AS AVENTURAS DO CÃO BANDIDO




Foto - Tião de João da Eva levanta leitãozinho pelo rabo, um donativo meu que seria arrematado durante leilão que compõe a folia e a festa de Reis da Comunidade de Terra Cavada, Minas Novas, em janeiro de 2023

Estou filmando um nóvi na Casa de Ti Zé naquela que foi sua última folia de Reis, na noite de primeiro de janeiro de 2023, quando estoura uma daquelas súbitas e terríveis brigas entre cães que dão de acontecer nessas festas de roça sertaneja. 

Eis o vídeo, pra quem quiser ver: 

Vídeo - briga de cães em meio à dança do nóvi durante a Folia de Reis de Terra Cavada, Minas Novas, em janeiro de 2023

Habitantes das diversas casas das redondezas, os cachorros às vezes se reúnem numa certa residência em que pousa a bandeira, já que vinham seguindo, pelas trilhas, cada qual seus pares (parentes?) humanos.

Depois da cena me aproximo de Tone de João da Eva (nome do filho, do pai e da vó), um dos cabeças da comunidade. Eu mesmo, confesso, fico meio espantado com o acontecido mas, naturalmente, não meu amigo, afinal, esse é seu mundo, está todo tranquilão, aquilo não foi nada, como de fato não foi nada dependendo de como se vê a coisa. 

Seja como for, fica bem claro que Tone enfrentou pelejas muito-muito mais brutas na vida para se assustar com uma simples rinha de cão, eis a lição.

E daí vem o melhor da história, quando Tone passa a decantar vários causos pitorescos em que os heróis são cães da região, personagens que ganharam nome e fama como se fossem gente. Ele discorre com a ênfase, a firmeza e a riqueza de detalhes que lhe são peculiares, como vemos nesse outro vídeo:

Vídeo - Tone de João da Eva, com seu estilo próprio, conta causos da Lagoa Santa, sítio de origem de sua família, no baixo Inácio Félix, durante a Folia de São Sebastião da comunidade, em janeiro de 2017

Primeiro refere que tempos atrás uma doença matou cinco dos cachorros de sua casa. Ninguém sabe até hoje do que se trata. Assim como veio, a peste negra passou.

Em seguida se lembra de como trouxe para Terra Cavada o cachorrinho atacado naquela noite e como, desde então, ele já foi muitas vezes alvo do ódio insano de outro bicho, esse mesmo que começou o estardalhaço em meio à dança do nóvi.

O nome dele é Bandídu, com acento no i.

Pois esse Bandido, emenda Tone, é notório por atacar de tocaia, sem aviso, os outros de sua espécie, quaisquer que sejam, mas sobretudo os mais frágeis, pequeninos, pois é, acima de tudo, um covarde. Bandido é branco e grande e forte e malvado mesmo, como indica cruamente o nome que o povo lhe deu. Observo porém que, apesar de tudo, não consta que tenha sido expulso da tribo por mal comportamento. É de se imaginar que até o bandido cão, como qualquer Mané, Zé ou João, deva ter seu lado bão.

Bia, irmã de Tone, mais tarde me contaria que Bandido rouba comida, esteja fria ou esteja quente, de dentro das panelas na cozinha externa, onde estão seus lavatórios, fogareiros, fogão a lenha e forno de quitandas. Segundo ela, o meliante uma vez pegou com a bocarra, pelo cabo, arrastou para o mato, abriu uma panela de pressão cheia de carne e comeu tudo sem dó nem piedade.

Foto - homens  e feras aguardam a comida ficar pronta durante o pouso, em Ti Zé, da folia de Reis de Terra Cavada, Minas Novas, janeiro de 2023

Noves fora zero, chegamos à meia verdade sertã que, todavia, é tão saborosa como a meia ficção que nela se imiscui indissoluvelmente. 

Melhor ir se acostumando, esta é a performance literária e teatral chamada contação de cáuzu. (causo, caso) 

Posso garantir, é uma arte, e como em toda arte, a excelência não é para qualquer um, inda mais quando se exige do artista a ação simultânea de tão diversas habilidades.

Causo de cachorro é tudo de bom, já ouvi centenas deles durante os êxtases das folias, frequentadas por toda sorte de gente que surge desses matos afora, todos carregados de vivências e memórias extraordinárias, sobretudo os mais velhos, os últimos legítimos sertanejos. 

Tem também causo de mula, o mais realista-fantástico, e causo de cavalo, tipicamente épico, além de causo de mutirão de roçado, de pinguço inveterado, causo de traições, rixas mortais, fantasmas, entre outros. 

Espero poder retransmitir aqui a essência dos mais preciosos causos que recolhi, ao longo dos anos, nos derradeiros sertões do Jequitinhonha.

A criatividade dessa gente para apelidos é única e inusitada. O pinscher-chihuahua que Bandido atacou se chama Peixe. Isso mesmo, no dialeto se diz: Pêxi. Na hora foi uma fuzuê danado e a dança ameaçou por uns segundos se desintegrar tamanho o berreiro do Pêxi. No entanto, o vídeo mostra, a roda do tempo logo gira e tudo volta ao "normal da folia", carece preocupar não, o mais importante entre nós aqui e agora é seguir cantando e seguir dançando, o resto se ajeita por si só. 

Tudo é assim fluidificado magnificamente nesses festejos nômades, soltos, do campo roceiro, onde nada é de se espantar, até porque todo mundo envolvido na trama já está desde pequeno acostumado com as doideiras do dia a dia mesmo. Porque deveriam estranha-las durante o giro teatral da folia, terreno fértil onde prosperam à vontade? 

