A TECNOLOGIA DA FESTA SERTANEJA: Estado de Vários
Foto - placa produzida na comunidade de Terra Cavada indica, à beira do asfalto, a entrada da estrada de terra que leva ao Sítio de Tone de João da Eva, local de grandes festas, no município de Minas Novas, em janeiro de 2023
Se eu falar em "tecnologia de festa" vão achar que estou abusando da expressão, fazendo literatura, inventando ficções. Mas, ao contrário, acredito que estou fazendo ciência da boa, pois defendo que a expressão "tecnologia de festa" é precisa e preciosa o bastante para aquilo que desejo dizer, além de traduzir uma realidade dos fatos bastante palpável, a realidade atestada por muitos viajantes e antropólogos em "culturas primitivas" que visitaram, a realidade de que uma boa parte das sociedades comunais artesanais, indígenas ou camponesas, sabe financiar, organizar e realizar festas e festivais de dimensões consideráveis e que o modo de "artefazer" tudo isto constitui um item importante do patrimônio da humanidade, sobretudo porque, em breve, não vai sobrar mais, sob o manto da vida moderna, nenhum exemplar vivo dos formatos ancestrais de viver e produzir, restando para a história apenas uns tantos vestígios do que antes foi uma grandeza enorme e o resultado patético dos grandes esforços de quem filmou, fotografou, pintou, coreografou, enfim, escreveu sobre o fenômeno em épocas diversas, com a esperança de preserva-lo de algum modo para os futuros.
Bem viveu na pele e nos sentidos quem viveu o todo pois em breve só existirão pistas vagas e migalhas ao vento.
Alguém há de se perguntar, diante das evidências: como tais sociedades antigas, ligadas à terra, limitadas por uma economia braçal de baixa produtividade, realizavam e realizam tais façanhas de arrecadação e organização de cunho comunitário?
Acontece que, apesar da aparente rusticidade, as culturas nativas seguem um padrão tecnológico longamente desenvolvido no correr das eras. Nós, desde aqui, o terceiro milênio, nós das infinitas megalópoles, da grande indústria e da ciência sapientíssima de que tanto nos orgulhamos, nós, do alto de nossa pequenina arrogância, por séculos, consideramos "atrasados" os povos tradicionais, sem nenhum fundamento científico, parece, sendo que em certos aspectos pode se dar que o novo, e não o velho, seja o verdadeiro andar-para-trás.
E é assim que a razão ocidental promove a barbárie em escala industrial: dando ares de ciência à opinião mais rasteira e degradante.
Pois eu por mim garanto de pés juntos que a folia de roça e a festa sertaneja são monumentos velhíssimos estonteantes, espécies de pirâmides vivas. É preciso educar olhos para ver e de preferência ir lá ver com os próprios sentidos como se forma e como existe a coisa gigante a partir da montagem de cada um de seus diminutos detalhes.
O triste é pensar que muitas tecnologias, muitos construções imateriais do gênero estejam sendo perdidas para sempre, nos tempos atuais, e por isso defendo que seja de extrema urgência tratar do assunto, questão de vida ou de morte.
Na minha opinião, que ainda vivo entre dois mundos, um deles em extinção, acho útil comparar o sertanejo, tradicional, artesanal, que ainda subiste, a duras penas, de um lado, e, de outro, o novo, o urbano, mecânico, capitalista e eletrodomesticado, que tende a prevalecer deixando poucos vestígios do passado.
E cada foco desse olhar lança luz sobre o outro, evidentemente.
Com toda sua tecnologia industrial, comunicacional, computacional, muito admirável, diga-se de passagem, a modernidade parece estar perdendo o rumo no que diz respeito à excelência de um festival coletivista, até porque ela pouco entende de coletivos a não ser aqueles organizados e gozados a partir de um ponto de vista privado.
Sim, grandes festas comunitárias ainda são realizadas em quase todos os centros modernos. Eu mesmo cresci e me formei num desses centros e tive a grande sorte de participar de festonas da pesada que não hei de esquecer jamais.
O que seríamos de nós sem nossos arraiás de inverno e nossos carnavais tão brasileiros, tão quentes, tão livres, tão bons? E oxalá daqui a cem anos ocorram muitos folguedos maravilhosos, adoraria participar da maioria se não tivesse, infelizmente, que morrer, pois nada melhor do que uma festança, seja quando, onde e como for.
São longos e complexos cerimoniais que duram toda uma semana ou que peregrinam, de casa em casa, de um templo a outro ou deste a um sítio natural qualquer, como a pedra longa que corta o Rio Fanado numa curva à altura de Minas Novas, lajedo onde as mulheres foram "bater roupa" por séculos, para onde desce a procissão que vai resgatar do rio a imagem da Virg' du Ruzáru, no vinte e três de junho de cada ano.
Por incrível que pareça, ainda hoje, muitos rituais seguem funcionando segundo a velha lógica despojada do mercado da dádiva.
