O ROTEIRO TEATRAL DO LEILÃO DO OVO DE BAIXA QUENTE, O PECADO ORIGINAL DA ESPOLIAÇÃO E OS "FESTIVAIS DA DÁDIVA"

Foto - povoado de Baixa Quente, às margens do rio Setúbal - 04/01/2009. *

Recentemente a internet repercutiu a seguinte história: um ovo, um ovo apenas, tinha sido arrematado numa das festas do alto Araçuaí, na comunidade de Baixa Quente, às margens do rio Setúbal, por dois mil reais (cerca de quatrocentos dólares atuais). 

Em Belo Horizonte, o jornal "Estado de Minas", de maior circulação, chegou a publicar a notícia, para meu espanto:


Infelizmente eu não estava presente para testemunhar e registrar o que de fato aconteceu. Assim eu poderia ter visto qual a cadeia de eventos do dia daquela festa que levou a um desfecho tão peculiar a ponto de inserir a tradição de pobres sertanejos (que a quase ninguém, na cidade, interessa) nas páginas on line dos diários tradicionais da Capital do Estado.

Foto - em leilão de mesa em Baixa Quente, o senhor ao centro grita os lances pelas prendas que tem em mãos e as atenções se voltam para ele - 04/01/2009.

Mandei mensagens a meus contatos do Setúbal. Um deles me contou que o arrematante do ovo era um tal de Manoel Neiva. Manoel, aparentemente, não foi nenhum privilegiado, na infância. Teria nascido e crescido na roça, na comunidade do Granjas, município de Chapada do Norte. De algum modo, juntou seu capital, e há muito mantém uma loja bem fornida de material agrícola no centro de Minas Novas. Os dois mil reais pela pequena prenda, vê-se, pouco abalam sua poupança e tenho certeza de que foram muito bem investidos, porque popularidade na rua e no campo é sinal de promoção da fama de um homem "forte" e de propaganda para seus negócios. O povo de Baixa Quente e o Santo do dia, naturalmente, agradecem qualquer contribuição, seja fruto do bom coração, seja da esperteza, seja da malícia, seja do que vier, desde que lícito.

Porém a informação mais preciosa que obtive, de outra fonte, diz respeito a como e porque os lances pelo simples ovo começaram a tomar um vulto inesperado. É que, na origem do ocorrido, a doação a ser leiloada era a galinha. Porém quando foi alçada pelo leiloeiro e começou a ser "gritada", ela respondeu aos estímulos botando, fresquíssimo, o tal, um único, o que logo ficará famoso. Fico imaginando se essa galinha caipira dos ovos de ouro foi também adquirida, se foi salva ou ferveu na panela de pressão. E quanto ao fruto do seu ventre, agora se encontra no ventre dos Neiva? Ou será que jaz, inerte, num suporte, na estante da sala, como um troféu vivo a marcar a gloriosa data?

Pois bem, agora sabemos melhor o que teria acontecido. O dom espontâneo e simbólico do animal, a perfeição do objeto divino que brotou para virar dádiva, foi o responsável pela guinada cênica que botou fogo na peleja pelo arremate do brinde inusitado. Todos buscamos o tempo todo as oportunidades desse tipo para incendiarmos os palcos diversos do giro da folia, mas elas são os produtos de sequências de acasos cenográficos muito raros. Então, foi assim que se acionou, do nada, o gatilho do roteiro da história do ovo de Baixa Quente de dois mil reais? Foi, na certa, uma história vivida daquelas boas para ser revivida, entrar na memória coletiva, um dos ápices da saga teatral que constitui a festa religiosa. 

Na verdade, creio que aconteceu, no caso, uma conjunção de fatores ideais que impulsionou os lances ofertados pelo objeto ao insuflar os "oponentes" a se enfrentarem nessa suposta "competição pelo bem geral" que ajuda a financiar o ciclo de festividades.

