A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DE MINAS NOVAS

 Foto - em destaque está Joaquim Rocha, a comprovar que o povo negro protagoniza a autodenominada "Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas", em junho de 2022 (*)

Talvez algum leitor nativo de Minas Novas possa lançar luz sobre o fato das janelas da torre da igreja de Nossa Senhora do Rosário, toda feita em adobe, fruto do barroco mineiro pobre, possuírem o formato visto nas fotos que fiz durante a festa da santa desse ano e que reproduzo aqui:


          Fotos - recorte lateral da parede bem caiada de uma das torres da igreja do Rosário de Minas Novas, durante a festa da santa, em junho de 2022

É que eles têm, salvo engano, o formato típico do furo vertical que encontramos nas paredes externas de muitas fortalezas e que possui a função militar de possibilitar que um guerreiro ou soldado veja a paisagem do lado de fora num ângulo o mais aberto possível. O artifício também permite que ele dispare sua arma em muitas direções e ao mesmo tempo se proteja pois, para alvejá-lo, é preciso ser muito preciso e mirar na frestinha. 

Engenhosidades da morte matada.

A princípio não deveria haver um buraco de guarita desse tipo em nenhuma igreja, pois é um símbolo da guerra entre os homens e não da tão propalada bem aventurança de Jesus, o filho de Deus. Não deveria haver, mas a famosa, belíssima igreja de São Francisco de Ouro Preto, toda feita em pedra, fruto do barroco mineiro rico, possui duas pontas de canhões saindo de cada uma das duas torres dianteiras, como podemos observar na foto do link abaixo:

http://ilumineoprojeto.com/estrada-real-igreja-sao-francisco-de-assis-o-cartao-postal-de-ouro-preto/#jp-carousel-5525 

Na juventude eu e meu fiel companheiro Matheus Cotta gostávamos de perambular por Ouro Preto. Numa dessas, estávamos buscando, no labirinto de ruas tortuosas, o caminho para um grande e distante cruzeiro que vislumbramos, lá pras bandas de Antônio Dias, a partir da borda do largo da igreja de São Francisco. No caminho, perdidos, pedimos informação. Um sujeito de ares sombrios nos perguntou, em "mineirês", se tínhamos certeza de que queríamos ir "inté l'encima". Retrucamos: "sim, mas porque pergunta?" Ele: "porque dois homens podem ser os melhores amigos desse mundo, mas, assim que chegam no pé desse cruzeiro aí, começam a brigar feio". E reforçou, insuflando medo: "tão certo como o dia, viu?, se eu foss'ocês não ia não". Ora, fomos, e até hoje, trinta anos depois, ou mais, continuamos amigos, e nem foi preciso orar.  

Na época em que os dois templos, o pobre e o rico, foram erguidos, talvez não houvesse assim uma diferenciação tão clara entre o poder do espírito e o poder da espada, como em tese existe hoje. Meus estudos em história religiosa de Minas, infelizmente, são limitados. Não saberia dizer o significado para a Igreja desses símbolos arquitetônicos, mas o registro dos dois detalhes de influência bélica incrustados nos templos cristãos nos faz pensar, não faz? Não nos esqueçamos que os sertões brasileiros foram conquistados duramente à custa do massacre de nativos e da escravidão brutal.

Se alguém tem algo a esclarecer a respeito, resuma no campo “comentários”, por favor. Uma  vantagem do blog digital sobre o livro de papel (há também desvantagens) é que a internet permite um diálogo atual e sempre atualizável, pois o texto e as imagens ficam indefinidamente em aberto às críticas e contribuições do público-contribuinte leitor-telespectador. Trata-se de uma tecnologia plástica e democrática verdadeiramente sensacional, não acham? Então não se acanhem, postem seus comentários ou leiam e comentem também os demais, pois é assim que se faz!

Por enquanto, vou tentando compensar minha falta de conhecimento histórico com um pouco de imaginação literária, colocando a mim mesmo um rol de questões fabulosas. 

