros do Rosário de Minas Novas
Conhecendo como conhece meu modo de conhecer, Fião me convoca, no meio da tarde do dia 22 de junho de 2024, para que eu veja e, como de hábito, registre os subúrbios cooperativos da festa. Eu e um seu sobrinho, bom menino, Lucas, vamos juntos também para darmos uma força na imbalação, então, ficaremos ali por algumas horas, cada qual seu contributo possível e desejável ao esforço descomunal.
Vídeo - homem serve suco aos trabalhadores e trabalhadoras que embalam doces durante os preparativos da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Acontece que depois não cumpri exatamente com o prometido, confesso, prefiro sempre estar assim meio em busca, meio perdido, meio certo, meio vago, enquanto vou fazendo um tipo de serviço voluntário que poucos enxergam como tal: um, a captação de imagens em vídeos e fotos; dois, a fermentação de textos que, mais tarde, desdobro no "papel"; três, a contradádiva, joia burilada, a oferta de refeição de primeira, alimento espiritual grátis, repartido pouco a pouco e abertamente para o mundo todo via internet, modo próprio que arranjei de aditar alguma pérola ao manto bordado da Virgem Nossa Senhora.
Nem por isso deixo de agradecer, de coração, ao nobre companheiro pelo convite alterocentrado e a todos os obreiros presentes ao ato solidário pela chance de desfrutar o clima de fé, a companhia agradável, o acolhimento sem distinção, os regalos apetitosos...
Sigamos em frente, então, a começar com uma notade pesar: numa das noites de festa, eu e minha companheira nos assentamos, para um descanso das danças e andanças, dentro da Matriz e, observando o teto, constatamos, com tristeza, que há muito tempo não se faz um trabalho sério de restauro das pinturas de valor histórico e caráter único que ornamentam o velho edifício.
Fotos - estado lamentável das pinturas originais do teto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Pelo menos, do lado de fora, felizmente, o patrimônio cultural da Irmandade do Rosário parece estar mais preservado, com menos trincas e remendos, ao que tudo indica, e cores vivas ainda, ninguém pode negar.
Senão, vejamos no vídeo seguinte a celebração da coroação da rainha nova e do rei novo do ano próximo de 2025: a fachada da igreja reluz bem caiada, os sinos repicam à moda transmontana, revoam as usuais bandeirolas ao vento e, sob fortes holofotes, brilham gotas de chuva de papel laminado.
Com toda sua simplicidade e recursos plásticos limitados, eis a bela composição:
Vídeo - a multidão se comprime no átrio da igreja do Rosário de Minas Novas, durante a festa da padroeira, de junho de 2024, para a cerimônia de coroação do rei novo e da rainha nova
É preciso estar ligado o tempo todo, pois o espetáculo muitas vezes se apresenta em coisas pequenas e aparentemente insignificantes.
Imaginem o que pode acontecer quando se solta toda uma tribo de infantes incendiários em meio ao povo de Deus que se congrega pacificamente no largo da igreja na noite de inverno de céu limpo e temperatura agradável.
O que mais: estrepolia, algazarra, desvario, pequenas inconsequências perfeitamente aceitáveis em ambiente seguro e controlado. É liberdade vigiada mas, fazer o que, é liberdade...
A tomada seguinte flagra a gangue agindo "livremente" à vista de todos. O líder possui os artefatos bélicos necessários e está mais do que disposto a explodir o mundo de uma vez por todas. Os demais observam o drama de perto, mas nem tanto. Apesar do perigo, estão ali, mostrando coragem, ousados, aprendendo a "fazer arte" (expressão do dialeto mineirosinônima de travessura, ói qui líndu).
Vídeo - menino ensina a seus parceiros de farra como atear fogo a bombinhas durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Vídeo - como é bom ver a molecada solta que se agita e se exalta enquanto lança estalos e detona espoletas durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
As danças de "quadrilha" de crianças e adolescentes representando as várias escolas da cidade entram e saem do pátio sagrado durante a semana de agitação, procissão, reza, missa, leilão, comilança, foguetório. Cada entidade organiza seus meninos e meninas, e os pais (sobretudo, as mães) participam com grande entusiasmo. Colaboraram nos ensaios de passos da dança, na confecção dos figurinos, na armação do cenário, e agora, quando chega o grande momento, se arrebentam de ansiedade e orgulho de seus bebês todavia já bem crescidinhos.
Vídeo - duplas de crianças dançam "quadrilha' no átrio da Matriz, enchendo de orgulho as mães e pais presentes, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Um dos ritos mais concorridos, já vimos, é o da coroação dos reis novos, lembrando que ocasião propícia é sempre o último fruto, maduro, de uma árvore antiquíssima, multicentenária.
