TI MANÉ, O "PUXADOR DE VERSO"

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Foto - Ti Mané, com o violão na mão, proseia com alguns dos velhos cantadores "ponta-firmes" da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo: Joaquim Requinteiro, Ti Olímpio, Dario e Dé - 13/01/2003
  
Ao longo dos anos, acompanhei a evolução de muitos antigos cantadores das folias do Fanado, cada qual sua manha, seu estilo. Costumam ser vaidosos. Parte deles eu vim a conhecer quando já tinham passado os sessenta anos, então não os vi na força da juventude, quando seus jogos de galanteio deviam ser levados mais a sério. Alguns desses personagens históricos, os últimos da sua espécie, os últimos criados 100% sertanejos, uma vez perdidos os mais óbvios encantos da mocidade, poderiam soar meio patéticos em seus devaneios de sedução de menestrel. E não falta nunca, no xadrez da folia, um jovem pentelho que tente ridiculariza-los por insistirem na conquista do coração da bela idolatrada, com seu arsenal de anéis e crucifixos de ouro puro e seu pequeno rol de versos sedutores. Miremos o homem que mira longe e fundo enquanto empunha, orgulhoso, o cabo da velha viola: 

Foto - Ti Mané, altivo, sério, vaidoso - 13/01/2009

Eu gostava de tudo no poeta meu amigo, até desse lado patético seu. Adorava vê-lo assim mesmo como era, sonhando grandezas. Era daí que ele tirava forças para sustentar, no ocaso da vida, o papel vital de trovador performático, de criador prolífico, confiante, altaneiro em meio à turba infame dos "porreteiros", pois ele sabia e todos sabíamos, incluindo os "porreteiros", que era pra poucos o dom de domar a alma da palavra. Dava gosto de ver Mané deitando aos porcos as pérolas que fazem da folia uma obra de arte coletiva além de um tributo ao panteão das divindades católicas!

De todos os mestres "puxadores de verso" do Fanado que conheci, nosso saudoso companheiro de viagem, falecido em 2015, era o que mais orgulho tinha de sua verve poética. Todos esses poetas do povo são orgulhosos de sua performance músico-teatral como um todo, mas Ti Mané o era especialmente de seus pequenos requintes literários. Pense na fineza de um homem iletrado! Um belo dia lançou o seguinte encanto sobre a maior de suas musas inspiradoras, Helena de Ci:

Se eu cantar esse caboclo, mas ê Helena, o que que é que 'ocê tem, aaaai... pra roubar amor dos outros eu acho que isso não convééém... se eu deixar de te amar, Helena, eu não pretendo mais ninguém, aaaaai..
 
Reparem no uso erudito do verbo pretender, uma verdadeira jóia.

E Helena se derretia toda, e ninguém acreditava e, desconfio, nem mesmo Ti Mané. E que maravilhoso esse complexo jogo de cena!

Vídeo - Ti Mané puxa um "caboclo" evocando a ausência de Helena para o pai da moça, Joaquim, o Ci, durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 20/01/2011

Era um tipo duro sincero. Contava sem pudor, até diante das câmeras, se preciso fosse, como foi tolo na juventude, quando bebia muita pinga, fervia em valentia e ficava chato e bruto. Carregava uma dor profunda, qual seja, a de ter maltratado, nesses tempos loucos, sua amada esposa. Como ela morreu precocemente, não teve tempo para se livrar do peso das culpas que carregava, provando para ela que poderia se transformar, como de fato se transformou. Buscava assim intensamente uma nova companheira, mas não uma qualquer, era exigente, tinha que ser bonita, cheirosa e trabalhadeira, para que tivesse a chance de dar a ela tudo o que negou à primeira: sobriedade, seriedade, dignidade, respeito, carinho. E se enchia de desejos por tal objeto perfeito de amor que era também a quem ele dirigia, nos palcos da folia, suas refinadas "cantadas", já que a mulher em si, a de carne e osso, diante de seus olhos, como ele mesmo, como qualquer ser humano, estava muito distante de ideais. 
 
Don Quixote de la Mancha? 

Vídeo - Ti Mané elogia Ci durante passagem, pela casa do amigo, da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 20/11/2011

Quando o conheci, já idoso, não tinha desistido da conquista ainda não, e tascava sempre um versejo inédito e no capricho, novidades que fermentava longamente antes de apresentar ao público acaso presente na varanda ou na sala do pouso da bandeira do santo, e especialmente nas casas das damas que mais adorava. 

A moçada, e os foliões mais velhacos, sabiam do ponto fraco de Manézin, homem no mais corretão, rígido, respeitoso e respeitado. Então, quando passei a andar com as bandeiras que serpenteavam por estradas e trilhas entre o povoado do Buriti e as comunidades rurais de Coqueiro Campo, Campo Alegre e Terra Cavada, no começo dos anos dois mil, já era tradição, uma das diversões do giro, espicaçar o pobre homem, jogando para a plateia e nas barbas da vítima, de modo mais ou menos explícito, o ridículo que passava pensando seriamente que algumas daquelas deusas que ele se esmerava para decantar em sonetos melosos, iriam um dia de fato se entregar àquele "cácu véi". 

