EU E O ÚLTIMO TROPEIRO DAS ÁGUAS
Quando baixam as águas das inundações e se o ciclo de chuvas segue sem mais enchentes, as roças produzem milho, feijão e vagem, mandioca, abóbora, quiabo, melancia, aos montes, um pouco como acontece no "velho Nilo".
Na planície alagável o rio produz grãos, legumes e verduras mas produz também carne de caça: lontra, capivara, jacaré. E produz peixe bom e diverso, o que criou aqui uma cultura caçadora, pesqueira e navegante específica, em condições que não existem nas serranias a montante, no Setúbal, Capivari, Fanado, Itamarandiba e além.
Em duzentos anos, moldou-se aqui uma tradição peculiar: a dos "tropeiros a canoa" do Jequitinhonha.
Os canoeiros tropeiros carreavam viajantes e mercancias pela artéria principal por onde vieram e se instalaram os conquistadores do chamado "Sertão do Leste", durante o século XIX. Desde o Alto Araçuaí das Minas Novas e desde Diamantina, antigo centro urbano das nascentes mais longínquas do Espinhaço, iam e vinham, montanha acima, montanha abaixo, até Belmonte, o sul da Bahia, e assim moldaram um país caboclo característico como inúmeros outros de Minas e do Brasil.
Certa vez encontrei num banco de praça da cidade de Virgem da Lapa, na baixada do Araçuaí, um velho pescador e também tropeiro das águas do Jequi. Estremeci ao saber que estava diante de um desses volumes preciosos da biblioteca viva da humanidade. Um velho solitário tomando sol no largo da igreja de um dia qualquer poderia parecer apenas um velho solitário tomando sol no largo da igreja de um dia qualquer, mas eu não, eu não caio nessa ilusão da superfície das coisas, fui "puxar prosa", já que sabia muitíssimo bem, por experiência, que poderia estar diante de algo valioso como uma obra de arte, o livro profundo de toda uma tradição, um dos últimos de sua espécie, pois aquele mundo ribeirinho que ele descreve está desaparecendo e quando as últimas memórias vivas se forem, só restará a pasmaceira da periferia baixo-moderna, a mesma aridez espiritual que reina por toda parte.
O bom senhor me acolheu bem, como costuma acontecer com os nativos sertanejos, e sem sequer indagar do porque de minhas tantas perguntas, talvez ciente da boa vontade que me move, contou uma pá de histórias brilhantes sobre a navegação regional.
Usavam enormes canoas de tradição indígena, escavadas num só tronco. Eu vi as últimas ainda ativas que transportavam o povo que vinha da rodovia e queria chegar ao centrinho de Itinga, graciosamente situado na margem oposta do rio.
Desde a construção da ponte de Itinga, em 2004, esses canoões, lindos, estão virando lodo ou fumaça e logo restarão deles poucas pistas, porque em breve também estará extinta a memória viva das proezas dos navegadores.
E vejam a preciosidade arqueológica e literária com que esse velho mercador do rio me presenteou em nossa relaxada prosa de praça, em Virgem da Lapa! Ele me revelou que existem pequenos buracos estrategicamente situados nas laterais das bancadas de granito que ornam as margens do Jequitinhonha, sobretudo nos declives mais encachoeirados. E observou, de forma astuta, que se eu fosse com ele ao lugar, não conseguiria perceber esses "cavos" como obra dos homens, não saberia diferencia-los das marcas naturais dos rochedos. Seria como separar o cascalho do diamante, arrematou, "um trem pra garimpeiro, pra olho treinado".
De fato, meus olhos brilharam diante da pedra preciosa da informação. Ansioso, de pronto convidei meu novo amigo para que fôssemos juntos aos tais lugares. Eu queria ardentemente ver os furos na pedra de que ele falava, fotografa-los, aprender a identifica-los. Parecia um caboclão firme porém muito idoso. Disse temer os perigos que teríamos que enfrentar tentando acessar os ermos das bordas do rio. Haveria muitas cercas de fazenda de gado a pular, muitos brejos e atoleiros traiçoeiros dispersos pelo caminho, de modo que a aventura não "pagava a pena".
Os antigos canoeiros desciam a jusante sem maior esforço a não ser nas grandes cachoeiras, onde era preciso passar toda a carga no lombo de gente ou de burro pelas trilhas laterais. Eles iam lotados de certos produtos da roça e do artesanato e voltavam abarrotados de outros tantos adquiridos ou cambiados nas feiras citadinas vale abaixo. Em poucos dias, "tocavam de volta" para os altos sertões. O desafio era retornar contra a correnteza com o barco afundado até o talo de mercadorias. Assim que precisavam, claro, evitar o centro e remar pelas bordas, onde a torrente é mais fraca.
Segundo meu informante, com o passar das décadas, as pontas de metal das varas de empurrar dos canoeiros foram se encaixando em determinados nós dos rochedos das margens. Uma após a outra, milhares de cutucadas fortes nas mesmas trincas da rocha teriam escavado os buracos, as marcas identificáveis.
Nesse ponto da narrativa, minha imaginação voou. Eu vi os furos como uma espécie de escrita, ou melhor, de pauta primitiva que deixou registrado o ritmo dos empuxos para cima dos "remadores" na luta pesada contra a corrente.
Viram só? Bingo! Mais uma crônica para minha espantosa coleção! E ainda mais espetacular será se for ficção, se for um conto, criação da mente de caboclo velho do rio. Uma bela história é joia rara, contenha ela inteira, meia ou, sobretudo, nenhuma "verdade". O valor da pedra preciosa não pode estar na pedra. Uma pedra, por mais brilhante, é só pedra. O valor está, sempre, nas convenções convenientes do espírito humano.