E que fatores ideais seriam esses, além, é claro, do impulso da bela casualidade que foi o ovo botado em pleno palco? 

Primeiro, aposto que apareceu, naquela oportunidade, em Baixa Quente, um número incomum de remediados como o tal Manoel porque, sem muitos valentes com dinheiro para torrar, não há briga em torno de lances altos. Se houver só "gente miúda" no embate, o espírito de desafio logo se esgota, porque logo se esgota "la plata". 

Segundo, deve ter-se formado uma plateia robusta em torno da rinha, povo amontoado o bastante para botar pressão nos galos, os protagonistas. Quanto maior e mais inflamada a audiência, mais inflados também ficam os egos dos galãs da grana, que logo terão deixado para trás, na poeira, no calor do rodeio, os impulsos de generosidade acaso existentes na origem da cena. 

Por último, a conquista ao direito de possuir a singela oferta à custa de uma tal "fortuna" se deu, na certa, no auge da exaltação alcoólica. Ninguém é maluco de começar um leilão no sertão antes da bebedeira geral. A pinga, o vinho e a cerveja em excesso atuam sobre o instinto de sobrevivência, o qual nos induz a regatear, a lucrar, a economizar, a poupar. Não acontece com todo mundo, claro, mas alguns, uma vez inebriados, não conseguem mais se segurar. Uns poucos, mais exaltados, podem gastar numa só noite maluca o que vacilariam muito em despender por todo um mês estando sóbrios porque, não nos esqueçamos, a maioria dos presentes ao ato precisa ser muito prudente, não pode se dar ao luxo de queimar de uma vez o pouco que conseguiu conquistar na base do suor e lágrimas.
 
Tais fatos poderiam muito bem dar impulso a um novo ramo do conhecimento, à "psicologia do dinheiro", e à terapêutica correlata, quem sabe.

Cento e cinquenta anos atrás os pioneiros da ciência antropológica identificaram a ocorrência de uma tradição, de uma cerimônia laico-religiosa semelhante em sociedades muito distantes ou diferentes umas das outras, que gosto de chamar de "festival da dádiva". Nesses festivais, o escambo do dia a dia, fundado em alguma equivalência de valores de troca, se tornava dádiva, oferenda, graciosidade. 

E é assim que surge uma curiosa inversão de valores, que intrigou e ainda intriga os estudiosos do ramo: o sujeito mais seguro da comunidade, por todos sabido um notório "mão de vaca", ao se expor no palco ritualístico desse tipo de festival, suspende o interesse de espoliação, de apropriação dissimulada de riqueza, que está por trás do lucro no mercado. O mercado faz prevalecer o interesse material, mesquinho, egoísta, na troca. Em todo escambo, mesmo na base indígena ou sertaneja artesanal, existe uma ameaça de que uma das partes saia lucrando, ou seja, ganhando mais em detrimento da outra, que perde aquilo que o primeiro ganhou. Trata-se, no frigir dos ovos, de um roubo, um roubo mascarado de troca equivalente, mas um roubo. Muita gente, acredito eu, se ressente de ter que atuar como espoliador ou espoliado nesse mercado de valores puramente materiais. É uma vida de pequenas espertezas em que se está o tempo todo tentando tirar um pouco mais do que se dá aos outros, muitas vezes explorando pessoas prezadas, próximas física ou emocionalmente, ou mesmo da família. 

Em contrapartida, na praça da dádiva, por uns poucos dias, festivos e sagrados, reina o mundo fictício ideal em que todos dão, e até em exagero, muito mais do que dariam no mundo concreto do mercado. Nesse ambiente econômico desvairado, uma "cabeça de boi", um bolo rude de fubá, uma cantiga galante, um "gól de pinga braba", uma ladainha em louvor à santa, tudo se equivale, por maior que seja o disparate, nada tem valor de troca mensurável enquanto está em vigência a des-ordem do dom. Atuando nesse papel de destaque da peça teatral comunal, o tipo mais mesquinho do lugar vai querer se mostrar o maior dos desinteressados, generoso ao extremo aos olhos da comunidade, e ninguém se admira que assim aconteça, pois mudou o contexto espiritual da troca material. 

