PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA FOLIA

 

Foto - Adão Pires, de Lagoa Grande, também falecido poucos anos atrás, aparece nesta foto, durante a folia de São Sebastião de Inácio Félix de 2016, falando numa língua que tinha muito sua, como a dos bebês, que só é entendida pelos da própria família, mas era deste jeito doido muito seu mesmo que ele se destacava, divertindo aos montes toda a gente, com seu colar insano onde pendurou o boneco de borracha do astro do filme "Kung Fu Panda"

Antigamente em Minas Novas e outras cidades da região do Alto Araçuaí deve ter havido folias nas ruas ou que vinham do campo para a sede do município fazer festa, como acontecia em Cunha, na Serra do Mar de São Paulo, na década de 1940, em escala enorme, conforme viveu e descreveu Robert Shirley em "O Fim de uma Tradição":


Quando comecei a frequentar as folias do Fanado, a partir de 2003, elas já tinham diminuído muito em termos de distâncias percorridas e não tive notícias de cortejos que vinham do campo para Minas Novas ou que só circulavam nas ruas da velha cidade, apesar que devia os haver.


Foto - o jovem mestre cantador aprendiz, Cimar, à esquerda, que vive entre o campo e a cidade, aparece curtindo um "cafizin" ao lado da velha guarda da folia e quem vê hoje os patriarcas assim, "alinhados", orgulhosos de suas  "camisas de gola", novas e bem passadas, pode não perceber o quanto escondem uma vida inteira de enormes sacrifícios e os corpos talhados pela dura faina sertaneja, mano a mano com as forças pesadas da natureza - povoado de Vendinhas, município de Capelinha - em janeiro 2023

Antes que seja tarde, precisamos questionar os últimos sertanejos que ainda possuem memória viva dessa era em que uma ou outra bandeira de folia percorria os vales do Setúbal, Capivari, Fanado, Itamarandiba, Araçuaí, para por fim pousar em casas de festeiros ou em igrejas das sedes de Chapada do Norte, Minas Novas, Turmalina ou Capelinha.

Foto - a bandeira de São Sebastião, estampada, como de costume, humildemente em um só lado do pano, para ficar mais barato, se abre ao vento apensa às tradicionais fitas coloridas, conduzida pelo batedor de "caixa de guerra", o dito "caixeiro", foliões e animais da retaguarda da procissão, sendo que, reparem, o povo vem logo atrás - comunidade rural de Terra Cavada, município de Minas Novas, janeiro de 2023.

Nas antigas urbes é que na certa aconteciam os mais concorridos festivais de apoteose dos giros grandes entre roça e cidade, como os do Divino Espírito Santo de Cunha, que podiam durar um mês ou mais, em seus tempos áureos. 

R. Shirley deu testemunho sobre uma grande casa pertencente à Igreja que abrigava, em Cunha, sete dias de festas ao fim dos cortejos do Divino pelas roças. 

Foto - "serviçama do almoço" durante a folia de São Sebastião do povoado de Vendinhas, município de Capelinha, janeiro de 2023.

Há muito já não existem folias do tamanho dessas da antiga Cunha, nas serras de São Paulo. Para que se tenha ideia, durante uma semana, a casa da paróquia, no centro da cidade, mantinha dois fogões a lenha acesos e os "empregados da festa" servindo do de comer, salgado e doce, e do de beber, dia e noite, noite e dia. Ainda hoje assim ocorre no Fanado, em menor escala. Nos pousos da folia e nas festas de encerramento cozinha-se para quem der de aparecer para se empanturrar do bom e do melhor, de qualquer origem e qualquer classe que for o cidadão nobre ou não, do campo ou do asfalto, incluso os notórios bastardos, os piadistas inglórios, os irritantes e os irritáveis, até um qualquer insondável ser sinistro vindo sabe-se lá de não sei onde, sem falar no mais chato dos "bebuns" das redondezas, personagens incômodos porém indispensáveis à, digamos, "somativação" cênica do espetáculo. 