A igreja do Rosário de Minas Novas pode ter um dia servido de abrigo à população católica em ondas de ataques indígenas? O povo negro que, ao longo dos séculos, deve ter sido predominante na manutenção e frequência do edifício, já precisou, em alguma oportunidade, usa-lo como refúgio contra investidas da ordem colonial escravista? Acaso será que a forma das janelinhas encerra alguma simbologia religiosa que desconheço e nada tem a ver com referências militares? Ou tudo resultou de uma simples reforma, antiga ou recente, em que o mestre de obras resolveu usar de novo artifício de iluminação do ambiente interno sem permitir, com isso, a entrada de ladrões ou grandes danos à estrutura? Alguém aí tem algo a acrescentar a minhas fantasias? Fala, sio!

Foto - painel com a figura de Nossa Senhora do Rosário exposto em casa ao lado da igreja durante as comemorações da data da santa, em Minas Novas, junho de 2022

A festança é de "Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Minas Novas", como dizem, mas toda a gente brasileira, da mais variada cor de pele e textura de cabelo, ama celebrar o "Rosário" em incontáveis paróquias país afora, sempre com aquele misto saboroso de alegria e louvor. Senão, assistam o vídeo, que vale a pena:

Vídeo - "eu vou apagar seu fogo e acender o fogo meu", responde o coro das mulheres durante a festa de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, em  junho de 2022 

A imagem da Virgem do Rosário, porém, não tem a pele escura como a da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Caracteriza-se pelo rosário perolado que traz junto ao peito, como ressalta das fotos que tirei em Minas Novas em junho passado. Genuínos artistas são aqueles que, com muita delicadeza, montam e decoram os painéis, vejam:

Foto - condução cerimonial de um dos emblemas de Nossa Senhora do Rosário em desfile durante a festa da santa, em Minas Novas, junho de 2022

Os colares não são desenhados não, são correntes mesmo, de metal, coladas ao pano e compondo com a pintura, pingentes, bordados e brocados, em relevo, o que traz ao conjunto uma curiosa profundidade. 

Senão, reparem:

 

Fotos - representações de Nossa Senhora do Rosário expostas em destaque ou desfiladas durante a festa da santa em Minas Novas, junho de 2022

O regime de chuvas é mais regular nesses nortes de Minas do que nos estados do Nordeste, mas em determinados anos a seca pode ser severa e então o povo cristão sertanejo roga aos céus para que derramem suas águas. 

Nas roças da região eu ouvi muitos “causos” dos mais velhos a respeito de um ritual praticado em demanda ao mártir São Sebastião.

Dia vinte, a data do santo, é um marco limite da chegada do tempo chuvoso nos sertões do Jequitinhonha. Se o Santo Reis não enviou torrentes abundantes até dia seis e a estiagem se prolonga durante o mês, então, dificilmente mandará depois, pois o período mais propício às chuvas, nessas fronteiras instáveis do clima semiárido, é justamente o janeiro. Antes, a partir de outubro, e depois, até março, podem cair tempestades esparsas, mas de regra incapazes de nutrir as lavouras, sobretudo as do milho, grão essencial para a cozinha da casa sertaneja e a criação de animais.

Foto - na imagem clássica, São Sebastião, um atlético ex-soldado romano, suporta altiva e serenamente o martírio infringido por... soldados romanos