Nessa noite mesma, descendo a Rua das Paneleiras, bem ao lado da igreja, chegamos um pouco cedo demais ao forró do rei novo.
Vídeo - a missa acabou de acabar e o forró do rei novo está aos poucos esquentando, dias antes de ter início, de fato, a Festa de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
A festa, então, "começa" pra valer. De volta do leito do Fanado onde foi buscar a imagem da Santa, o povo canta e dança enquanto retorna à arena do Rosário. É uma procissão religiosa, com certeza, com roteiros, rituais e tudo, tudo dentro dos conformes, mas se desenvolve da maneira matreira, pausada, festiva e relaxada de um bloco de carnaval. Vários grupos de tamborzêrus, flautistas e cantadores repartem, recortam o fluxo da multidão que sobe a ladeirona da rua principal. De vez em quando um e outro grupo estaca e se prepara para seu pequeno show, sem lugar certo, onde dá, onde dá na têia. De imediato, forma-se uma roda, toda a gente em volta dos mestres foliões se assanha, por uns segundos, o cortejo imenso estanca e o rio de almas para. Contudo, o que menos se vê por aqui são urgências, ninguém se estressa, ninguém se apressa, ninguém empurra, ninguém reclama, todos apenas aguardamos, mantendo alta a animação, até que os nós, por si sós, se desfaçam, e a torrente desate mais uma vez...
Vídeo - o grupo cantante para, por um momento, o fluxo da multidão que sobe a ladeira para gritar "vivas, vivas, vivas" aos santos e santas, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Numa dessas pausas para formar rodas de fazer graça, surge a rainha velha, do junho que passou, e os atabaques de pronto a abraçam e a lançam no centro do palco, com honras, e daí ela exulta e responde à benvinda vênia cheia de felicidade, ela que, na festa de 2023, teve seu estrelato, do qual jamais olvidaremos.
Assistam ao vídeo de corpo inteiro e depois me digam: os rudes cavalheiros tiveram tino ou não, foram finos ou não nessa performance improvisada de amor? Não é de fato cedo demais para que a dama invulgar se recolha novamente à massa do rés-do-chão?
Eu quero vê... rainha véia pulá, rainha véia pulá, rainha véia pulá... E é só isso mesmo, mas tá ótim' uai: história vivida, história contada, história sentida.
Vídeo - a "rainha véia" surge na cena e recebe o singelo sincero tributo dos cantadores, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Vem a noite do 23, vai crescendo a apoteose, e surge então o momento ideal para prestigiar a memória de figuras de destaque, antigos líderes da irmandade poderosa que partiram em datas recentes. Assim que a foto de Adão Domingos aparece, no próximo vídeo, emoldurada por trilhas de fogos multicolores, seu rosto se ilumina por um minuto enquanto o locutor, ao microfone, desde a porta da igreja, tece loas à família, gerações de grandes festeiros, e cita nomes e exorta saudades, até que, aos poucos, a imagem do falecido se apaga, esfumaçando-se.
Afinal, não é porque festa popular é esquema de exaltados que faltará quem se comova e deixe rolar algumas lágrimas por força da tocante homenagem, não é mesmo?
Em suma, há para todo gosto e desgosto, quem não se presta a viver intensamente, melhor que se afaste.
Vídeo - a imagem de Adão Domingos, falecido recentemente, é iluminada por uma moldura de fogos em homenagem prestada no átrio da igreja durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Numa dessas organiza-se uma viagem para descer até a casa de outro notório cidadão em busca de uma relíquia qualquer, com vestes nobres, tambores, estandartes e tudo, pois se não existe um mote tradicional, basta inovar, inventar algo inesperado, está tudo bem, desde que não ofenda os cânones da cerimônia sacra. No caminho, saudando a passagem da comitiva, a senhora em destaque nas imagens seguintes tirou uma exposição de fotografias do nada e por própria contae a postou ao lado da estatueta clássica de Maria Mãe de Deus que deve ser a sua. E reparem como, com capricho, ela tratou de dar vida às grades de ferro que protegem a casa cobrindo o metal frio e banal com trepadeiras de flores de papel.
Pois é assim que no protocolo sempre igual nunca, na verdade, dá-se o mesmo. E digo, ano que vem haverá algo ainda mais inusitado para recolhermos a nosso tesouro de memórias, duvidam?