Foto - jovem Cimar segue sua ronda de aprendizado, aproveitando a bendita coincidência da congregação em Vendinhas de um número inusitado de velhos mestres "puxadores de folia" (em destaque, com os violões, Zé Pequeno, à esquerda, e Tio João de Poço d'Água, à direita), que vieram desde léguas, das grotas onde moram, incrementar notavelmente, com suas presenças mui nobres, de "poetas-performers", a foliazinha de São Sebastião promovida de improviso nesse último janeiro de 2023 e que só durou dois dias, sem sequer sair da banda sul do povoado.

E são esses mesmos "consumidores" dos dons ambíguos do ritual sacro-carnavalesco que constituem também o principal da extensa rede de "contribuintes" que "pagaram" a celebração mística de par com o folguedo, com presentes, prendas de leilões, dádivas, doações em bens, animais e dinheiro "ao vivo" ou apurado em leilões ou com sua pura presença teatral e/ou musical, porque não, "moedas" que por sua vez serão convertidas noutra série fantástica de gozos materimateriais mui adequados à movimentação do corpo e da alma da fulia (de foliefoolfoolish, louco, loucura).

Foto - bens enfeitados e doados pela comunidade dos festeiros e de anônimos da cidade de Minas Novas para serem leiloados no átrio da matriz do Rosário durante a festa da santa de junho 2022.

Aqui no Sertão do Alto Araçuaí, as festividades finais dos giros de folia hoje estão restritas a povoados que vi, ao longo dos anos, se adensarem aos poucos, como Boa Vista, Santa Rita, Macaúbas, Vendinhas, Campo Alegre, Campo Buriti, uns nascidos mais recente, outros mais antigamente. Algumas festas também são realizadas em altos centros cerimoniais mais modernos e mais ou menos destacados de comunidades de casas dispersas pelos vales próximos, como acontece no Brejo, Cachoeira, Inácio Félix ou Terra Cavada.

Foto - objeto muito estranho doado por um carpinteiro da cidade para ser leiloado durante festa dos Reis de Terra Cavada, em janeiro 2023, no salão de forró que tem, ao fundo, o campo de futebol e a igrejinha do padroeiro, os quais compõem, com a cozinha comunitária, o bar, os banheiros públicos e o estacionamento de carros, motos, cavalos e muares, o núcleo festivo-cerimonial construído nove anos atrás num planaltinho desabitado da comunidade rural, local próximo às casas, dispersas pelos vales vizinhos, da prestigiada família dos "Da Eva" (sobrenome adotado em face da notória memória de Eva, mãe de João, que hoje encarna sua fama)

Às vezes, de boca em boca, me chegam notícias da permanência das bandeiras de santo girando em comunidades mais remotas da extensa área do Alto Araçuaí, mas, ao longo dos anos, preferi manter o foco naquelas de mais fácil acesso, o que me permitia retornar de ano a ano e, desse modo, ter uma visão de longo prazo da evolução do fenômeno em diversos locais específicos, de relativo fácil acesso.

Desde meados dos anos noventa, quando comecei a visitar a região, os núcleos rurais têm se multiplicado ou ganhado corpo e comodidades atuais, com a crescente penetração das "estradas de rodagem", das redes de eletricidade e demais elementos de urbanização que tendem a concentrar as populações rurais em pontos determinados, nas altas chapadas, ou mais abaixo, a meia altura dos vales.

Foto -  dos pontos mais baixos da comunidade rural de Terra Cavada, por onde passou a folia de São Sebastião de janeiro 2023, registrei uma casa típica alcançada pelo cortejo santo, que então durou cerca de uma semana, e, ao fundo, a velha, histórica Minas Novas, entre as bordas do riacho Bonsucesso e do rio Fanado.

E as facilidades do transporte motorizado e das vias abertas aos carros e motos, por seu lado, acabaram por dar uma sobrevida ao ritual milenar, que caminhava pouco a pouco rumo à extinção, como ocorreu em tantos outros lugares onde o chamado "desenvolvimento" chegou há mais tempo, como entre São Paulo e Cunha, ou quiçá mais modernamente, como no Jequitinhonha, porém de forma mais rápida e avassaladora, desde a década de 1970, sobretudo, com a multiplicação da plantation de eucaliptos e das rodovias asfaltadas, assim como das "de terra", vicinais. 