É fato que existem patronos e líderes do grande empreendimento, eleitos a cada ano, festeiros, reis e rainhas e seus familiares e gente próxima. Se tais grupos de base centralizam recursos poupados, produtos arrecadados ou adquiridos, serviços voluntários ou contratados, a construção lenta da empreitada depende, porém, de muito mais gente da comunidade que promove o festival e também de além, considerando que os dias mesmos, oficiais, da festa, continuam a abrigar os eventos de intercâmbio de produtos e serviços que a financiam, eventos "mercantis" que não são elemento estranho ao ritual senão que unem a fé religiosa, o pragmatismo do dia a dia e também a mais pura e inocente diversão.
Porque não?
Um dos atos mais rentáveis e lúdicos desse mercado muito louco é o leilão de prendas ou de gado em prol do santo, da comunidade, da festividade.
Por fim, chega o dia nuclear do acontecimento e o mundo local, em diversas escalas, seja quem for dos arredores que quiser dar as caras, enfim, o povo geral se ajunta para realizar o folguedo em si quando, dos bastidores, ele salta para o centro, não do palco, mas da arena onde continuam todos ao nível do chão e unidos pela bandeira da reza, pelas missas na Matriz, pelos desfiles dos congados, pela poesia dos mestres, pelo arrasto da ladainha dos cantadores, pela dança aberta de roda, pelas violas e tambores, pelo consumo consagrado de pinga, vinho, licor, batida, cerveja...
Os donativos são redistribuídos ou vendidos em leilão para que se possam converter em serviços ou produtos outros, os bastantes necessários para fazer funcionar o tal engenho cultural, e os leilões se fazem conforme uma lógica nada mesquinha, nada terrena, de se multiplicar ao máximo, em prol da comunidade em festa, o valor de cada bem doado e arrematado, em suma, trata-se de uma espécie, digamos, de teatro do mercado, mas de um teatro do absurdo, a total subversão dos valores de uso e de troca para os fins de acumular e circular recursos muitos mais destinados a criar mesmo o que, ao final?
Respondo: destinados a criar mais valia humana, matérias da alma, aconteceres comuns da turba para a turba turbinados. Esse modo de arquitetura poderia ter sido o alicerce da vida em sociedade desde os tempos primordiais mas os festivais da dádiva não são erguidos em pedra, aço e cimento, ao contrário, são intensos e de passagem, voláteis como gases. E é bom que sejam assim mesmo porque, sabemos, tudo que se torna institucional, habitual, fica afetado, previsível, e tedioso.
Compreendo que o dia a dia dos seres humanos em sociedade é, sempre foi e sempre será o domínio do trabalho penoso, da moeda palpável, do mercado nu e cru, de valores concretos e supostamente imutáveis, um modo de existir pouco dado a contingências, profusões, desmesuras.
Um motivo a mais para não perdermos de vista a milenar tecnologia da festa nativa.
Levou tanto tempo para inventar e desenvolver, para que diabos agora vamos sepulta-la?
O capitalismo arrisca perecer autofagicamente na medida em que deglute a própria alma criativa e regenerativa.
Os antigos sabiam fazer muitas coisas interessantíssimas, muitas práticas, artes, ideias com que hoje somos incapazes de sonhar e de um modo sofisticado de que nem suspeitamos. Há grandes sofisticações a descobrir nos modos de ser os mais rústicos mas para se dar conta delas é preciso estar aberto, claro.
Vídeo - pequeno batuque de atabaques para ferver o sangue do povo, em 23 de junho, o primeiro dia oficial da Festa do Rosário de Minas Novas de 2024
É duro ter que dizer o óbvio: nenhum maquinário atual, que eu saiba, é capaz de reproduzir instrumento musical da excelência de um Stradivarius. E porque não é capaz com toda a alta tecnologia industrial? Porque os corpos e os espíritos modernos se esqueceram de toda uma teia de conhecimentos, relações humanas, sentidos da natureza, técnicas manuais inerentes à confecção desse artefato (artefeito) mágico: o violino.
Pois eu digo que a festa do coletivo sertanejo é todo um modo antigo de fazer do tipo Stradivarius, só que ainda vivo, embora moribundo.
Quem quiser que vá ver o trem ao vivo onde ainda ele existe e corre solto. Quem quiser que o deixe passar e perca de uma vez por todas a chance de ouro de embarcar.
Mas prometi contar em minúcia como funciona de fato a maravilhosa tecnologia sertaneja da festa e o farei, aos poucos, nas próximas postagens, com farto material probatório, se os céus me permitirem, é claro.
Se os céus continuarem permitindo a você escrever e trazer à luz essas imagens de tsnta beleza e verdade...não há de morrer nuncaaa essa cultura em que há muito que aprender....texto belo. Parabéns....
ResponderExcluirSeu texto me faz lembrar que, desde criança, sou parte integrante desse festival coletivista e vivo essa magia comunitária de forma tão natural que me esqueço da “tecnologia” por trás dela. Ao longo dos meus 50 anos, posso garantir que presenciei inúmeras manifestações dessa cultura por aqui. O que seu texto nos traz é uma lembrança do quanto nossa cultura sertaneja é rica e comunitária, especialmente quando comparada à moderna. Eu, que também vivo em dois mundos, com origens inversas às suas, sinto um orgulho imenso de pertencer primeiramente ao meu. Seu texto, com seu olhar e escrita minuciosa, nos faz sentir ainda mais orgulhosos da nossa cultura coletiva, que, ao meu ver, não está tão moribunda, apesar de ameaçada.
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