Fotos - instalação artística de iniciativa particular atesta a liberdade da participação popular durante um dos desfiles que compõem a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Erra quem pensa que o sertanejo velho, de musculatura e alma rijas há muito esculpidas com marcha forte e trabalho brutal, sob chuva, sob sol, não aguenta o tranco da toada da caixa e o sobe e desce sem fim do povão todo seu. Qual o que, tira di lêtra, sorrindo!
E erra tal e qual quem pensa que o velhote é incapaz de êxtases de concentração e sutilezas de alma de dar inveja aos yoguis hindus. Só porque o homem tem esse jeitão rude de lavrador da terra e só porque ele dá fortes vivas e grita e gira e saltita e rebola e pula alto e soberbo diante do rei de Portugal em combate espiritual quimbundo? Não, aqui não, aqui tem segredos!...
Observem então com atenção a altitude da atitude do protagonista das próximas fotos, José Geraldo, capitão do Tambor do Rosário:
Fotos - flagrantes da profundidade da alma cristã sertaneja captados no correr da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Houve um outro episódio da festa que relutei muito em contar aqui porque pode dar margem a discussões apaixonadas em tempos de pouca reflexão e muito julgamento fácil. Mas omiti-lo seria fazer o triste papel, muito comum, de jornalista partidário e mistificador. O cronista que escreve ensaios é, por seu lado, um tipo de jornalista de verdade e como tal não deve poupar o público de seu meio de comunicação de informações importantes no que concerne a alma atual do acontecimento que retrata. Vinte anos atrás ocorriam cenas muito diversas. No futuro, sabe-se lá com que iremos nos deparar? Por enquanto, obediente à ética profissional de bem informar, vou descrever o acontecido o mais objetivamente possível e exibir, sem retoques, as imagens que eu mesmo captei e que atestam o rumo da narrativa. Em seguida, cada qual, se quiser, que tire as próprias conclusões, desde que não as atribuam a mim, evidentemente.
Trata-se de uma inocente dança típica, exibida, certa noite, ao povo presente ao átrio da Matriz ainda antes do auge dos festejos, durante a semana do "esquenta". A performance, comum nas festas do interior do Brasil, consiste em enrolar e desenrolar fitas coloridas ao redor de uma estaca de lenho. Cada menino ou menina pega na ponta de sua fita e vai saltando e cantarolando enquanto roda entorno ao mastro e, aos poucos, o recobre em trançado perfeito como o de um balaio de taquara.
O vídeo a seguir mostra claramente a fineza da arte plástico-coreográfica que está em jogo na "brincadeira". Não é tarefa fácil e na certa teve que ser treinada em detalhes, afinal, muitas cordinhas pulando muitas cabeças e outras cordinhas, por cima, por baixo, por muito pouco pode degenerar numa baita embolada. É um teatro do desafio: não falhar a trança, não empacar a dança, não deixar cair o litro de cachaça.
Vídeo - dança do entrelace de fitas coloridas no mastro, durante os festejos preliminares do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Mas não, na bonita cena, a trama vai se formando impecável, embora o bastão roliço pareça pendular levemente com a força do enlace coletivo. A cada volta de corda, um balanço... estranho,... o detalhe me chama atenção,... de súbito, percebo que a madeira não tinha sido cravada no chão, como deveria, para suportar inerte o arranco das fitas entretecidas. O solo está fortemente acimentado no lugar e não é fácil cavar ali um buraco de um momento a outro. Ao invés disto (quero crer, num improviso de última hora), os organizadores do evento postam ao centro um rapazinho negro apenas para que ele mantenha firme o tronco durante a contradança. Observo... a noite é de enfeites radiantes, mas ele veste roupas simples, de cores escuras, que não compõem com o arco-íris que se arma sobre si...
E está encapuzado...
Foto - invisibilizado no centro do palco enquanto as fitas se enlaçam no mastro, durante um dos eventos preparatórios da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Quem se dignar a aprofundar o assunto, tem direito. Apenas ofereço o registro e o relato do fato cultural complexo, sempre lembrando que o juízo moral toca a superfície das coisas e nada além disso. A imagem da próxima foto a mim me transmite beleza e paz. E a vocês? Isso também? Algo mais?
Foto - concentrando o grupo para dar início à delicada performance plástico-coreográfica de enrolar as fitas coloridas no mastro, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
As ondas de frio nessas latitudes não são lá muito intensas, em geral, mas pode haver um ano em que elas se façam sentir um pouco mais devido ao clima mineiro de montanha. No último junho tivemos, talvez, uma ou outra mínima de quinze graus, ou seja, nem precisava mas a fogueira, mesmo assim, é de lei, não pode faltar. Quem vier ao largo se achegue e se aconchegue, ou seja, ao ar livre, sinta-se em casa.
