SANTO-REIS, O TOMBO DO FOTÓGRAFO, TI ZÉ E A SOMBRA DA MORTE

Foto - Ti Zé, cumpanhêru bão, cantador porta-firme, dá uma pausa de descanso para observar os outros foliões durante a reza cantada da folia de São Sebastião de Terra Cavada, em janeiro de 2023.

Um exemplo tirado de minha própria carne pode ilustrar esse caráter de imprevisibilidade típico de uma boa e velha folia de roça, o seguinte...

Estamos curtindo, no início da noite do primeiro de janeiro de 2023, o pouso da Folia de Reis na casa de Ti Zé, na comunidade rural de Terra Cavada.

Enquanto esperamos a bóia ficar pronta, recebemos os que chegam, proseamos daqui e dacolá, observamos o alvoroço da molecada, nos envolvemos trançando entre filas da dança do nóvi, ensaiamos entre pares umas breves modas de viola enquanto tomamos da cachacinha e do vinho uma, duas, três bicadas, enfim, tudo conforme aquela antiga tecnologia da festança sertaneja cuja receita um dia hei de relatar aqui em detalhes.

Enquanto isso a fome só faz, óbvio, aumentar, o que logo vai tornar a comida inda melhor. Logo, reconfortados pela jantarada forte, nos reunimos para declamar e escutar atentamente a extensa ladainha diante da bandeira do santo, o dito canto da folia. Ao final, a turma se dispersa, começa a se despedir dos donos da casa e se infiltrar nas trilhas da noite rumo ao pouso seguinte.

Não sem antes, porém, termos que ouvir o costumeiro sermão do líder Tone de João da Eva para que todos, sobretudo os jovens motoqueiros, se esforcem mais no sentido de respeitarem o roteiro original do ritual noturno que exige a saída e a aproximação das casas de forma quieta e respeitosa, como o fizeram os reis Baltazar, Gaspar e Melchior na visita ao pobre estábulo onde dormia o Deus Menino.

Então chega a hora da procissão partir... 

Lá se vão, um após o outro, meus amigos, mais ou menos conhecidos, de todo modo os grandes sabedores desses caminhos: velhos, jovens, homens, mulheres, crianças de todos os tamanhos.

Já disse, tinha bebido bem meus goles de pinga da boa, assim que tenho a exultante e infeliz ideia de ultrapassar pela esquerda aqueles que vão grota acima pelo velho carreiro de mula, me adiantando à subida do barranco, furando a fila até algum ponto alto em que eu imaginava poder filmar e fotografar o povo se evadindo, na cola da bandeira, desde a casa de Ti Zé.

Acontece que a luz fraca que uma lampadinha emana lá embaixo logo vem a dissolver-se no breu aqui em cima e subitamente não se vê mais o chão e o chão some, digo, o meu chão, ou melhor, ele está lá mas molhado se encontra, formando pirambeir´ abaixo um rastro de lama a partir do ponto onde existe um cano de água furado, tudo isso oculto a meus olhos mas bem debaixo de meus pés. A coisa dura o zaz de um segundo, muito mais rápido que o pensamento que vai atrás. Bato inteiro de costas na terra e escorrego por muitos metros feito uma bala de canhão em direção aos que vêm subindo de volta. Não tem problema, são ligeiros no bote, desde sempre acostumados ao terreno incerto e ao escuro, irmãos traiçoeiros. No correr desse átimo ainda consigo ouvir uns uia!!s e iiiirruuu!!s vindos da rapaziada mais desalmada... Mas logo sinto o toque de fortes mãos que tentam me catar em plena derrocada, uma na dobra da camisa, uma no braço, outra no pescoço...

Passado o susto, vendo a cena tragicômica em retrospecto, é que me dou conta da tranquilidade dos circunstantes, alguns dentre eles, alvos diretos de meu disparate. Reagiram todos com admirável graça e prontidão, com muito reflexo devido a pouco drama e rija musculatura, sem exageros de força ou sem excessos de preocupação, até com certa "crueldade educativa", digamos, ao modo da fortaleza de vida prática que todos levam no dia a dia árduo, de rotinas ingratas, sem refresco e sem frescura.

Está tudo bem aí, doutor? Quebrou? Rasgou? Esfolou? Não? 

´Ntão vam´ q´ vam´...