Porém, é interessante observar o que tem acontecido desde janeiro do ano passado, no rescaldo da pandemia, após este período tenebroso em que estive ausente desses sertões. 

Rodrigo Almeida, trinta anos de idade, jovem "tamborzeiro" da Irmandade do Rosário, com quem comecei a conversar de forma virtual em fins do ano passado, já me dizia que ele e alguns "companheiros bons", formaram um grupo de cantadores na cidade de Minas Novas, ajudados por outros, das roças próximas, e que queriam girar pelo menos três dias com a Folia de Reis na área urbana, antes do seis de janeiro, a data da trindade padroeira da estrela guia, que se move pela noite, e também a do meu aniversário.

Foto - Rodrigo toca o violão, puxa o "cabôcu" enquanto Cimar aguarda para "responder" o verso refeito, remendado, "levetrasduzido", criado, recriado, mil vezes, copiado, pouco importa, o que vale é a "maçaroca", a autoria etérea, anônima e de todos, durante a Folia de São Sebastião de Terra Cavada, município de Mias Novas, em janeiro 2023.

Ao chegar ao sertão, em meados de dezembro, debaixo de uma pesada temporada de chuvas, foi que conheci Rodrigo pessoalmente e ele me inteirou dos detalhes do ocorrido, da nascente parceria entre os foliões das comunidades rurais adjacentes e os de Minas Novas. 

Em algum momento do passado, no Fanado, esse vínculo das folias entre a "grota" e a "rua" deve ter-se rompido, pelo que devemos saudar sua volta, conforme surge no palco social uma certa juventude que ainda se interessa, participa, atualizando a seu jeito a velha tradição, com destaque para aqueles que possuem os dons poéticos, musicais e performáticos necessários a quem quer assumir a grata e penosa tarefa de protagonistas nos vários palcos do complexo espetáculo.

Ao lado de Rodrigo, tem-se destacado como "puxador" esse bom e ousado companheiro, o Cimar, um ano mais velho. Cimar, a seu modo próprio, começa a assumir postura e compromisso de condutor, de "puxador de folia" e "jogador de verso", e parece estar, com seu peculiar entusiasmo, inteiro de corpo e alma nessa empreitada difícil que é manter vivo e dinâmico o longo e pesado ritual das folias de roça. 

Claro, enquanto a bandeira avança a roda do mundo também gira e nem tudo são flores. 

Rodrigo trabalha há dez anos ou mais na área de saúde pública da prefeitura de Minas Novas durante os dias úteis e em horário comercial. 

Já Cimar é eletricista, "autônomo", ainda tentando se firmar no mercado local depois de passar muitos anos "fora", o que também não lhe permite grandes folgas, apesar de ter uma agenda pouco mais flexível que a de Rodrigo e que ele aproveita da maneira que dá, cada dia um dia vivendo e promovendo o possível para si e para todos.

Outros rapazes há que tentam cooperar com as equipes de cantadores. Nesse último janeiro diversos deles estiveram presentes nas folias de Reis e São Sebastião de Terra Cavada, sustentando a voz dos grupos corais, nos dias e horários possíveis a cada qual, claro, sempre dependendo do que lhes permitem suas jornadas de serviço profissional. 

Assim que de vez em quando apareciam Jonas e Dei do povoado próximo do Buriti, herdeiros de Joaquim, esperto "puxador" que "desvirou de crente pra católico" para voltar a "brincar a folia" junto aos filhos. A mulher, convicta evangélica, teve, por uns anos, que engolir essa enorme "desfaçatez". Depois, feliz ou infelizmente, o homem tornou a se recolher.