Mas não dá para se animar muito não, os antropólogos observaram, nos quatro cantos do globo, que nos "festivais da dádiva" instaura-se também, às vezes, uma terrível competição de desprendimento. Isso mesmo, as partes passam a competir para mostrar qual é a menos... competitiva. E a coisa só vai piorando enquanto melhora, até o ponto em que, entre os povos da costa sudoeste do Canadá estudados por Franz Boas no século dezenove, a disputa pelo maior donativo degenerou em afronta pela maior destruição de bens, lançados ao mar, aos milhares. O que deveria ser a contenda pela maior doação gratuita tornou-se a guerra pelo maior sacrifício econômico, a dádiva degenerou em ostentação de desperdício, uma peleja entre poderosos que já não liga para a destinação comunal do donativo. Exterminavam assim grandes tesouros artesanais, duramente fabricados, incontáveis esculturas, placas de cobre, peles de urso, pois naqueles tempos os nativos locais estavam muito distantes do estado selvagem e moravam em vilas, tinham produzido classes, divisões internas, e acumulado enorme riqueza social. 

Pensando por outro lado, entre brutos guerreiros, uma competição pela destruição de bens pode muito bem evitar, transcendendo-a, uma competição direta pela destruição mútua das pessoas.   

Assim é a humanidade, ao fingir que nega a competição inerente ao mercado, o doador instaura uma nova competição, pouco mais sublimada, ou seja, se, de um lado, o sujeito compete na feira artesanal do dia a dia no limite tênue entre explorar e ser explorado, de outro, invertendo essa lógica mesquinha da espoliação, no "potlatch" indígena, na folia camponesa, nos festivais da dádiva, ele compete para se tornar o mão aberta mor, o "bonzão" maior, o que pode dar mais porque tem mais riqueza a exibir do que os demais. A ponto de que poderia, se quisesse, até... arruiná-la de vez. 

Duas faces da moeda: abundância, fartura, excesso a ser doado, de um lado, e grandes desperdícios ostentatórios, guerras benignas, excesso a ser destruído, de outro. 

Assim que me pergunto: que necessidade idêntica é essa que vários povos nativos possuem, em diferentes continentes, conforme culturas as mais diversas, desde tempos remotos, de encenarem, nesses "festivais da dádiva", o mesmo modelo ritual? Que necessidade é essa que possuem de inverter, durante alguns dias, que o seja, a lógica mesquinha que governa as trocas materiais na feira artesanal? A humanidade percebe, instintivamente, que o cerne da avareza está no mercado e quer expurgar o pecado original da espoliação, da exploração entre iguais, através da encenação do seu contrário, uma farra sem mesuras, um exagero de desprendimento e gratidão? 

E se a humanidade expurgasse de vez essa contradição? E se assumisse que viveria melhor se livrando de uma vez por todas do mercado, do dinheiro, e de suas pequenezas de valor de troca? E se vivêssemos o tempo todo sob o feitiço da folia, produzindo artesanalmente para dar e receber de forma desmedida? E se a regra do convívio humano se tornasse o fazer fartura combinada com diversidade a favor de um regime de intercâmbios orgânicos ilimitados? E se todos passassem a doar seu tempo de trabalho e/ou produtos derivados pelo simples prazer de dar, de ver o outro se enriquecer, material e/ou espiritualmente? E se o desprendimento deixasse de ser encenado e passasse a ser simplesmente vivido como um excelente prazer?

Desejável? Porque não? Possível? Creio que sim. Provável? Muito pouco. Não existem fins ou ideais num universo governado pelo caos e pelo acaso. A melhor das ordens ainda será artificial, contraditória e passageira.
 
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