A MUTANTE TRADICIONAL FESTA DE POÇO D'ÁGUA
FOTO - o incansável Gildásio dominou e agora exibe satisfeito um leitão de primeira aos que vão dar lance no leilão e ao público em geral do "espetáculo" - povoado de Poço d'Água, 24/12/2022
Escutei entre os mais velhos, ontem, um bochicho de que haveria ao menos um dia de giro, restrito ao povoado, da Folia de Reis em Poço d'Água, passado o "dia de ano". Mas a reação de descrença das senhoras presentes me fez pensar que se trata menos de um projeto concreto e mais de um desejo vão dos velhos foliões. De fato, não se ressuscita e se organiza uma bandeira de folia do dia para a noite.
A Festa de São Sebastião do povoado de Poço d'Água surgiu com a decadência final das folias, cerca de dez anos atrás. Teve seu auge entre 2012 e 2017, quando juntavam dezenas de animais para o leilão, entre garrotes, leitões e cabritos rudes sertanejos.
Depois da crise econômica associada à pandemia e de um ciclo de políticas públicas desastrosas, e após um ano parado, em 2020, o evento ressurgiu, abatido como a renda do povo pobre trabalhador braçal que o inventou e vinha promovendo, com relativo sucesso, como descrevi em agosto último na seguinte postagem:
Nas retas infindas do alto chapadão do Fanado, todo plantado de eucaliptos, pela margem sul, onde hoje passa o asfalto, é difícil para o estrangeiro identificar, entre centenas, a entrada de estrada de terra que leva direto à comunidade que procura no vale vizinho do rio Fanado.
Antes da pandemia, os festeiros implantavam à saída da rodovia uma faixa com o desenho do santo mártir e os dizeres "Festa de São Sebastião de Poço d'Água, datas e horas tais". Dessa vez, nem isso, e o nome mesmo do lugarejo figura apenas numa plaquinha improvisada, escrita a mão, que passa facilmente despercebida para quem vem veloz pela via asfaltada enquanto corta a paisagem monótona.
O cartaz da festa, que agora se tornou inteiramente virtual, anda viajando rapidamente pela região, de smartphone para smartphone, nos grupos de whattzap, e é assim que agora a boa nova chega até mim. Mas por duas décadas eu precisei visitar as roças ou procurar bons informantes nas feiras de sábado para me inteirar das movimentações festivas.
Nesse mais recente formato da comemoração, de cara percebi uma mudança importante: o nome do santo tinha sido excluído do anúncio. Aparentemente, a data local de São Sebastião tornou-se leiga, virou "Tradicional Festa de Poço d'Água".
Estranho porque tradicional, tradicional mesmo, era a folia que precedia o evento atual, desde muito antigamente, e que agora está extinta. Sai o nome milenar da santidade, entra o nome genérico "tradicional". Querem dizer com isso que não houve uma guinada completa para o lado "pagão" do folguedo? Algo da velha alma cristã sertaneja ainda governa o novo cenário, na retaguarda? Pode ser mas o fato é que dessa vez não houve missa com padre trazido especialmente da cidade, como era costume, e tampouco ocorreu o desfile da figura do santo em estandarte. Também não veio o congado mangangá do Galego com seus tambores para arrastar o povo alegre ao largo da igreja. Faltou até a rodinha de sanfona no boteco. Joaquim levou o instrumento mas tocou uma ou duas melodias apenas, e quase sem viço, só para constar.
VÍDEO - roda de sanfona durante a festa de Poço d'Água - 24/12/2022
Outro Joaquim, o de Virgínia, veio a pé das roças de Campo Alegre e mesmo sem o auxílio do espírito da pinga, se empolgou todo pela força infantil de sua simploriedade apenas, assim que soou a primeira nota. Achou que ia arrasar com seu novo instrumento, um agogô que ecoa alto e que tinha tudo para ficar insuportável nas mãos dele se o êxtase coletivo tivesse "pegado no tranco". Mas a roda foi tão sem graça que, no dia seguinte, nenhum dos Joaquins retornou, embora sejam dois notórios "piôis de festa".
Chuvas torrenciais surgem no horizonte a todo momento, e desabam, pesada e demoradamente. Uma delas interrompeu o leilão de gado. Era fim de tarde, quando começava a chegar o grosso da gente jovem que vem apenas para o forró noturno e não dá a mínima para o tal "tradicional" que resta do festejo sagrado ancestral.
Os "barões", entre aspas, do dinheiro, os poucos que então se reuniram capazes de dar lances importantes na disputa pelas prendas vivas do leilão, foram partindo aos poucos, com a chuvarada. E logo também fui eu, temendo que uma noite inteira de invernada brava, como as que tinham ocorrido por toda a semana, me encurralasse na grota funda.
Mas Sebastião é homem santo demais, coração que perdoa facilmente, assim que, no dia seguinte me informaram que todos os itens tinham sido arrematados depois que os céus deram uma trégua para que os mortais seguissem seus negócios mundanos.
Que pequena porém saborosa vitória da comunidade, depois desses anos difíceis! Vamos ver o trem do lado positivo, ora! Tempos melhores na certa virão!