Foto - Dei de Joaquim, de família de cantadores, oferece uma talagada de pinga ao célebre patriarca João da Eva, que abraça a "xicrinha", em postura grata e humilde, com as pontas dos dedos, como criança a pedir "bença", e vemos que os da mão direita foram cortados, verdade, pelo picador de cana, acidente, infelizmente, muito comum entre esses trabalhadores duros, reparem bem nessa cena saborosa de camaradagem entre gerações ocorrida durante as soleiras da folia de São Sebastião de janeiro 2023, na comunidade de Terra Cavada, município de Minas Novas

Foto: João da Eva, homem de fino tino social, aceita a oferta de bom grado e, apesar do intenso calor... que calor que nada! taca-se a aguardente goela abaixo num só gole, até porque a "xicrinha" acompanha o litro da cachaça distribuída por Dei, ela é onde todos vão beber e portanto não pode parar de girar também durante o giro de São Sebastião de Terra Cavada, município de Minas Novas, em janeiro 2023 

Eu acompanhei esses irmãos, desde que eram rapazes, nos giros das folias conduzidas por mestre Ti Mané entre o Buriti, Coqueiro Campo, Campo Alegre e Terra Cavada, ao lado dos outros, Demilton, o mais velho, depois Lói, Branco, Pedro e Jonas, todos cantadores natos. A próxima geração se aproxima, com Enzo, filho de Jonas, que, tudo indica, carrega na veia nova o dom de ser capaz. 

Dessas bandas também vieram o André e o Mon, esse filho de um notório "contralto", o Dé, fanfarrão de primeira, que já nos arrancou muita gargalhada nas folias de Ti Mané com seu gênio teatral, de tiradas ácidas e muita "zuada". 

Foto - André, de amarelo e Mon, de laranja, entre outros companheiros jovens de Coqueiro Campo e Buriti, vieram talvez mais pelo "gol" e pela "zuada", porém já não são os moleques imaturos que vi crescer embolados nas folias de Ti Mané, dez anos atrás, e hoje já se esforçam um pouco, pelo menos enquanto estão razoavelmente sóbrios, para colaborar, com compostura, para a longa série de cantos e danças do trajeto, leigos e sagrados, durante a folia de São Sebastião de Terra Cavada, município de Minas Novas, em janeiro de 2023

Quem estava folgando por uns dias dessa vez e pôde estar sempre presente do começo ao fim nesses últimos giros dos Santos Reis e Sebastião foi o Baltazar, vindo do Brejo, direto do outro lado do rio. 

Foto - Baltazar, com o boné do "cruel fight" (luta cruel), lenta e prazerosamente compõe um dos quartetos da dança do "nove" em que várias filas de quatro integrantes, quantas filas se juntarem naquela casa ou quintal, naquele momento do giro da bandeira, vão girando também entre si até que todas, ao menos uma vez, no vai e vem, tenham se encarado frente a frente, espécie de máquina social do reconhecimento face a face, coisa cabocla por excelência, simples mas eficiente, durante a folia de São Sebastião de Terra Cavada, em janeiro de 2023

Ele tem muitos amigos nas ribas de cá, ajeita o esqueleto em qualquer cimento frio, não incomoda ninguém, precisa de nada não. Também deve estar na casa dos trinta anos, como os futuros mestres Rodrigo e Cimar. Porém, devido aos embates que marcam na pele e na entranha todo homem do mundo, não dá pra ler na cara ou no espírito muito bem sua idade. Com seu jeito arredio, de andar pelas margens, arrastando as chinelas e se nutrindo dos prazeres de festa num ritmo lento que o leva, sempre alto, todavia longe, de repente, quando todos já o creem derrotado de cansaço e  gól, sai das sombras, empunha a caixa de guerra com galhardia, repica com precisão delicada a marcação e solta um honestíssimo canto "caboclo" de gosto sertanejo que ouviu de criança dos velhos mestres já falecidos e que, apesar da alma calejada pelas agruras do "trecho", da estrada, se mantiveram intactos e vivazes no fundo ainda mole do coração do velho rapaz.

"Exilado" na capital, o grande João Guimarães Rosa mandava cartas e mais cartas ao pai dele que morava no interior de Minas. Ele o incitava a lhe enviar todo tipo de pérolas do antigo sertão das tropas e boiadas do Cordisburgo onde ambos foram criados na infância. O sertão, o mais puro suco de suas latentes literaturas. 