Foto - fogueira acesa diante da Matriz durante um "esquenta" propriamente dito da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Curiosamente, na semana anterior à festa propriamente dita, eu descia a principal de passagem pelo largo quando deparei com dois trabalhadores da Irmandade, à luz do sol, que preparavam, para o erguimento cerimonial, dias depois, o longo mastro principal. Agora ele é de ferro, "mais definitivo". Já deram uma bela mão de "Azul D´el Rei" brilhante nele todo, e agora é só deitar o bicho na praça árida e o deixar secar.
Como que antecipando o episódio do trançado das fitas que acabo de narrar, no filme abaixo, anterior aos fatos, dá para ver como fiz com a devida lentidão uma tomada frontal da velha igreja até que fui descendo o foco da lente para encontrar o ponto do calçamento, feito de tijolos de cimento, que fica sempre aberto para que a cada Rosário ali se enterre o poste ornado do estandarte de Nossa Senhora sem para tanto dar muito trabalho aos operários do momento. Vê-se no vídeo que um ou dois desses blocos foram arrancados no exato local e o buraco resta cheio de areia o ano todo, tudo muito prático como ademais é a vida da maioria do povo econômico e trabalhador do campo e também da cidade.
No entanto, esqueceram de deixar a brecha no cimento duro onde instalar o mastrinho da dança das fitas. Oxalá alguém pense nisso para o ano próximo!
O alto falante na verdade não fala mas, berrando, canta, vejam, ouçam, o cinema está na vida em si bem adiante, não tem jeito, basta catar o que o mundo oferece "de bandeja", muito embora seja dado estar ligado se se quer meter o dardo bem na mosca, do contrário, pequenina que é e zaz-volante, ela nos escapa facilmente:
Vídeo - trabalhadores acabam de repintar o mastro principal durante o preparo da Festa do Rosário de Minas Novas , em junho de 2024, entanto o alto-falante, berrando, canta
"Sou lavadeira vim para lavar,
sou lavadeira vim para lavar,
eu vi Nossa Senhora vam' nos ajudar,
eu vi Nossa Senhora vam' nos ajudar,
sou lavadeira vivo na ilusão,
sou lavadeira vivo na ilusão,
se não tem água, não tem profissão,
se não tem água, não tem profissão".
Algo que me admira, na vida sertaneja em geral e especialmente nesses "festivais da dádiva' do Jequitinhonha que ao vivo e on line temos a sorte de acompanhar, é como o povo nativo possui seus poderes de alquimista, transforma chumbo em ouro ou "tira leite de pedra". Pegue uma melodia simples, encaixe uma dupla de tambores para a marcação, a mais básica, misture todo tipo de gente, não importa sexo, cor, idade, nível econômico ou prestígio social, mas misture mesmo e misture bem, e é certo que a receita de ingredientes de base vai produzir, por milagre, um repasto gourmet inesquecível. Se acham que estou mistificando, peço que lancem uma mirada no próximo vídeo e me digam se deu água na boca, ou não, vontade de estar ali imerso naquele movimento são, ou não.
Foto - avançando calma e prazerosamente ladeira acima e cantando "penerei fubá..." no retorno do rito da "busca da Santa" no rio Fanado durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
E se não bastasse um desfile religioso mineiro com gingado de carnaval baiano, no grupo da guia acrescentaram à fórmula uma marcação marcial europeia, a toque de flautim e de caixa de guerra, apesar de ser da rústica, de madeira, artesanal, que soa mais como um surdo. Os instrumentos, o traje militar e a formação mais rígida dessa vanguarda deveriam denotar mais disciplina, regra reta a que não se obrigam os demais, conjugados congados, negros libertos. Mas o Brasil é sempre o Brasil, uma belíssima zorra, nada mais fácil do que imprimir o lema da "ordem e progresso" ao pano da bandeira, difícil é impô-lo à realidade, assim que até os soldados de honra não andam, a bem dizer, muito "na linha" nessas paragens.
Vídeo - o carnaval santificado tem na guia a guarda marcial, imagem micro do Brasil durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Aquele que se postar de alma aberta diante do espetáculo, esteja certo, terá seu presente, será premiado. Tanta coisa eu nem preciso verter em palavra, visto que uns simples takes de fotografia que se façam podem traduzir muito mais forte.