Então, quando vem o dia vinte e a seca persiste, a comunidade rural organiza um bom grupo de pessoas e caminha até o riacho mais próximo, esteja ele seco, barrento ou minando uma aguinha. Em seguida, os fiéis presentes escolhem seus calhaus, desses arredondados que abundam no leito dos córregos, pesados conforme o nível de penitência que cada um acredita merecer por suas penas ou tem a oferecer como dádiva à divindade. Depois partem, morro acima, morro abaixo, até o ponto onde, tradicionalmente, se situa um cruzeiro. Mas não pode ser cruzeiro de igreja, tem que ser em algum lugar alto e ermo, bem no meio do nada. Assim o símbolo cultural se torna, humildemente, parte da natureza que pretende beneficiar. Ao final todos rezam à larga, conversam com Deus diretamente em face do azul profundo e sob sol inclemente, mas antes disso depositam, aos pés do madeiro, os característicos seixos, polidos, esculpidos por milênios pela correnteza do fundo do vale. Assim as pedras transplantadas se diferenciam das demais, cheias de arestas, próprias dos terrenos de altitude. A ideia é trazer da fonte a benção das águas e reenvia-la como um clamor às alturas para que façam, abrindo os rios celestes, um milagre por similaridade. Bonito, não?

Foto - pedras redondas do riacho trazidas ao pé do cruzeiro na comunidade de Terra Cavada, um recurso ao poderoso santo Sebastião para que salve as lavouras em face da sequidão que perdura mesmo no auge do tempo das águas, em janeiro de 2019

Se procurarmos, encontramos, na literatura antropológica, exemplos de rituais nativos que usam procedimentos parecidos. Não nos esqueçamos que o Brasil é europeu mas também é tribal indígena e africano.

Foto - Toni de João da Eva, de Terra Cavada, muito concentrado, segura a bandeira durante o canto de louvação, na capela que construíram seis anos antes em homenagem a Santo Reis, padroeiro da comunidade, imagem de janeiro de 2020

Meu amigo Toni de João da Eva, uma vez, durante o pouso da folia de São Sebastião em sua casa, em Terra Cavada, me apontou onde se encontrava um antigo cruzeiro desses, bem isolado, pouco longe, vale abaixo. De onde mirávamos, não deu para ver o local exato do monumento porque estava envolto pelas árvores. Ele afirma que a tradição ainda sobrevive na comunidade, mas que uma nova cruz foi erguida em ponto mais acessível, ao lado da “rodagem” principal que vem da rodovia asfaltada. A nova situação contraria a regra do isolamento dos antigos cruzeiros? Sinal dos tempos? Hoje em dia, para atrair a gente aos eventos religiosos, é preciso apresentar maiores facilidades? Talvez.

Foto - novo cruzeiro da comunidade de Terra Cavada, usado durante o ritual de traslado dos seixos de riacho e orações pela vinda das chuvas, imagem de janeiro de 2019

Só sei que o desfile teatral do Rosário de Minas Novas segue mais ou menos esse mesmo roteiro do ritual dos cruzeiros da benção das águas quando, no ponto alto das celebrações, vai para baixo, até o fundo, até o rio, para "buscar a santa". Caminho inverso ao de Iemanjá?

Foto - a Guarda de Honra do Rosário, fardada de azul, guia o povo católico e estão a poucos degraus do fundo do vale do rio Fanado onde a imagem da Virgem aguarda para ser "resgatada" e levada de volta às alturas, onde está sua morada, em Minas Novas, junho de 2017 

Na verdade o cortejo festivo e sagrado, um pouco ao modo de uma folia, circula o tempo todo pelas ruas nos dias de festa, sobe e desce a ladeira incontáveis vezes, com o pretexto de buscar os painéis da santa, os personagens do rei e da rainha, os festeiros do ano ou algum outro dignatário em certa casa do centro alto ou da periferia, nas grotas, para depois leva-los em larga procissão até outro ponto definido, passando sempre pela igreja da padroeira, até porque a topografia da cidade velha tudo faz convergir para a via principal que corre na crista ascendente do vale, onde se encontra a matriz do Rosário, belamente situada numa pequeno platô que interrompe a longa subida desde o rio.

 Vídeo - o desfile passa ao lado da igreja do Rosário durante a festa da santa de junho 2022, depois de uma pausa de dois anos nas comemorações, devida às restrições sanitárias da pandemia

Estamos em casa descansando e já achamos que a fervura esfriou mas, que nada! Primeiro ouvimos, bem ao longe, o grave dos bumbos. Em seguida, quando a onda vai chegando mais perto, percebemos as caixas de guerra e os atabaques. Um pouco depois, chegam as conversas dos coros masculino e feminino e o batidão das violas. 
 