Numa dessas cartas, Rosa chama a atenção do pai para o seguinte, entre aspas, olhem só que lindo! 

"Uma expressão, cantiga ou frase, legítima, original, com força de verdade e autenticidade, que vem da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme". (1947) 

Muito bem dito, como sempre com Rosa se dá. 

E é exatamente isso o que também procuro, o diamante em meio ao cascalho, apenas, minha tarefa é mais difícil que a de meu mestre em conluio com seu querido pai, pois os sertões que visito hoje são um mundo resquício, que mal sobrevive ao fim de um longo processo de dissolução cultural. A bem dizer, só teriam sobrado pra mim os frangalhos não fosse que, procurando bem, ainda se acham por aí uma ou outra dessas, ave palavra!, "pepitas". 

Continuando. Da mesma comunidade de Baltazar vieram para esta folia de Terra Cavada o seríssimo mestre Arthur, pai do Samuel e filho de Ti Nego, compondo no mínimo três gerações de foliões na família, apesar de que deva ser mais. Brás, irmão mais novo de Arthur, que costuma "responde-lo", não pôde, por seu lado, comparecer, na certa muito ocupado em obra grande em que trabalha como pedreiro.

Em 2015 registrei uma folia de São Sebastião no Brejo. Na ocasião, Samuel, mal saído da infância, dava seus primeiros passos como "rabequeiro". 

Foto - durante a folia de São Sebastião do Brejo de janeiro 2015, Samuel é um meninão que ainda gosta de segurar criança nos braços, mas já é concentrado e interessado o bastante para começar a se infiltrar, com a voz e a rebeca, nos cantos dos mais velhos

Passados sete anos, firmou-se no ofício e desenvolveu outros. No São Sebastião desse ano ainda não se aventurou a puxar o "canto da folia", é muita responsabilidade. Mas está se mostrando um ótimo "respondedor" e já arrisca alguns "caboclos".

Na foto seguinte ele, rapaz, aparece "pegando versos" prá lá de complicados, como costumam ser os de autoria do impagável Donizeti de Terra Cavada. Possui uma capacidade de concentração muito firme e tranquila. Durante essa última jornada, estivemos todos particularmente orgulhosos desse que é talvez a mais jovem de nossas promessas para o futuro de mestre folião.

Foto - durante a folia de São Sebastião de Terra Cavada, município de Minas Novas, em janeiro de 2023, diante da janela da cozinha da casa de Iuri, neto de João da Eva, Donizete, de camisa listada, batendo a caixa, depois que insisti muito com ele, pois há anos não o via compor seus versos de saborosíssimos temas roceiros, em que debocha dos pinguços notórios ou louva seus preferidos e já falecidos cachorros, Donizete resolve puxar um "caboclo" e o jovem Samuel, de preto, repicando "cuié ni prato", não se faz de rogado, vem "responder" à trova intrincada, com sua natural frieza e memória cristalina, pelo que parece assim confiante e calmo (quem sabe o rapaz tem alma de cientista ou coisa que o valha) 

Nem falo aqui de um velho conhecido cujo nome me escapa, entre tantos. Nos intervalos esse cabra sereno e muito capaz de decorar longas letras de música, virtude do menestrel, soa alto a voz e o violão enquanto lança o "modão" de letra comprida e complicada que, às vezes, a todos derrete, às vezes, inflama, "showman" solitário porém disposto a cantar no chão da fábrica, misturado ao coral do povo.

E "se bobear", ele arrisca até comandar um "nove".

Foto - aqui o menestrel, que veio com a rapaziada do Buriti, desce ao nível dos demais e se junta aos companheiros locais para formar uma fila do "nove" onde tem o Cimar à direita, e o Olímpio, de preto, à esquerda, esse último filho mais novo da numerosa família de Batista, do Brejo, um dos últimos velhos puxadores de folia regional, durante o cortejo da bandeira de São Sebastião pela comunidade de Terra Cavada, município de Minas Novas, em janeiro 2023 

E outros há, "puxando" às vezes, às vezes "ajudando", ou seja, sustentando voz no coral.