E assim chegamos à próxima morada, não muito distante. Sentindo meu pesar pelo escorregão, a calça toda borrada de barro, um molequinho faceiro de não mais de uns oito anos se aproxima de mim. Criança sente demais as coisas, todo mundo sabe, e essa em particular deve ter compartilhado a dor de meu vexame, percebo. Prevejo que vem para perto para me confortar. Não sei quem é esse menino mas ele mesmo parece me conhecer há séculos pois, antes até de "oi" ou "olá", dispara: 

- Liga não, besta, folia de noite é assim mesmo, tem tombo sem base, toda hora cai um! 

Tudo isto de trás de sua vasta experiência, claro, e com compaixão genuína, se vê, sob a máscara de um homem muito cortês e sério, seu pai, seu avô, um padrinho, quem sabe.


Foto - o fotógrafo e autor flagrado após o tombo, de volta a Minas Novas, em janeiro de 2023.

Cair do pedestal para o pesquisador do modo de vida do "outro" é bom por causa disto: depois de despencar bonito no chão e escorregar muitos metros de bunda pela barranca, qualquer fedelho da tribo se julga experiente e ponderado o bastante para consolar o bom burguês por conta de sua flagrante e ridícula fragilidade! 

É sem dúvida maravilhosa essa vida, minha gente, afinal, por bem ou por mal, não é vero que sempre aprendemos?

Por fim, o milagre acontece: afora um ralado no cotovelo esquerdo, de menor gravidade, as costelas traseiras um tanto doloridas, o ego ferido, apesar que de pronto consolado, do modo que se viu, continuam intactas minhas câmeras de vídeo e fotografia, as baterias quase cheias, prontas para as próximas capturas, porque, enquanto surfava a barroca, eu abracei fortemente junto ao peito minhas fiéis companheiras mecânicas como se estivesse a salvar minha própria carne não da morte mas pior, do esquecimento.

Padroeiro do seis de janeiro, dia em que eu mesmo vim ao mundo, Santo Reis dá rasteira e ele mesmo socorre, é o que se diz.

Lições da vida vivida? As melhores: deitam raízes mais fundas.

No dia seguinte mandei mensagem para o jovem amigo e mestre folião Rodrigo Almeida, de Minas Novas, que dessa vez esteve ausente do festejo em Terra Cavada, com o pé machucado em outras sublimes e perigosas andanças do lado oposto do vale do rio Fanado. Queria lhe contar os episódios do giro da riba de cá que, infelizmente, ele perdeu. Como o cabra também tinha vivido das suas na noite passada e posto que possui, ao contrário de mim, o dom da brevidade, assim resumiu, em áudio de whattzap, nossas desventuras: "ééé siô, a folia é muito boa, mas é pesada, viu?!"

Foto - Rodrigo Almeida puxa uma fileira do nóvi durante a folia de São Sebastião de Terra Cavada, em janeiro de 2023.

Ti Zé nasceu em quatro de janeiro e por pouco não acerta, como eu, o seis de Reis na mosca. Durante esta derradeira bandeira do Santo que pousa em sua casa, em princípios do ano de Nosso Senhor, ele está com os dias contados, em função de um gravíssimo quadro de doença cardíaca em seus estágios finais. Todos sabemos, ele também sabe de tudo. Contudo, não o vejo prostrado, de cama. Não. Mais calado do que de hábito sempre foi, com ar desolado, ainda está por aí, pela festa, zanzando entre nós. Vejo que se esforça para ser o notório folião de sempre, mas é difícil, tenha dó!

Foto - Ti Zé, peito aberto, cabeça ereta, olhar vago, se senta a escutar, como na primeira foto, os cantadores da folia de São Sebastião de Terra Cavada, mas comparando o sentimos bem diferente, um ano depois, em janeiro de 2024

E daí ai de nós todos! Sentimos emanar dos olhos tensos de nosso velho amigo algo que nunca vimos neles antes e que ele tenta, em vão, dissimular: a dor do medo da incerteza, a perplexidade mais funda. 

Caboclo característico, sereno duro, jamais pediu arrego para nada e para ninguém nessa vida. 

E não há de ser agora. 

Foto - sempre fiel folião, Ti Zé acompanha, à distância, seu último giro de São Sebastião por sua Terra Cavada, em janeiro de 2023.

Faleceu, por fim, no fevereiro, poucas semanas depois. Mandaram-me a notícia à jato eu já de volta à megalópole dos infernos.

Que a estrela-guia ilumine seus passos, companheiro Zé, na imensidão da noite.

Vídeo - Ti Zé conduz a bandeira à saída de sua casa durante a Folia de Reis de Terra Cavada, Minas Novas, em janeiro de 2023, ato ritual que conduziu incontáveis vezes durante a vida

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