 Foto - o tocador de tuba descansa, respira, enquanto aguarda para entrar novamente em cena durante a festa do Rosário de Minas Novas, em julho de 2017
 
De repente, do nada, a coisa toda para...
 
Silêncio, escutem...
Vídeo - foram buscar festeiros ilustres na Barra do Bonsucesso mas já estão de volta, ladeira acima, em Minas Novas, durante a festa do Rosário, junho de 2022
 
Mas calma, ainda não acabou, logo renascem, um após o outro, os corais, as cordas, o batuque ou apenas os metais, os sopros, descansados, ressurgem e atacam com vigor as marchas mais famosas, outro sabor de sentimento musical.

Vídeo - banda de Minas Novas anima um dos desfiles pela cidade que marcaram a festa do Rosário de junho 2022

Mesmo quando todos se calam, continuam caminhando, muito tranquilamente, e não há uma ordem definida para qual dos grupos, que compõem a romaria, deve emudecer, qual deve voltar a cantar, dançar e batucar. Tecnologia ancestral da festa cabocla: modo inteligente de poupar energias sem nunca deixar a peteca (ou a garrafa) cair.
 
Foto - a lindeza da mistura das culturas e das raças durante os desfiles comemorativos da festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2022 
 
Tenho escrito aqui sobre a dinâmica espontânea das folias que percorrem as roças do município, e o mesmo clima solto, sem pressões, parece reinar durante as procissões festivas da maior festa da cidade. A energia de figurantes do desfile, dançantes do congado, tamborzeiros, músicos da banda, parece que nunca se esgota.

Vídeo - ressurgimento e evolução de alguns dos grupos componentes de um dos desfiles urbanos da festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2022
 
Nas duas oportunidades em que estive presente, observei que as comemorações do Rosário de Minas Novas têm um componente interessante: são muito calmas, pacíficas, e ao mesmo tempo divertidas, calorosas. Tudo ocorre na santa paz sem atropelos e confusões. O que não falta é o bom tempero entre devoção, profundidade espiritual, e efusão, agito, excitação típica de festa.  
 
"E de noite tem mais!"
 
Foto - meninos brincam de jogar capoeira no pátio da igreja do Rosário durante a festa da santa, em Minas Novas, junho de 2017
 
O ápice da representação se dá no momento mágico do recolhimento da imagem da santa no Fanado, abaixo da ponte alta que liga a estrada que vem do sul e as ruas de Minas Novas. 
 
 
 Foto - fiéis retornam do rio Fanado onde foram buscar a imagem de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017
 
Uma pequena multidão se reúne ao longo da prainha que, nesse ponto, margeia o rio onde ele se amansa. 
 
 Foto - a vanguarda do desfile, ao som dos atabaques, se aproxima do ponto em que os festeiros do ano vão recolher a imagem de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017

Um dos oficiais da Imperial Guarda de Honra, simbolicamente, "salva" das águas e entrega o ídolo ao festeiro ou à festeira do ano que se emociona ao reverencia-lo. 
 
 Foto - a festeira Magda Lourenço reverencia a imagem de Nossa Senhora do Rosário nas águas do rio Fanado, em Minas Novas, em junho de 2017
 
Tem gente que se lança na corrente, afunda até os joelhos, se arrisca a cair, se debate na lama, para estar mais próximo da Virgem no momento cênico principal da festa. 
 
Foto - fiéis e tamborzeiros adentram as águas do Fanado a caminho de "resgatar" a imagem de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017
 
Celulares mil filmam e fotografam de todos os ângulos possíveis, pois já vai longe o tempo em que raríssimas imagens eram colhidas do lindo ritual.
 