Reparem, no vídeo seguinte, como o sujeito, de repente, solta, vigoroso, preciso, alto: "tô saindo ceeeeedo...." e o resto dos homens, de imediato, pegam no ar a dica preciosa, encaixam cada um sua voz, pois todos são muito treinados no compor o canto coral. Eles até sabiam a letra e a melodia da canção surgida do nada. Estavam, porém, esquecidos delas, e a memória prodigiosa do velho cantador, aliada a um senso de momento teatral excepcional, veio resgatar tudo, de surpresa, e só surpresas "pegam na veia", não é verdade? 

Notem, a coisa ressurge, de bem fundo, e atiça num segundo a memória afetiva e a tonalidade vocal dos presentes à sala. Tudo isto em meio ao caos, ao falatório e à gritaria da festa. Quem se importa? Extraordinário, vejam: 

Vídeo - sem os rompantes e desvarios de alguns, a folia seria chata demais, vê-se no pequeno exemplo extraído de um dia qualquer do giro de São Sebastião, em Inácio Félix, Minas Novas, janeiro de 2017

Adão, palhaço nato, traz no pescoço o boneco de borracha do filme "Kung Fu Panda". Parece mas não é boneco de vudu, o caboclo não tem a menor ideia do que seja o vudu. Apenas, é assim que compôs, naquela data, seu personagem, usando o que tinha à mão, um brinquedo velho e sujo de algum netinho seu, sei lá. Notem, não é nada, um boneco imundo, um assovio, uma imitação tola, o quanto basta, contudo, na folia qualquer bobagem causa efeito, circula afeto, o giro serve pra isso  mesmo.

Vídeo - Adão Pires, já falecido, faz seu costumeiro espetáculo clown durante a Folia de São Sebastião de Inácio Félix, em janeiro de 2017

Outro exemplo, os rapazes do Buriti são uns tentádus (atentados, provocadores) profissionais e um deles, para fazer a festa dos demais, quebrou o agogô de Joaquim de Virgínia, o simplório, tempos antes, numa outra folia. 

Joaquim não larga do assunto, está há semanas desconsolado e quer que todo mundo saiba da injustiça que tanta mágoa lhe dá. O fato não é novidade nenhuma. Acompanho o personagem há mais de duas décadas, nesses palcos abertos e itinerantes das folias de roça do Fanado, e vi como, passa ano, entra ano, várias gerações de capetinhas infanto-juvenis rondaram o pobre diabo. Não sossegam enquanto não o sobrecarregam de ridículo e infâmia ou o inflamam de raiva, para a alegria da "turba obscura" e para a consternação minha e de alguns dos anciãos mais compassivos.

Foto - Joaquim de Virgínia, bom menino, aguarda pacientemente sua vez para pegar o prato de almoço durante a Festa de São Sebastião de Poço   d´Água, Turmalina, em janeiro de 2017

Intervenho, dando uma falsa bronca nos algozes de Joaquim porque sei que o tolo fica em êxtase quando uma "autoridade" como eu levanta-se em sua defesa. Então ele se enche de orgulho e coragem e aponta o dedo na cara de seus detratores enquanto baba de ódio. Fingindo que teme meu poder oficial, o rapaz então jura, também em falso, que não quebrou o instrumento do maluco não, embora confesse que o tenha danificado. Enfim, que diferença faz? Nessa altura, mama mia, só nos resta rir também, afinal, o bobo da corte, um menino de setenta anos de idade, chama seu brinquedinho roto de gôgô e chega à beira das lágrimas ao sentir a falta dele em tempos de ajunto de gente e exibição de canturia. Acontece que, como todo moleque desvairado, quando fabrica ou ganha um novo instrumento de artes, chocalho ou mero reco-reco que o seja, Joaquim vai tocando e tocando o negócio até que enche o saco de todo mundo, e agindo assim acaba despertando a malícia daqueles que com ela se comprazem. E, verdade seja dita, somos muitos a gozar dessas pequenas maldades que jorram espontâneas no palco da folia. Sendo uma criança de verdade, talvez relevássemos tamanha bobice e inocência, mas sendo o velho Joaquim de Virgínia, jamais perdoaremos, inda mais que isso dá pano pra manga pois o coitado sofre enquanto se diverte e se diverte enquanto sofre e mergulha na cachaça e delira entrementes e seus nervos e afetos confusos entram em colapso até que o corpo tomba num canto qualquer, fim do espetáculo.

E é dessas entre outras bizarrices e sacanagens muito humanas de que também se nutre o teatro vivo da folia, enfim, não dá para negar, uma folia civilizada seria uma folia chata, fria, logo, folie não seria - seria, quem sabe, mais um dentre os tantos shows à distância, mui apoteóticos e super previsíveis, que abundam hoje em dia, tão ao gosto da pequena, média e grande burguesia assim como da massa da quebrada da periferia. 

O boom da ostentação é o fogo de palha das multidões desencantadas. Haja tédio embutido em portentosas produções privadas, enormidades vazias.

Já a o giro de folia de roça sertaneja é a vida humana simplesmente funcionando, cara a cara, é o mercado e o motor dos objetos e afetos comuns, só que turbinados, agitados e regurgitados intensamente pelo clima de festival da dádiva.

Comentários

  1. Amei essa leitura me levou até lá...tão bem contada de causos que foi....parabéns

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