Quando não spia só:
Foto - o poder da igreja se inclina para o poder do estado monárquico, embora o padre esteja de pé e a corte real assentada, abaixo, flagrante de um antigo código ambíguo registrado durante a Festa do Rosário da moderna Minas Novas, em junho de 2024
Foto - anjinha vestida de branco tem asas rúbias mas nem pensa em voar, apenas, descansa as penas na balaustrada secular da Igreja do Rosário de Minas Novas durante a festa da padroeira, em junho de 2024
Ao fim e ao cabo o largo desfile torna a repousar no planaltinho onde de longe se divisa a bela nave.
Foto - visão do platô onde se assenta a barroca Matriz do Rosário de Minas Novas, no segundo dia da festa da padroeira, em junho de 2024
Entupindo de gente a boca da igreja, descansam os grupos de congado e seus belíssimos estandartes. No vídeo seguinte os vemos ali parados enquanto ouvimos, cantado a viva voz, o hino da festa, que toca a semana inteira nos alto-falantes do Rosário, se infiltrando pouco a pouco e subliminarmente na mente dos fiéis. Enquanto isso, os padres vão arranjando a próxima missa, farol da seriedade.
Vídeo - cantando o hino em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas durante a festa da padroeira, em junho de 2024
A primeira saudação à nobreza da hora se faz ainda aos pés da Matriz. Eis aí de novo nosso velho conhecido, José Geraldo, o sertanejo yogui. Antes de disparar mais uns "vivas", reparem, ele puxa do peito, do fundo da alma, uma forte tragada de concentração. Está no vídeo a seguir, é só reparar no detalhe: tudo muito rápido, um segundo, um breve e forte repuxo de ar mas mais que o bastante para buscar a atitude inspirada tão necessária a todo artista, sobretudo o dito "homem de teatro". São ou febril, alegre ou triste, aprumado ou derrubado, de súbito o sujeito se faz todo ensimesmado quando o sântu báxa, pouco lhe importa a crítica social, a gente cruel que torce pelo vexame, veio preparado para tudo, incluso o rotundo fracasso, a garrafa que tomba e se estilhaça bem no meio do salão.
Vídeo - por enquanto os mouros estão, cerimonialmente, saudando os cristãos, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Ainda estamos na fase da bajulação mas em luta de mouro e cristão ninguém mete a mão, logo o tom cordial pode destrambelhar e virar empáfia, limiar de confronto. Muito além da ribalta, do palco cerimonial de reverência e cortesia onde se sustenta o estado atual tido civilizado, dormitam dissensos, rachas profundos, do "arco da velha", quem dirá que não? Equivoca-se quem se fia nas águas calmas, cálidas, de superfície, da modernidade racional.
Afinal, se olhamos para trás e contamos as muitas "quarteladas", tomadas militares do poder oficial, que marcaram a história do país, como a que impôs a República ao Segundo Império, nas barbas do século vinte, não é de se admirar que no próximo vídeo a realeza, impávida, é energicamente afrontada por um membro de sua própria guarda honorífica com a bandeira que dança feito uma lança. Assistam, "cenas fortes":
Vídeo - antes de se retirar da cena, calma e orgulhosamente, a guarda também "saúda em desafio" os imperadores durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Estamos de volta à rua ornamentada diante da casa dos festeiros do ano. De novo a cena começa nos "viva isso, viva aquilo" de praxe, que é para puxar a resposta do público e traze-lo para dentro da atuação.
No início do louvor ao rei o mago atiça, chama, bota fogo no batuque. Porém, quase no mesmo ato, demarca com a ponta do pé no chão uma fronteira imaginada adiante os companheiros de casta.
Daquioceis nu pássa seus cambada!
Mas logo se dá conta do erro de estratégia e vem pedir desculpas, tira o chapéu e o aponta para o alto, a Jesus e a todos os santos, sinal de humildade e respeito.
Ou será que requer as bençãos dos céus para o que vai fazer em seguida, isto é, outra espécie de desacato, inda mais temerário? Vira-se, vem chegando devagar pra bem pertinho da rainha até ficar ao alcance de um abraço e, desde aí, a milímetros de distância, começa a sacudir o tronco e os braços num feitiço de envolvimento muito louco, como se quisesse dissolver a linha dura e sequestrar a alma da mulher para o mesmo lugar comum sem compostura do "gentio" assistente em roda.
Não precisa se esforçar muito não, Sua Majestade também é morena da terra, vê-se, e não pode resistir ao fervor de ascendências para lá de lusitanas.
Atitude dúbia muito estranha, típica de ator genial. Primeiro acende a faísca, depois afronta seus pares, impõe limites, servindo aos nobres de guarda-costas contra a insurgência popular que ele mesmo acaba de provocar. Por fim se volta e pede benção ao poder estatuído, mas de um modo envolvente quase insolente.