Foto - devotos de Nossa Senhora do Rosário louvam, filmam e fotografam a imagem da santa no momento em que é erguida pelas mãos do padre Carlos Magno, em Minas Novas, junho de 2017
  
Uma festa popular religiosa nada mais é do que um palco aberto onde todos encontram seu espaço de adoração e diversão. Trago minha câmera de alta definição e confesso que não é preciso grande esforço para captar belezas de tirar o fôlego.
 
 Foto - José Geraldo, capitão do Tambor do Rosário,  equilibra sobre a cabeça o litro de aguardente num transe de dar inveja aos monges budistas, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017
 
A memória dos tempos em que o catolicismo era hegemônico e, senão na prática, pelo menos na lei, se confundiam o poder da igreja e o poder do rei, de algum modo, ainda se encontra enraizada?

Foto - a "rainha" Helena cumprimenta seus "súditos", com as bençãos do apostolado, durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2022

Quem pode fazer, comprar ou alugar uma veste suntuosa pode também ter seu dia de glória durante o desfile dos estandartes.
 
 Foto - jovens aguardam o início do desfile de estandartes em honra a Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2022

A criatividade corre solta na produção das "fantasias", que variam, de ano a ano, nos limites dos temas católicos.

Foto - nada impede que Nossa Senhora de Aparecida seja evocada, com muito brio, em pleno festejo do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017

Para representar Jesus menino, ao invés de um boneco de gesso, porque não trazer um bebê de verdade, todo sereno e esbanjando saúde?

Foto - Maria, José e o menino Jesus representados durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Um grande número de esposas, mães ou irmãs dedicadas fazem o que está a seu alcance na composição das vestes e ornamentos para o desfile de cada ano.


Fotos - uma grande variedade de arranjos em torno do mesmo tema, durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2022

E as mulheres dos grupos de congado esmeram na criação ou restauro dos estandartes.


Fotos - magníficas imagens tiradas durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Os grupos tradicionais lideram o povaréu durante os arrastões que inundam de gente as ruas da cidade: Imperial Guarda de Honra de Nossa Senhora do Rosário, Guarda dos Reis (os chamados Juízes Maiores), Tamborzeiros do Rosário, Tamborzeiros do Rei Tiago, Congado de São Benedito e Santa Ifigênia, Banda de Taquara, Marujada de Santo Antônio de Bem Posta e a banda, chamada Corporação Musical Euterpe Conceição. 
 
De repente, param, fazem roda no largo da igreja ou na porta do casarão onde vivem os festeiros do ano.
 
Foto - o jovem Jackson demonstra seu talento enquanto homenageia a família dos festeiros durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017
 
Parece estranho ao forasteiro mas os nativos é que "têm a manha" para, mui africanamente, com energia de sobra, prestarem honras aos patronos do folguedo cristão vestidos em seus trajes de gala. 
 
 
 Foto - José Geraldo, esse "fera" sertanejo, não é só um equilibrista nato, também faz acrobacias que, embora muito simples, oferecem diversão suficiente aos cidadãos vindos de todo lado, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017

Tem hora em que a coisa parece que se inflama, rodopiam, avançam e se retraem, se agacham e se levantam, riscam rasteiras no ar, como mestres da capoeira, roçam vestes, ventando, encaram a nobreza, olhos nos olhos, e bem de pertinho, a demonstrar, com todo o respeito, é claro, o quanto existe de desafio debaixo de toda essa pantomima de reverência.


Vídeo - o homem do campo, com força e alto astral, reverencia enquanto desafia os reis festeiros do ano durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017
 
Os congadeiros "jogam" o sinal revolucionário subliminar cantando: "balanceou, balanceou, balanceou a coroa do rei, balanceou". Ouçam:

Vídeo - os grupos se revezam lançando cantigas fáceis e saborosas que são ecoadas pelo povo em festa, durante as celebrações do Rosário de Minas Novas, em junho de 2022
 
Os mestres do equilíbrio e da concentração conduzem garrafas de cachaça, ornadas de um rosário de contas, no "topo do coco". Diz a lenda que elas nunca caem e se espatifam no chão, pois o transe é sagrado e produz seguranças de ordem espiritual em todo o edifício. 
 