Gildásio mais uma vez esteve presente com a tenacidade e alegria que lhe são peculiares, ou seja, o homem talhado para o ofício. No apogeu da festa, dez anos atrás, ocorreu um leilão de pelo menos trinta cabeças de gado bovino de variado tamanho e vigor. Foi também um tempo de muita chuva e o curral improvisado no terreno dos fundos do campo de futebol virou um terrível lamaçal ao ser incessantemente pisoteado pela boiada encurralada e estressada.
FOTO - cercado amplo, gado bom em quantidade para o leilão, tempos de fartura na festa de Poço d'Água - 31/12/2012
Gildásio e seu fiel escudeiro, o Vino, não se intimidaram e foram momentos inesquecíveis para quem atenta para a grandeza desses pequenos fatos, uma luta de gigantes até a última rês apartada, enlaçada, várias vezes desatolada, puxada pelo pescoço até o palco alto para ser exposta a todos, enfiada à força uma após a outra pelo funil do cercado e arriba pela rampa de tábuas.
FOTO - Gildásio conduz o gado ao palco de exposição numa época em que contratavam todo um time de leiloeiros profissionais uniformizados - Poço d'Água - 31/12/2012
Ao fim da luta, os dois heróis, a olhos vistos, estavam esgotados, mas suas almas fervilhavam de júbilo. Foram ovacionados, saudados pelos colegas, soldados fortes do esforço comunitário de base necessário para financiar a fartura, o bem geral. E todos nós os presentes, que sabemos como funciona o mecanismo da dádiva, nos nutrimos intensamente com o jogo, o desafio que fomenta a riqueza e aprofunda o contato social. Existe algo de muito comovente por detrás dessa engrenagem materialista mas para sentir é preciso entender seu funcionamento como um todo e olhar em profundidade.
Conversei ontem com Gildásio antes do almoço, depois que ele voltou de casa, de banho tomado, roupas e tênis novinhos. Tinha passado a manhã no rescaldo da briga com o gado, separando e encaminhando aos novos proprietários as cabeças arrematadas no dia anterior. E curioso é que, antes que eu tocasse no tema, ele mesmo, com toda sua aparente rusticidade, falou de forma explícita e tocante sobre a beleza do sua atuação performática.
Há um certo humanismo purista que olharia para a seguinte foto de Gildásio segurando nos braços o porco que está sendo leiloado e não vacilaria em julgar a cena com o veredito: "crueldade contra os animais".
FOTO - Gildásio exibe orgulhosamente a gorda prenda arrecadada para leilão durante a festa de Poço d'Água - 24/12/2022
Gente gente, a vida no sertão é rude e forte! Mão de pelica e braço frouxo não dão conta de dominar e expor ao público, em segurança, uma marrã de trinta quilos que se bobear arranca fora seu dedo numa só dentada! E se quer participar do festim, comer seu naco de carne assada, informamos que chuleta e bisteca não são produtinhos prontos da indústria não, vieram de um corpo inteiro que foi esquartejado com perícias que poucos possuem, sem falar que alguém, antes de mais nada, teve que espetar a besta-mercadoria no coração com a ponta da faca, tudo para satisfazer as ganas de quem se encontra no conforto que é não saber dos muitos sacrifícios necessários para se produzir as coisas boas desse mundo.
Agora encontro novamente os bravos ajudantes de ordem. Estão mais velhos, certo, mas não parecem nem um pouco menos dispostos a realizar a contento seu prestigioso trabalho bruto.
VÍDEO - Gildásio e Vino exibem a prenda e o leiloeiro grita os lances durante a festa de Poço d'Água - 24/12/2022
Os amplos currais de dez anos atrás viraram cercadinhos de pau roliço suficientes para abrigar provisoriamente o número muito reduzido de prendas, o pedestal de exibição resumiu-se a uma pequena plataforma cimentada e o time de leiloeiros profissionais está representado apenas por seu líder, agora sem uniforme, o que talvez indique que está atuando sozinho e não mais como empresa formal.
É bonito, viu?, ver o empenho de cada um, conforme suas forças e habilidades, no esforço comum para dar vida, da melhor forma possível, ao espetáculo que nos diverte a todos, os de dentro e os de fora, enquanto eleva o nome do lugar.
As cozinheiras voluntárias para o trabalhão que é fazer e distribuir comida para a multidão são as figuras tarimbadas de sempre, mas é assim mesmo, uns trabalham mais, outros menos, para se realizar a fantasia, o sonho coletivo. O quanto uma se sente gratificada ou não com a própria participação, o quanto outra se vê desmerecida por atuar assim nos bastidores do grande teatro? Não saberia dizer. Em aparência, "protagonistas" e "figurantes" me parecem, durante as festividades, todos muito satisfeitos, embora, claro, possa haver muita distância em termos humanos entre o que está aparente na cara e o que se passa mais fundo na intimidade de cada um. Hoje, com os novos tempos, encontramos mais mulheres aplicadas na "faina geral" e, por outro lado, alguns homens, poucos, dedicados a algumas das tantas tarefas que compõem o empreendimento bruto da "cumidaiada". Os tempos mudam, sempre demasiado lentamente, e daí que tampouco conheçamos onde o coletivo somado dessa merda toda um dia vá nos levar. O que foi bom "antonti" hoje pode ser ruim e o que é ruim hoje pode ser bom "amenhã".