Desaforado? Não, ninguém sabe o que quer esse homem. A Ordem deveria estar atenta, de qualquer forma, pois quiçá viva nesse teatrinho, aparentemente inofensivo, o germe de grandes sublevações.
Mas vão lá, assistam, mergulhem na trama, vale a pena:
Vídeo - o brincante mangangá é abusado: primeiro, afronta os seus para em seguida pedir perdão e no mesmo ato graças a Deus; ao fim encerra brilhantemente o jogo do desafio-louvação, convoca a dançar a rainha, estátua da lei, tudo ao vivo e direto da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
A madre igreja marca mais presença, naturalmente, nas missas inumeráveis celebradas, até porque nunca se viu tanta gente devota junta, é melhor aproveitar a clientela da hora. O bispo, porém, não está para amenidades, não vem a público apenas a dizer conveniências, exorta a nação católica a ter consciência de suas responsabilidades, lembra que Jesus se martirizou pelo bem da humanidade e que, tomando seu exemplo, todo mundo deve estar disposto a fazer sacrifícios.
Vídeo - missa campal durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Sei não. Não é difícil entender os temores do gran-sacerdote. Até quando aquelas e aqueles nascidos e criados segundo a cultura hedonista, de gozos imediatistas, vão estar dispostos a escutar tais histórias de um passado longínquo, que falam de submissão, sofrimento, penitência?
A velha dura ordem, todavia, deve ter favorecido certos permissos, válvulas de escape, e desde sempre, ou então não teria por tantos séculos sobrevivido.
Afinal festa é festa ué! Permitido é, por exemplo, bater tambor usando dois chapéus montados um in riba do outro ou deitar de peito no chão aos pés da corte imperial enquanto carrega no topo do coco o vidro que contém um líquido muito suspeito da cor de água barrenta. Que qu'é isso, ô gente, o santo dai-me?
Foto - em briga de mouro e cristão ninguém mete a mão, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Muitas lendas circulam pelas ruas de Minas Novas, Chapada do Norte, Jenipapo, Berilo, Virgem da Lapa e brasis além, antes e durante os barulhos de quermesse. Contam que os pretos tiram suas gingas e mandingas do secreto conteúdo das garrafadas, sei não se é verdade.
Vídeo - performance do equilíbrio da garrafa com requintes de acrobacia durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Outro exemplo de liberdade criativa: o bom amigo, também frequentador dessas páginas, Rodrigo Almeida, um dos expoentes jovens da Guarda de Honra do Rosário. Alguém mandou o homem tirar seu quepe militar para ir se infiltrar assim descaradamente nas tropas dos congados? Eu é que não fui pois não mando em ninguém que em mim não manda. Pois na próxima filmagem flagramos Rodrigo em um de seus melhores momentos durante a festa desse ano, totalmente à vontade em "campo hostil", conduzindo de forma muito natural o "pelotão inimigo" que, por sua vez, não está se importando nem um cadiquin com quebras de hierarquia e mudanças drásticas de liderança.
"Oi cadê seu lenço, Sa Rainha,
adonde está, Sa Rainha,
oi que festa boa Sa Rainha,
pra gente brincar..."
Ao longo da calçada lateral, a fila para o almoço grátis só vai engordando, assistam, o espetáculo é simples mas cheio de vitalidade:
Vídeo - Rodrigo Almeida da Guarda de Honra se infiltra e se encaixa muito naturalmente no congado durante a Festa do Rosário de Minas Novas em junho de 2024
Verso que serve para hora soa para quem merece, viceja e, logo, se desvanece, de lá pra cá, de cá pra lá. Os homens jogam... "ô menina fica alerta, aparece na janela que eu tô doido pra te ver"... e as mulheres rebatem... "a viola tá chorando, parece que tá falando que eu quero casar c' ocê"... e por aí vai, vamos...
Precisa de mais?
Vídeo - homens e mulheres trocam versos quentes saídos do forno durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Havendo quem pense que no auge da festança toda a gente sem exceção está envolvida com arruaça, vai me desculpar, mas não é bem assim não. No próximo vídeo os bravos provedores atravessam a multidão em polvorosa carregando um caldeirão enorme e ainda quente, indo derramar suas benesses em outras bandas, as quais desconheço.