 Fotos - em meio ao tumulto de gente reunida para a festa do Rosário, o mestre transpira paz e concentração, em Minas Novas, junho de 2017
 
Mas o fato é que desabam sim, partindo-se em mil pedaços, pois os humanos são seres falhos e com pouco tropeçam e decaem do "nirvana" onde há pouco se encontravam. Diz-se também que a pinga mais pura, feita do bom e velho modo artesanal, quando chocalhada dentro do litro, se assenta formando um colar de bolhas cristalinas na altura do gargalo, o que evoca poeticamente o símbolo da santa. 
 
Crendices de forte teor plástico-literário.
 
 Foto - a plateia mira admirada o espetáculo: exposta no palco da rua a um possível repentino vexame, a personagem de Dona Pedrelina deve se vestir, ao mesmo tempo, de graça e serenidade, senão fica mecânico e tudo desaba, durante as comemorações do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017
 
Os evangélicos acham isso tudo um vexame, excessos de pecador, mas os católicos pouco se importam, claro, quando são eles os alvos da moralidade exacerbada, afinal, apesar de estarem perdendo terreno, chegaram séculos antes e ainda dominam o palco principal da sociedade urbana, portanto, muito naturalmente, impõem suas próprias regras dentro da licença limitada da festa para o desregramento.
 
Foto - fiéis de toda ordem se reúnem diante da igreja do Rosário durante a festa da santa, em Minas Novas, junho de 2022
 
Frei Tales e Frei Felipe capricham no visual impecável e se posicionam em local de destaque onde recebem saudações e dispensam bênçãos, enquanto aguardam a chegada da procissão. Apesar da pompa, o clima é descontraído, então, porque não aproveitar e trocar contatos no zap
 
Foto - sacerdotes jovens, modernos, se postam na cena da chegada da procissão dos estandartes, durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, em Minas Novas, junho de 2022
 
A moça que balança o incensário também espera, muito séria e alinhadinha, seu momento de protagonista.

Foto - cada qual ostenta o figurino e os objetos rituais apropriados aos diversos atos do extenso e diversificado teatro cerimonial com que se celebra a data da Santa do Rosário, em Minas Novas, junho de 2022
 
Por outro lado, moleques, molequinhos e molecões não perdem uma chance de aprontar das suas.
Vídeo - lançando bombinhas no largo da igreja do Rosário de Minas Novas, durante a festa da santa, em junho de 2022

Esse ano apareceu uma novidade, a miniatura de foguete, que lança dardos de luz colorida os quais, muito breves, no ar se dissolvem, sem riscos. Os meninos ficam encantados com a simples ideia orgulhosa de que podem estourar seus próprios rojões.
 
Foto - menino se encanta com seu foguetinho durante a festa do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017
 
A fogueira vai queimar durante a noite toda no largo da matriz. Lembremos de que está fazendo frio em toda a alta Minas e, em povoados dispersos por todo o vale, pipocam as festas juninas, que de sagradas só possuem os nomes e datas dos santos. Em tais ocasiões, o fogo é fator de agregação e magia ancestral indispensável.
 
Foto - a fogueira queimou a noite toda e, pela manhã, ainda solta uma fumacinha, durante a festa do Rosário, em Minas Novas, junho de 2022
 
As bancas de algodão doce e os pipoqueiros lançam longe na praça seus apelos à visão e ao olfato e a revoada de balões coloridos desperta, na criançada, desejo, memória, fantasia.
 
Foto - a infância se diverte aos montes durante as comemorações do Rosário, em Minas Novas, junho de 2017
 
Cavalos e muares, ainda presentes nas roças onde se organizam grandes "cavalgadas", há muito foram banidos do centro velho durante as festividades. O sinal de que um dia fizeram parte do espetáculo se encontra num detalhe quase esquecido na base da parede traseira da igreja: um grampo para amarrar cabresto.
 
