BUFÃO DO SERTÃO
Foto - idoso porém vigoroso e vaidoso, com sua indefectível camisa amarela aberta no peito, conforme padrão, Paulino desce a colina rumo à casa onde estacionou a comitiva da folia de São Sebastião de janeiro 2017, comunidade de Terra Cavada, município de Minas Novas
Certa feita na festa do fim da folia de Reis de Terra Cavada estava eu com os patriarcas foliões, João da Eva, Ti Zé, Dario e outros, na ribeira do centro festeiro, barulhento, iluminado.
Tínhamos esbarrado na fronteira de uma cerca onde os sons e luzes da ribalta começavam a se perder nos fundões da noite. O forró comia solta mas lá longe, quase no outro mundo já, e nós aqui, a sós com o mundão véi do sertão.
Já era muito tarde e alguns de nós, do pequeno conselho ancião, já pensávamos em dar o fora da farra...
Eu ia subir rumo às cidades em meu rumoroso automóvel, e eles, cada um a seu tempo, iam no sentido contrário mergulhar nos vales arborizados próximos buscando, a pé, a cavalo, de mula ou de moto, nas trilhas e estradas que se entrelaçam lá pra baixo, distantes, formando um labirinto intrincado e agora fechado no mais puro breu.
Eu mesmo me encontraria, até durante o dia, completamente perdido nesta teia enorme de ravinas, montes e vales infindos. Viajava assim em pensamentos quando, naquele momento mágico, cismei de romper o silêncio sem nenhum motivo mais nobre que o silêncio, colocando a meus experientes camaradas uma "questão etnocêntrica", ou seja, mais centrada em meu universo burguês e eletrodomesticado, e menos centrada na esfera deles, antiga, quase indígena, ou seja, a dos que vivem na eterna rotina de duras labutas e de enfrentamento direto das pesadas forças da natureza.
Ora ora, presente ao fato estava esse genial bufão de folia, o Paulino. Veste um chapéu e ostenta um cavanhaque únicos, que mais ninguém usa no local. Além disso tem um nariz proeminente e gordo na ponta à la Depardieu, o que lhe empresta o curioso aspecto daqueles mosqueteiros do rei que vemos no cinema. Se tomar pinga fica "descalibrado", de modo que faz muitos anos que só bebe cerveja e contanto que for Kaiser. Quebra o galho, é barata, e o essencial é ficar embriagado sim, porque não, mas pouco a pouco, jogando com o tempo, sabiamente, sempre presente ao presente, sintonizado na cena, dando seu show de patriarca sabido invés do vexame de um "porreteiro".
Quando encostam num local onde existe a "gelada" mais em conta, Paulino e Piloto, seu fiel escudeiro, vão batendo papo por horas e horas pelos cantos da festa, até formarem juntos uma só fileira de latinhas Kaiser bem característica, espécie de troféu de corrida de longa distância que reconhece-se de longe, esses códigos.
No tal dia de que falava, no limite entre a cultura e o além, entre a luz e a escuridão, os céus e a terra, o alto e o baixo, entre a tecnologia e a natureza, o mecânico e o animal, eu, muito admirado com o poder daqueles beberrões de voltarem para casa no escuro a sós em ambiente tão hostil, mui domesticamente perguntei: "então vocês vão voltar agora mesmo pra casa assim a cavalo?!"
Ai ai ai, era a dica qu'el bufon aguardava! Num pulo de gato, o espírito ladino de Paulino acordou e, ligeiro, seco, brusco, irrompeu: "não rapá, nós vai de avião!", ou seja, tum, cacetada!
Êtá Paulin, mas que patada apetitosa, meu velho! Como num raio afetivo, que atingiu na mosca, no âmago, caímos na gargalhada, e senti a distensão maior quando os outros viram que eu ria também (no caso, de mim mesmo) e em alta sintonia com todos. Estariam cismados pois há sempre uma certa reverência deles com a figurinha aqui do "doutor", barreira difícil de quebrar. Tento, mas não consigo. Adorei a jogada sarcástica! Oba eis que, por magia da verdade, nos tornamos iguais humanos! Obrigado velho amigo Paulino por me ajudar a rebaixar-me à terra, ao chão comum no mesmo nível, ou seja, meu devido lugar e também o de todos.
Foto - Paulino, o sutil bufão, "pito" apagado, pendurado no canto da boca, segue a cavalo liderando a turma da "diretoria", jovem Genilton, os irmãos João e Zézé da Eva, Batista do Brejo, falecido Ti Zé e outros, enquanto vagam de casa em casa durante a folia de São Sebastião de janeiro 2017, comunidade de Inácio Félix, município de Minas Novas
Ainda hei de tratar aqui do tema dos exímios "bufões" da folia, cada um seu estilo muito próprio. Brutalmente sutis os truques cênicos que possuem esses palhaços caipiras originais, é viver para ver! São capazes de lançar aos ares, para a galera geral, certas verdades subterrâneas e incômodas das relações humanas que, no dia a dia, na cena social "normal", ninguém bota pra fora nunca não!
Dá-se o direito de viver assim tão perigosamente porque a pose convencional de idiota nonsense talvez permita ao "paiaço", nas mais diversas culturas, nos mais diversos formatos, certas liberdades que despertam a "risaiada", a distensão grupal, lá onde e quando, em outras circunstâncias sociais menos propícias (ou no caso de algum ator menos hábil jogar o jogo mal jogado, mesmo nas melhores circunstâncias), fazer tal tipo de "gracinha" seria manobra arriscada tendo em vista a presença de homens que não aceitam piada de mal gosto, o que impregna o ambiente de uma tensão subterrânea que, de repente, por muito pouco, como uma bala, pode eclodir. Uma peça mal movida do xadrez interpessoal e isso pode dar em briga e morte, como muita vez, no Grande Sertão, aconteceu deveras.
Acontece também que o humor da multidão é volátil como o álcool e o vulgo já bem ou mal afogado nele adora ver o circo pegar fogo. Em meio à "turba obscura", como bem disse o tradutor brasileiro de Charles Baudelaire, é necessário ao mestre bufão de folia sertaneja ter uma maestria muito fina da situação teatral do momento, ser um "expert-esperto", extremamente habilidoso na condução do instante da cena social.
Sua arte consiste não na guerra, atenção!, não no projétil que fere à evidência, mas no alfinete que entra fundo na alma e que, apesar de ser, sem dúvida alguma, uma brutalidade, se sente na superfície da carne como uma "cós'guinha gostosa", para dizer a coisa em bom mineirês. Atributos de gente cirurgiã, viu, melhor não tentar imitar, não é pra qualquer um.
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