VÍDEO - fritando o alho da feijoada na festa de Poço d'Água - 25/12/2022
O fato é que alguns desses atores de ponta se empenham tanto na faina preparatória que, no momento mesmo do pagode, se encontram cansados demais para que mantenham o espírito em alta, no ritmo dos demais, que folgaram o dia todo. Eta mundo injusto, não? Ou será que eles se sentem felizes assim mesmo, com a doce sensação do dever cumprido, mais essa vez, perante todos?
Então veio o domingo do almoço grátis no intervalo do campeonato de futebol. Fomos futicar as panelas para ver como andava o preparo da feijoada barra pesada.
VÍDEO - Zé Dias, gente finíssima, faz a cena de apresentação da feijoada durante a festa de Poço d'Água - 25/12/2022
Enquanto isso, alguém mobilizou um pai ou ele assumiu por si a obra necessária, sei lá, só sei que esse pai pegou o filho que por sua vez reuniu sua tropa de amigos e "meteram bronca", cada qual sua tarefinha especializada! Os maiores carregavam a caixa de cal. Os menores, soldados rasos, enchiam as mãos e espalhavam o talco branco em supostas linhas retas pelo solo de terra batida, seguindo o fio de pedreiro que o pai mesmo esticou, contando distâncias em passos, pra mó-de marcar os limites do campo de futebol. Tem aquele que finca o pé na marca enquanto o outro desembola o nylon. Capricha no ângulo onde botar a bola na hora de bater o escanteio!
VÍDEO - marcando o chão do campo com cal para dar início ao campeonato de futebol durante a festa de Poço d'Água - 25/12/2022
Estávamos apenas esperando o fim do desmonte do palco do forró e a marcação do chão para dar início à primeira das três partidas: duas semis e uma final, no piscar de uma tarde, pronto, uivos, abraços, goladas de cerveja, taça levantada! Céus, como é fácil obter um motivo, um roteiro, começo, meio, fim, para avivar a vida desses seres humanos! Seja o que for, tudo vale para acionar a locomotiva comunitária! E que desastre quando esse bicho se mete a viver isolado e sozinho!
VÍDEO - gol do time da casa contra o de Lagoa Grande durante a festa de Poço d'Água - 25/12/2022
Houve a era em que era tanto o gado doado para o leilão da festa de Poço d'Água que as lideranças locais se davam ao luxo de sacrificar "ao men' um pro churrasco". E então se dava o inusitado: quando a peça de carne, enorme, estava mais ou menos tostada na superfície, era exposta ao povo para que cada um tirasse seu naco. Quem não trouxesse na cintura ou não pedisse emprestado o canivete apropriado, arranjava por aí com as patroas uma faca de "quebra-gai". Esculpida a mil mãos a primeira camada, chegavam à carne crua onde já se formavam poças de plasma avermelhado. Só então gritavam pelos churrasqueiros que, cada um do seu lado, pegavam a banda sangrenta e tornavam a suspender sobre as brasas até a próxima rodada.
VÍDEO - churrasco à vontade durante a festa de Poço d'Água - 27/12/2015
Ontem não, a festa estava muito mais magra, embora siga distributiva, com mais economia e cautela, claro. Ao invés do show do churrascão e das farofas gordas em pratos bem servidos, nesse Natal tivemos uma pequena e vulgar bandeja de isopor retangular que dispunha pouco do básico, ou seja, arroz e feijoada, levemente cobertos por cabelos ralos feitos de couve crua bem fatiadinha. Em suma, requinte mesmo em hora de privações, como requinte foi, na tarde do sábado, o caldo de mandioca sublime acima de tudo, que me libertou na hora agá de uma fome cruel que estava a me matar.
VÍDEO - distribuição de feijoada durante a festa de Poço d'água - 25/12/2022
Porque ainda me surpreendo com a plasticidade dessas empreitas coletivas do sertão remanescente do Jequitinhonha? Incrível como elas seguem sendo modeladas conforme o momento histórico, e conforme a hora mesma em que tudo acontece, numa medida incrivelmente justa! As comunidades possuem uma inteligência maravilhosa na organização e reorganização desses eventos gratuitos e abertos. Arrecadam o que é possível para distribuir o que é possível e assim se resolve muito naturalmente o que se tem a dar conforme quanta gente veio receber. E como a grande maioria dos presentes é gente pobre, que tem os pés bem fincados no chão e já passou por grandes dificuldades, a festa sendo fraca ou farta, quá!, a satisfação é a mesma, quando não maior!
Recursos minguados, sombras de epidemia, fortes chuvas de invernada e Deus, quanto nos fartamos e como nos divertimos na mutante "Tradicional Festa de Poço d'Água!"
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