Foto - último elo com o passado tropeiro resiste rente à parede dos fundos da igreja do Rosário, em Minas Novas, junho de 2022
 
Um pouco mais adiante o ventre do mundo moderno foi aberto para que pudesse haver fornecimento de eletricidade às barracas mais próximas onde se vendem doces, caldos, sanduíches, o que derivou numa especialidade brasileira, a gambiarra.
 
Foto - gambiarra elétrica garante o funcionamento das barracas que vendem comida ao lado da igreja do Rosário, durante a festa da santa, em Minas Novas, julho de 2022

Famílias revezam na exposição orgulhosa da imagem da Santa do Rosário diante do público e das câmeras, sem muito reboliço, claro, com extremo cuidado, até que um dos membros da guarda a retoma e dá seguimento ao rio ambulante de gente. Devagar com o andor que o santo é de barro.

Foto - jovem levanta orgulhosamente a imagem de Nossa Senhora do Rosário durante a festa da santa em Minas Novas, junho de 2022 

Existe, enfim, uma "magia no ar".


Fotos - matéria e espírito da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017 

O bolo de humanos se avoluma e se aconchega na alta motivação do batuque, do canto e da dança, e as belas cabeleiras brasileiras reluzem ao sol.

 

 Foto - amontoado de gente durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

A Banda de Taquara da comunidade rural de Bem Posta acaba de chegar e ainda não vestiu a fantasia de índio caboclo. O bom e velho Vili e seus jovens aprendizes por enquanto estão sérios e tímidos, mas logo vão mostrar seu vigor roceiro e ritmo acelerado no ataque de tambores e pífanos.

Foto - o líder Vili, de boné e camisa branca, e os membros da Banda de Taquara de Bem Posta observam o movimento de gente antes de entrarem em ação num dos desfiles da festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

 Foto - integrantes da Banda de Taquara de Bem Posta, com seus típicos "cocares", adentram a nave da igreja do Rosário de Minas Novas durante a festa da santa, em junho de 2017

O bom companheiro Márlio Lourenço, o Fião, nos descreve, abaixo, a grande engenhoca social que se move nos bastidores da festa para viabiliza-la em matéria organizacional, laboral e financeira, ele que, à época, estava no centro do furacão, auxiliando sua família, festeira do ano de 2017. Confiram seu precioso depoimento:

Vídeo - Fião nos esclarece sobre a complexidade do sistema de dons que reina nas folias da roça e também durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Aproveitando essas páginas da rede social para agradecer publicamente o carinho e calor humano com que a família Lourenço tem me recebido, desde aquela data, exibo a modo de intercâmbio as imagens memoráveis da mesa da sala do casarão centenário repleta de pratinhos de barro, um a um modelados, pintados e queimados pelas paneleiras do Buriti, Campo Alegre ou Cachoeira, minhas velhas conhecidas. As porções de doce são dispostas, com parcimônia, em cada prato e no ato da filmagem eles aguardavam o momento em que enfrentariam seu breve e cruel destino, durante uma tradição vertiginosa a que dei o nome de "o butim dos quitutes".

Vídeo - Fião fala enquanto filmo a sala do belo casarão e a parede onde estão as fotos da festa do Rosário de Minas Novas em que a família Lourenço foi festeira, quatro décadas antes, em imagens de junho 2017

Funciona assim: todo ano a grande plataforma é montada, vestida, decorada, fornida de prendas e, depois, exposta a todos, bem no meio da rua. 

Vídeo - início dos preparativos da mesa de doces durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

As guloseimas são dispostas enquanto a multidão ainda é rala, porque o tumulto tem hora. 