Foto - Ti Mané puxa o "canto da folia" de São Sebastião numa das casas do giro do dia no povoado do Buriti - 13/01/2009
 
Vê-se, o cortejo santificado, tocado a caixa de guerra, cachaça e espiritualidade é o circo armado perfeito para despertar sentimentos de toda ordem na mistura da gente: elevações de criação artística, amor sensual e amor de amizade, surpresas boas e ruins de reencontro, saudades dos entes partidos, e também disputas ocultas, inconscientes, que fatalmente rebrotam, em rodas de exibição, rivalidades mais ou menos fingidas, mais ou menos fundadas, ressurgem e acham um jeito "civilizado" de se manifestarem nos jogos de pilhéria e provocação que produzem maldades teatralizadas como essa de zombar do sonho romântico do velho poeta. Assim é o teatro ao rés do chão da folia. Ele agita a vida "verdadeira", pois os sentimentos fortes mais diversos necessitam dessa arena caótica onde nascem, frutificam e se reciclam.
Vídeo - Aristeu agita um "bozó" durante a folia de São Sebastião em trânsito pelo povoado do Buriti - 04/01/2014

Foi mais de uma década de convívio com mestre Mané, seus fiéis escudeiros foliões e o povo do lugar. No fundo, todos sabíamos que, com sua partida, a folia estaria extinta nesse trecho do Fanado. E assim foi, a morte pessoal, a morte cultural, uma dupla fatalidade. 

Vídeo - Ti Mané puxa o "nove" e Demilton se esforça para "pegar" a letra durante a folia de São Sebastião em trânsito pelo povoado do Buriti - 16/11/2011 

Os rapazes que aprenderam a cantar com Ti Mané nos últimos anos, incluindo Demilton, que o "respondia" nos cantos leigos e no louvor à bandeira e era nossa maior promessa para seguir liderando os rituais da folia do Buriti-Coqueiro Campo, foram incapazes, como muitos de nós prevíamos, de sustentar os giros locais, um evento complexo que exige muito mais do que simples disposição para festejar.

Vídeo - Ti Mané "puxa o canto da folia" de São Sebastião e Demilton "responde", na casa de Isidro, em Terra Cavada - 19/01/2011

Em janeiro de 2021 não estive no Vale mas fiquei sabendo que houve uma tentativa de resgate da tradição e que a bandeira circulou por dois dias e apenas dentro do povoado. É uma tendência que observei em outros lugares, como Lagoa Grande, Poço d'Água e Vendinhas.
 
 Foto - Ti Mané  e Demilton cantam a folia de São Sebastião durante a passagem do giro pela comunidade de Terra Cavada - 15/01/2009

Nunca hei de me esquecer dos primeiros momentos do primeiro dia da saga dos foliões, sempre na casa de Ti Zé, sede de sítio que se transformou no coração do vilarejo do Buriti depois que, nas últimas três décadas, o entorno foi se urbanizando. 

Foto - rodinha em torno de Ti Mané que afina o violão e esquenta a garganta antes do primeiro ato da folia de São Sebastião do Buriti-Coqueiro Campo, no terreiro  da casa de Ti Zé - 12/01/2007

Como diante da casa havia um campo de futebol, hoje ainda preservado e modernizado, o local costumava ser chamado de Campo Buriti, mas aos poucos vai se tornando simplesmente Buriti. Coqueiro Campo é como chamam a comunidade que habita as roças mais próximas do vale do Rio Fanado. 

Foto - Ti Mané "puxa um nove" numa das casas do giro da folia de São Sebastião em passagem por Coqueiro Campo - 17/01/2007

No corredor estreito e sombrio, ao terminar a prece coletiva do Pai Nosso, a caixa batia, a viola tocava, Ti Mané lançava o verso inaugural e, "ô maravia!": estava aberta mais uma folia! E então pensávamos, como marinheiros prestes a zarpar no porto de partida: "ó céus, o que o janeiro nos reserva, que aventuras e desventuras a temporada de festas nos prepara dessa vez?" 
Vídeo - o "pai nosso" que abria a folia de São Sebastião no povoado do Buriti, em casa de Ti Zé - 14/01/2011

Vídeo - Demilton responde Ti Mané no canto da folia de São Sebastião do início da folia, em casa de Ti Zé - 14/01/2011

Vídeo - e a bandeira de São Sebastião parte nas mãos de Ti Zé - 14/01/2011

É assim que funciona, a vida pega fogo na deriva onde tudo pode acontecer.

Conto nos dedos os mestres de folia que acompanhei por longas jornadas nos últimos vinte anos na região. Alguns conheci de passagem e não tive tempo de compor a respeito deles um quadro mais complexo. Outros, depois de muita convivência, foram se revelando em sua humanidade, suas limitações e suas qualidades teatrais, poéticas e musicais. Aos poucos, pretendo escrever aqui sobre cada um deles com o devido cuidado, aguardem!

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