A TECNOLOGIA DA FESTA SERTANEJA DOIS: o "esquenta do esquenta" na casa de mestre Arthur
Foto - mestre Arthur comanda uma dança do nóvi na cozinha fechada, um dos cenários onde se desenrola o "esquenta" da casa de Onório, na comunidade de Cachoeira do Fanado, município de Minas Novas, em junho de 2024
Logo que chegamos do sul, alguém nos avisou pelo what's up que Onório iria dar uma festa em Cachoeira do Fanado e que convocou os cantadores da comunidade próxima do Brejo e alguns de Minas Novas para que trouxessem mais poesia e animação ao baile com seus versos de cabôcu, suas toadas de nóvi, suas canções de roda.
Combinamos com Cimar e Amanda, que moram na cidade, um encontro por volta das oito e meia da manhã no posto de gasolina e de lá partimos, um pouco tarde, talvez, para o Brejo, mas não tem nada não, esse trem de hora certa nesses territórios da larga sociabilidade não funciona, aqui se segue a regra brasileira do maiumênu (mais ou menos), ou seja, ninguém consegue ir muito direto ao ponto até porque, pelo caminho, é preciso dar trela a muitas saudações, tititis, boatos da política, reclamações de família, promessas de negócio e daí o tempo estica conforme a necessidade, é assim, fazer o que...
Eu e a companheira, como estamos de férias, vivendo na cidade grande a maior parte do ano e já um tanto esquecidos dos costumes locais, estupidamente, chegamos ao tal posto no horário combinado, o que prova o quanto a metrópole está nos tornando chatos, rígidos, neuróticos.
Mas é assim mesmo, logo logo vamos estar surfando na onda rural pois temos um pé, uma vida também aqui, na terra, conhecemos o esquema e entendemos o quanto são bons esses ventos de liberdade. Claro, só compreende o que digo quem saiba aproveitar os respiros, os impulsos na alma que nos dão os novos ares.
A noite, nas altas chapadas, é fresca, mas o dia, mesmo às portas do inverno, permanece quente pra caramba. As chuvas de janeiro há muito já se foram e as estradas estão lotadas da poeira finíssima dessas bandas, capaz de atolar um automóvel baixo nas retas sem fim das chapadas ou fazer pneu derrapar nas mais brutas ribanceiras da grota. Muitas vezes olhamos o retrovisor interno do carro e vemos que o vidro traseiro, que recebe em cheio o riacho seco que as rodas agitam sem parar, está escoando uma verdadeira cachoeirinha de pó vermelho ferrugem...
Mas...como dizem: "faz parte", isto é, no pain, no gain, quer dizer, sem sofrimento, sem merecimento.
O mérito, contudo, demora pouco pois de pronto arribamos felizes à casa de Arthur. O Brejo que dá nome à comunidade deve estar bem mais para o fundo, mais próximo ao curso do rio. Ali, em torno da morada, pouco abaixo da borda do chapadão, tudo o que se vê é floresta seca, não há o menor sinal de água ou verdor denunciando umidade, como ocorre em outras ravinas mais úmidas. O dia avança, o sol corre a ficar a pino, mas ainda o que menos se vê é pressa por parte de nosso time de vanguarda dos cantadores, sem os quais a festa de Onório não tem como de fato esquentar, afinal, nem só de pinga vive o folião, pensamos, pretensiosamente.
A família de mestre Arthur e alguns mais "chegados" já estão reunidos na cozinha, há muito esperando por nós mas, como sempre, sem o menor sinal de stress: conversam lorota, comem petisco de pele de porco frito, tomam cachaça batizada com casca e erva do mato, esboçam aqui e ali uma cantiga ou tirada humorística a ser, acaso sim, acaso não, usada mais tarde no evento do dia, alguns quilômetros mais adiante, já nas imediações do vilarejo de Lagoa Grande.
Vez por outra alguém dá o sinal de que o pessoal reunido em Onório já deve ser volumoso e que na certa estará reclamando mó di nóis já tá mei´ atrazádu. Nós outros prestamos pouca atenção aos alarmes, continuamos fingindo que nada é conosco, incluindo aquele que deu o alarme, e seguimos assim pelo menos até o meio dia, quando a força da hora corrente por si só deu um basta naquela farra, absortos que estávamos em nossa festinha particular à beira do fogão a lenha, futricando à toa, beliscando delícias caseiras, bebericando o "remédio" da erva embebida em álcool de cana, plantando poesia de graça, sem sequer saber que se trata da mais legítima literatura.
Esse baixote esperto que é mestre Arthur não parece, mas scondi ôru o tempo todo. De um momento a outro, quando menos esperamos, bate um toque na caixinha de guerra em nome da paz, abre a boca e, sorridente, lança a modinha no ambiente, nos presenteando de surpresa com uma de suas pepitas, tão singelas quanto brilhantes.
E não é que dessa vez o malandrinho resolve brindar a mim e a minha dona com um desses improvisos que são a essência da arte da cortesia e do galanteio? Ouçamos:
...o meu amigo Wesley, com o casca de bala do lado...
meu vereador Cimar, da Amanda acompanhado...
junto com a sua esposa o meu amigo Reynaldo...
Zé e Rosa, Wend'so e Nina que tava sendo esperado...
aqui o bambu rebenta, nós já fizem´ o esquenta,
agora nós vai partir pra Cachoeira do Fanado, aaai....
Tive a sorte de estar filmando bem na hora e não esperava de forma alguma que seríamos o alvo do tiro certeiro de coração.
Vídeo - Mestre Arthur nos pega de surpresa e homenageia com seus versos durante o "esquenta", no Brejo, para o "esquenta", de Onório, em Cachoeira do Fanado - Minas Novas, junho de 2024
Leia o verso, veja o vídeo com a devida atenção, leitor amigo, e depois por favor escreve alguma coisinha para nós aí no espaço dos "comentários", caramba, afinal, o projétil de Arthur atingiu também seu core ou não?
Vídeo - na cozinha grande de Onório de Cachoeira do Fanado, a festança esquenta de vez quando o grupo coral de Arthur "puxa" e o de Cimar "responde" o soneto cantado que embala a dança do nóvi - Minas Novas, em junho de 2024
Esperamos que sim. Eu e Arthur na verdade fazemos aqui uma espécie de dupla urbaneja, digamos. Por enquanto, não temos fama mas o que não nos falta é flama. O produto de nosso trabalho é lapidado não obstante gratuito e comum. E o pagamento se dá de imediato, no ato, com o valor (e o prazer) de espraiar sentimentos.
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