Vídeo - caldeirão "pelando" circula em meio ao povo em arruaça durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Nos dias de hoje vige a lei da vigilância sanitária quando se trata de alimentar a multidão. Quem diria, mesmo nesses sertões, que ninguém se engane, os tempos são outros, tempos de muitas exigências com que os mais velhos jamais sonharam, pois antigamente em tudo o povo roceiro era mais solto e as autoridades mais ausentes ou despreocupadas, em vista que o ambiente aparentasse ser mais sujo, eram mais puras as matérias primas envolvidas, com certeza. Hoje não, quatro anos passados da infame pandemia do coronavírus, as operárias do serviço do almoção do dia 24 de junho de 2024, defronte à casa da rainha, usam máscaras, toucas e luvas e servem a comida em vasilhas de plástico, conforme o estado de coisas moderno-asséptico-descartável.
Vídeo - em 24 de junho de 2024, as operárias do povo servem o almoção, no auge da Festa do Rosário de Minas Novas, conforme as regras modernas da vigilância sanitária
Devo dizer, a antiguidade tem muita coisa boa, mas saúdo com gosto o modo como institutos tradicionais como a banda de metais, um dentre os muitos clubes de exclusividade masculina dos tempos passados, atualmente admite jovens de toda sorte e se compõe de um número expressivo de mulheres de porte e estilo os mais diversos. O próximo vídeo registra o momento em que a comitiva, arrastada pelos congados e pela banda, passa em frente ao templo do Rosário acelerando um pouco o compasso tendo em vista o clamor do almoço coletivo que a convida a estacionar na grota mais próxima para os lados do riacho Bonsucesso.
Vídeo - a banda de jovens diversificados arrasta para os lados do Bonsucesso a multidão, durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
E o dia 25 chega rápido demais e já se vê um fundo de tristeza de despedida no ânimo da velha guarda e também da rapaziada.
Ou será apenas eu mesmo a sentir demasiado por todos nós...
"o gentio, gentio,
caboclo duro sou eu,
o gentio, gentio,
ave Maria meu Deus".
Vídeo - a Festa do Rosário de Minas Novas de junho de 2024 está acabando mas ainda parece animada
Alguém aí me explica porque as classes que compõem celebração tão orgânica e democrática estão sempre prontas a desenhar limites no chão entre territórios determinados? A vida humana não seria muito mais fácil sem o risco de divisas que no mais só existem em termos imaginários?
Vídeo - traçando fronteiras imaginárias entre as classes durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
A saudação quilombola na forma de embolada agora, ao fim da festa, se dirige ao conjunto da realeza atual e da que vai tomando posse para dirigir os arranjos do ano que virá, ciente, é claro, de suas altas responsabilidades.
Vídeo - mestre José Geraldo mais uma vez venera provocativamente os reis e rainhas atuais e futuros durante a Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Por fim, batendo em retirada:
Vídeo - batendo em retirada no último dia da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Já falta pouco, a igreja do Amparo ficou para trás e mais um lance de escalada e estamos de volta à casa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas.
Vídeo - voltando para casa no último dia da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Pronto, reis e rainhas velhos e novos são acolhidos de retorno à Matriz:
Vídeo - recolhidos os reis e rainhas velhos e novos à Matriz durante os encerramentos da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Diferentemente de outras terras, nessa aqui, de diversas raízes indígenas, a liturgia eurocristã não consegue ou, talvez, não possa se dar ao luxo de ser rigorosa a ponto de impedir que os "grosseiros" atabaques e as caixas "surdas" de guerra soquem batuque ecoando forte corpo adentro da nave:
Vídeo - irrompendo igreja adentro com os tambores em alta durante os encerramentos da Festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2024
Foto - reis e rainhas velhos e novos se assentam lado a lado na nave da Matriz do Rosário durante a festa da padroeira de junho de 2024
Em trajes de gala, vamos zanzar pelas ruas pela última vez na noite de fim de festa:
Vídeo - em trajes de gala a velha e a nova realeza seguem a derradeira comitiva da Festa do Rosário de Minas Novas de junho de 2024
Finalmente e de repente, a literatura sacada do fundo do baú resolve brincar com fogo, ou seja, o tema candente do ciúme:
"toda mulher ciumenta
não lava o pé pra deitar,
ela fica na cama e não dorme
esperando o marido chegar".
Nada melhor que encerrar mais uma memorável temporada com delícias de malícia inocente.