Se não é assim, me acompanhem...
Visitei, ano após anos, por muitos janeiros, um velho casal ribeirinho nas roças de Itinga.
Nos primeiros tempos, marido, mulher, filhos e netos da família me recebiam cordialmente, convidavam para entrar, se rendiam sem reservas à costumeira enxurrada de questionamentos que faço, dando de barbada preciosíssimos depoimentos sobre a antiga cultura local, de beira rio.
Enquanto isto, ofereciam para comer e beber o que houvesse à disposição, almoço ou janta, petisco, fruta, café, leite, pão, biscoito, doce, quando não um naco de rapadura.
E assim, pouco a pouco, nos dispúnhamos para a cena da estadia, na sala, na cozinha, na varanda, debaixo do pé de manga.
Assim passavam-se, passávamos as horas, sem sombra de tédio. E o milagre já nem era milagre, pois quase sempre acontecia: livres da solidão, ninguém percebia que o tempo corria, nos matando. Em boa companhia, nos sentíamos fortes e nos vingávamos, matando também o tempo nos rituais de convívio, na prosa animada, na mesa farta ofertada, que sempre foi e, de algum modo, ainda é simplesmente o modo de se viver entre vizinhos, compadres e parentes nessas comunidades rurais remotas. As visitas aparecem na porta da casa o dia todo e a qualquer momento. Tem que se estar preparado. A intimidade da família vai ter sua hora. Claro, existem diferenças individuais, sempre as há, e existe quem não seja hospitaleiro, seja por caráter, seja pela influência crescente da cultura moderna, muito mais individualista, competitiva, isolacionista. No geral, contudo, cumpria-se a regra da boa vizinhança: acolher sem reservas, a princípio, todo aquele que vier.
Esse acolhimento fácil e generoso, eu o tive, na região, em tantos e tantos outros lares! Até aí nenhuma novidade. Mas nessa morada, em especial, eu pude assistir a um interessante processo de transformação dos costumes.
Nunca deixaram de me tratar bem e com a fartura possível do momento, quando os visitava no campo, mas minha relação com o casal foi mudando em certo aspecto depois que passou a oferecer seus produtos na tradicional feira de sábado da cidade.
No começo, marido e mulher acharam que, em nossa nova interação, pública, comercial, poderiam me acolher da forma dadivosa com que me tratavam em casa. Acho que logo aprenderam que as coisas não podiam ser assim entre nós naquele outro palco social. Depois disso, com o passar dos janeiros, testemunhei a primeira mudança. Ambos ganharam experiência na arte de mercadejar, obviamente, e passaram a me tratar de um jeitinho timidamente mais formal quando eu ia à feira e comprava banana, mamão, farinha, doce, mel, de suas mãos.
Mais alguns anos se passaram e toda a timidez tinha evaporado. Já lidavam comigo como se eu fosse um cliente comum, indiferentemente. Nossos ritos antigos de amizade, apesar de ainda presentes em casa, na roça, conforme a lógica do dom, do "é dando que se recebe", tinham se rompido na cidade, no mercado, dando lugar a uma relação desigual em que eles precisavam arrancar de mim, em favor da própria sobrevivência, o máximo possível na troca dos diversos bens de uso, que expunham à venda, pelo bem de troca universal, a moeda em meu bolso, o coringa das mercadorias, por todos a mais ambicionada.
A partir da atitude mais interesseira que foram aprendendo a ter com respeito, não a mim, mas a minha riqueza, materializada no dinheiro, nossa relação na feira de sábado só poderia, com o tempo, se deteriorar, como de fato se deteriorou. Aos poucos, meus amigos foram perdendo por completo o senso de igualdade na pobreza que possuíam e era forte. Foi quando começaram a ver em mim apenas a projeção do que lhes interessava. Virei, quem diria, aos olhos deles, um turista bobão qualquer, espécie de gente que nos últimos anos passou a dar as caras aqui com mais frequência meio perdida por esses sertões. A nova presa, fácil, com o passar dos anos, acabou incitando nos comerciantes locais a avidez pelo lucro, como já vi acontecer em outros lugares. Assim que esses velhos e humildes camponeses de formação agora não podem mais ver um turista em sua mira comercial. Os olhos saltam, o coração põe-se a bater. É como dizem os americanos: "greed is good", a cobiça é boa, o capitalismo desperta a fera competitiva que existe dentro de todos nós. De repente, então, elevam-se bruscamente os preços e exorbitam-se as margens de ganho, afinal, por ser um total desconhecido na comunidade, é preciso esfolar o mais rápido possível e de uma só vez o trouxa do estranho que apareceu mas logo vai se embora, ou seja, alguém anônimo, sem nome, sem identidade, alguém a quem se pode trair porque não se deve satisfações futuras.
Como se trata de um longo processo, de gerações, esse casal de que falo, em particular, ainda está dividido entre a lógica da extorsão, do mercado, e a lógica comunitária, da gratuidade, do desprendimento, da hospitalidade, que predomina na vida cotidiana e nas festas religiosas nesse interior do interior.
Todos sabem, numa só pessoa humana cabem todas as contradições do mundo mas essa, eu acho, é uma das fundamentais para entendermos a fria em que nos metemos. Ao tornar-se cada vez mais puro-monetarista, a alma da sociedade moderna está indo pelo caminho perigoso do fim do senso comunal, o que produz a doença psíquica que chamo de "cegueira de afetos". Os afetos não mais se reconhecem, não reconhecem mais os valores imateriais imiscuídos na troca material quando "evoluem" conforme a lógica monetária.
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