Embora a estrutura deva ser mantida a qualquer custo, senão não configura a tradição, os arranjos são livres e a ação teatral, claro, se dá da forma a mais fluida possível. Quanto mais o conjunto mestres-cantadores-povo-geral entra consoante numa atuação espontânea, mais "o trem pega".

Louvamos o fato de que essa juventude que amadureceu embolada nos giros de folia agora esteja, mesmo aos trancos e barrancos, tentando ajudar a manter a cerimônia viva, mas não podemos negar que a improvisação na formação dos grupos de cantadores nem sempre responde às exigências de fidelidade e firmeza necessárias para a condução da árdua procissão. Ti Mané, por exemplo, muito exigente, ainda contou com formações tradicionais, de cantadores experientes que o acompanhavam por todo lado, "pontas firmes" da estirpe de Dé, Ti Olimpin, Joaquim Requinteiro, Joaquim de Virgínia e Joaquim Grande, saudoso amigo, que partiu há quase uma década. 

Se fosse hoje, na certa Ti Mané não aceitaria liderar (na visão severa dele) um "bando de porreteiros sem postura". Em sua época, formavam-se os times e, se ocorriam substituições, elas deviam ser programadas, embora já houvesse algum nível de improviso em certas situações, com o uso de vozes "quebra-galhos" quando alguém "da diretoria" faltava no dia ou abusava um pouco da pinga. Na certa isso não acontecia antigamente, dos anos 1990 para trás, quando existia fartura de escudeiros de confiança, do chamado "cumpanhêru bão", um sempre pronto para "descansar" o outro, o que é fundamental pois a jornada é suada, com longas caminhadas, soleiras terríveis, alta interação social, excitação e degradação alcoólica e muitas, muitas horas de pé segurando as pontas nas danças, nos cantos leigos e nas ladainhas sagradas, no tambor, no violão, na viola. 

Foto - enquanto a criança observa tudo, o jovem "procurador", integrante da família dos festeiros do ano, conduz a bandeira de São Sebastião e é detido, à saída de um dos pousos da caravana, por outro rapaz que vem chegando à folia, neste ponto encontra o emblema santo, abaixa e nele se esfrega, sorvendo pela pele as boas emanações que brotam do pano consagrado, em janeiro de 2023, na comunidade de Terra Cavada, município de Minas Novas

De todo modo, apesar da inegável boa vontade que meus jovens amigos Rodrigo, Cimar e outros, demonstram para com as comunidades, do respeito ao legado dos mais velhos, da paixão genuína com que se dedicam à festa e da devoção ao espírito cristão que lhe dá significado e profundidade, é inegável que eles não viveram plenamente a rotina laboral e o regime religioso dos antigos. O mundo moderno os modificou, física e espiritualmente, de forma muito mais profunda e definitiva do que a maioria deles admitiria, se questionados. 

Os mais velhos, como pude constatar inúmeras vezes ao longo dos anos, acordavam de madrugada, tiravam leite das vacas, davam comida aos porcos, tocavam uma ou outra urgência do campo ou do curral e depois se liberavam para o dia e/ou a noite da folia, a que se dedicavam, no mais das vezes, com afinco e razoável disciplina, de cabo a rabo. Alguns, os últimos sertanejos originais, ainda fazem mais ou menos "dess' mem' jeitin".

Quando alguma tarefa inadiável os forçava a se afastarem por um ou dois dias, avisavam antecipadamente, se possível, seguros de que seriam substituídos, pelo período de ausência, por outro "ponta firme", de calendário e hábitos idênticos aos seus e mais ou menos da mesma competência como andarilho brincante, cantor e/ou compositor. 

Ora, o ritmo de vida e os ofícios modernos não permitem mais essas liberdades de alternância entre o tempo livre e o ocupado, antes possível ao lavrador autônomo. Assim sendo, a todos nós que estudamos, vivemos e prezamos os giros de folia de roça, preocupa o fato de que os velhos violeiros, sanfoneiros, puxadores de verso, tocadores de caixa e vozes principais dos corais, um após o outro, estejam nos deixando, um dia um, outro um outro.

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