Vídeo - dispondo os pratos com doces e outras guloseimas durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Quando se aproxima o momento teatral, um bando de marmanjos se posiciona para a farra. Ao final não sobra nada, nem um lenço de papel, e teremos sorte se a mesa terminar de pé. A tal festa religiosa, vejam só, tem espaço até para um naco de selvageria.   

Vídeo - avançando sobre os quitutes da festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Claro, essa confusão toda é apenas uma pequena permissão para o caos dentro do conjunto ordeiro das festividades. A comida e a bebida mesmo, oferecida, sem ordem de prioridade e a mancheias para qualquer cidadão, de qualquer classe, que der as caras e pedir um prato, requer horas e horas de trabalho intenso na arrecadação, estoque, preparação, disposição e distribuição. Nem por isso as cenas são menos curiosas de se ver, considerando os tempos que vivemos, de isolamento social e individualismo exacerbados. Observem, é o espírito comunitário, é comovente, é lindo:
 

Vídeo - livre distribuição de comida e bebida durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

O pessoal do grupo do Rei Tiago é presença marcante no desfile que começa a se organizar, espontaneamente, depois do resgate da santa das águas do rio, e se apronta para guiar o povo de volta, ladeira acima, rumo ao centro antigo e até o platô do Rosário. "Homem pequeno é menino, mas isso não quer dizer nada, qu'eu já vi um carnirin, esparramar a boiada". Vejam o vídeo, abaixo, e notem o belo conjunto de habilidades que o puxador de verso demonstra possuir: presença teatral, voz encorpada e discurso bem soletrado, mente firme, que tira força do desafio da exibição pública e ainda mais não perde, ao versejar, a fineza literária.  

Vídeo - Avelino Primo Soares, o capitão Lena, lidera o grupo do Rei Tiago e puxa a procissão que sai do rio Fanado e retorna ao centro da cidade de Minas Novas, durante a festa do Rosário, em junho de 2017

Uma promissora amizade que estabeleci recentemente em Minas Novas foi a do membro da Imperial Guarda de Honra, devoto de alma verdadeira e folião refinado, Rodrigo Almeida. Ele e Fião me ajudaram na revisão desse texto, deram nomes que eu desconhecia, para que os incluísse nas legendas de fotos e filmes, entre outras dicas valiosas, pelas quais agradeço.

Na cena seguinte Rodrigo aparece comandando um "salve!" ao panteão de santos católicos e jogando estrofes improvisadas enquanto manuseia com cerimônia o vidro de aguardente, objeto cênico que contém o enigma da pureza da Virgem do Rosário. Entrelaçadas simbologias, como na esfera de um sonho, produzem profundidades insólitas na sobreposição de significados.

Vídeo - Rodrigo Almeida joga verso provocando o coro de vozes e a batida dos atabaques durante a festa do Rosário de Minas Novas, em junho de 2017

Em 2020, primeiro ano da pandemia, eu estive meses em Minas Novas e vivi a grande tristeza que foi a ausência das celebrações de junho em honra a Nossa Senhora do Rosário. Diante das leis que proibiam a aglomeração de pessoas em locais fechados, as igrejas comemoraram a data de portas cerradas. 

Foto - porta da igreja do Rosário fechada durante o período de festas em homenagem à santa, em Minas Novas, junho de 2020

Quando muito, abriam as janelas e iluminavam de velas a nave central de modo a que os fiéis pudessem ver, passando pela rua, que continuava aceso o espírito de prece e adoração. 

Vídeo - igreja do Rosário realiza, de portas fechadas, um culto solitário em homenagem à santa durante a vigência da lei que proibia aglomerações em função da pandemia de Covid-19, em junho de 2020

O que na certa deu consolo a muitos, a mim me causou foi mais desolação. A voz distante, sufocada, que numa dessas noites ouvi emanar de dentro da matriz do Rosário como de uma clausura e que cantava em latim, língua morta e para mim indecifrável, trazia um senso vago e dolorido dos tempos retrógrados em que, hoje, mais de dois anos depois, continuamos mergulhados.
 
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