Vídeo - cantigas de fazer gente pegar fogo, sacadas do fundo do baú, durante o desfecho final da Festa do Rosário de Minas Novas de junho de 2024
O ser humano é um bicho coitado. Poderia viver bem igualmente em sociedade, porém, com o passar dos séculos, é inevitável, acumula-se a riqueza comunal e com ela surgem e se desenvolvem desigualdades de fortuna, hierarquia, estatuto e poder, desigualdades forjadas, determinadas pelas disparidades socioeconômicas historicamente construídas e não pelas qualidades individuais atuais, transitórias e diversificadas tais como a habilidade política de um, a força atlética ou espiritual de outro, o poder comunicativo de um terceiro, a sutileza artística, a precisão artesanal, a argúcia analítica, a penetração científica e por aí vai, ou seja, a desigualdade estatuída por posições sociais fixadas historicamente nada tem a ver com a desigualdade de dons pessoais interatuantes embora o modo como está estruturada a primeira, negativa, a desigualdade fixa, pode limitar o avanço da segunda, a desigualdade dos dons, positiva, o que não é nada bom para o conjunto da comunidade.
Se isso não bastasse, as desigualdades estruturadas produzem posturas de confronto interpessoal, dominâncias mais ou menos violentadoras que geram suspeições entre os tidos inferiores e os ditos superiores, o que, por sua vez, fomenta uma atmosfera comunitária tensa de ofensas veladas, maledicências, birras, rancores, ressentimentos, vingancinhas sem fim, em suma, por todo lado medra a neurose das pequenas diferenças quando o mercado divide a comunidade humana entre explorados, exploradores, pobres, ricos, dominantes, dominados.
E quando esse rio de lama desemboca nos mares mundiais da web, a coisa fica pior ainda, é finalmente o fim do mundo.
Por essas e por outras, desde sempre e também hoje em dia, nas sociedades de classe em relativo equilíbrio acaba vigendo um clima de rancor pesado porém subterrâneo, uma guerra fria de todos contra todos que pouquíssimos admitem que ocorra, preferindo acreditar na mística da coesão social.
Resulta que, assim divididos por perigosas fronteiras físicas e imaginárias, os seres humanos se empobrecem culturalmente pois se nutrem muito menos da comunicação de talentos (dons) originários.
Por outro lado, acredito que esse ambiente tóxico não satisfaz a nenhum de nós na essência, embora reconheça que muitos parecem se regozijar no inferno. Mas sei lá eu, no fundo, todos sabemos, somos todos órfãos da desigualdade artificial e ansiamos pela refundação da sociedade humana em bases mais solidárias, mais respeitosas, logo, mais pacíficas.
É isso, enfim, nós, essas almas bestas, bem que gostaríamos de viver um mundo de relações de base igualitária, relações mais harmônicas, desinteressadas, inter-contributivas, inter-securitárias, inter-educativas, pois a luta pela sustentação das máscaras, pelo poder, quando não pela sobrevivência, essa luta eterna cansa, estressa e esgota de cima abaixo a todos indiferentemente.
Como a chamada "vida real" do mercado dos pesos determinados, dos valores fixos de correspondência, da materialidade metal-preciosa, não nos permite viver livre e igualmente desiguais assim para sempre, aconteceu que em inúmeras culturas pelo mundo afora, em eras diversas, nós inventamos, em compensação, os tais "festivais da dádiva", a perfeita válvula de escape para a existência árdua, árida, de trabalhos especializados, de mercados concretos e de capitais privados, competitivos, excludentes.
E é desse jeito que, durante alguns poucos dias suntuosos, todos fingimos desprendimento, atuamos nos palcos sociais em diversos espetáculosde generosidade e irmanação, desfalcamos o cofre com mãos abertas jamais vistas, e trabalhamos pra caramba e, quem diria, de graça, pa mó di organizar e promover a empresa coletivista do giro festeiro, óia só. Se não fosse o ideal comunitário jamais morto no seio das sociedades de classe, jamais aconteceria essa farsa redistributiva que incarna o reino fugidio do festival da dádiva.
Ou quem sabe a força de trabalho, nesse caso, esteja sendo possuída pelo espírito generoso da arte, um estado do ser altamente estimulante e produtivo que visa tudo menos o lucro, a fartura pela fartura ou a fortuna de uns às custas de outros?
Considerando que práticas comunais do tipo que descrevo, práticas de dissolução ritual dos limites do poder instituído, já se extinguiram na maioria dos lugares e estão para acabar em outros, boa coisa não nos espera na esquina da humanidade, pois se a pressão do conflito não vazar, a panela estoura. Óbvio: se a bomba póca é porque contem, inerte, a pórva. Percebam, de vez em quando algo do tipo vem de dentro e explode, numa casa de família, numa tribo ou vilarejo, numa província, dentro de um país ou entre duas ou mais nações e por aí vai...
A solução não fatal seria darmos alguns passos para trás, recuarmos como um todo ao marco zerode igualdade desigual para reativarmos o circuito dos dons, transformando assim o mercado de metais capitais numa fulia di reis fluida e infinda.
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