O GRANDE NEGÓCIO DA FOLIA
Foto - os instrumentos e a bandeira do santo repousam numa das casas do giro durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 12/01/2010
O sublime é o que traz o mote, movimento, motivo elevado à engrenagem materialista, mundana e caótica do grande festival da dádiva. Sem essa emotivação e sem os mestres menestréis, sem os atores principais, o teatro sagrado da folia não se sublimaria.
Vídeo - Paulino, sertanejo à moda antiga, ao lado da típica jovem moderna, sua neta, escutam concentradamente o canto da folia de São Sebastião de Inácio Félix que teve "pouso" em sua casa na comunidade vizinha de Terra Cavada - 20/01/2017
Disto não se deduz, claro, que devamos subestimar o papel dos figurantes, o papel dos ajudantes, uns pagos, outros voluntários. São "políticos", "burocratas" e trabalhadores braçais de toda sorte, todos indispensáveis ao bom funcionamento dos motores do giro e da festa final.
Coloco "burocratas" entre aspas porque há quem faça esse trabalho durante as folias e, claro, não é porque sejam trabalhadores especializados em mexer com a papelada do grande negócio, mas porque, em empreitadas desse tamanho, são necessários aqueles que se encarregam de centralizar e redistribuir os recursos arrecadados, o que supõe um mínimo de organização burocrática. Assim é durante os longos percursos da bandeira e, sobretudo, nos festejos de apoteose, quando eventualmente, conforme a disponibilidade, consegue-se realizar leilão maior, de gado.
Foto - o procurador Isidro conta as moedas das "esmolas" doadas durante o giro do dia da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 15/01/2010
O incrível é como riquezas consideráveis são mobilizadas e geridas dessa forma por um conjunto fluido de pessoas e sem uma planilha sequer, salvo alguns rabiscos em folhas soltas. E mesmo sem um comando central definido, mesmo sem o registro metódico de dados que façam um cômputo global dessa "empresa de eventos", toda a máquina social foliã ao final fecha as faturas, em regra, sem prejuízos, e muitas vezes, com lucros, remetidos a diversas instâncias ou investidos até a próxima data do santo.
Por exemplo, a comunidade de Poço d'Água é vizinha à de José Silva.
As folias nessa altura do Fanado já deixaram de passar faz tempo. Lembro de ter registrado uma das últimas, dez anos atrás. Giramos pelas madrugadas, porque era o "Santo Reis" que "só viaja de noite no rumo da estrela guia". Era também a data de meu aniversário. Diz-se: o sujeito tal nasceu em "dia de Reis".
Vídeo - canto da folia de Reis de Poço d'Água - 04/01/2012
Por outro lado, as grandes folias do passado transitavam por grandes extensões do vale. Os velhos caboclos contam que elas desciam à foz do rio e iam além, até Santa Rita, quatro quilômetros Araçuaí abaixo, onde ainda é forte a tradição dos "Reis". Percorriam, assim, belas distâncias e por períodos dilatados. Mas estão definhando desde então, ano após ano, reduzindo seu território de passagem. Até que, aqui e ali, desaparecem da cena cultural local.
Aquelas que venho acompanhando há quase duas décadas, muito diminutas se comparadas às antigas, ainda oferecem o espetáculo que descrevo nessas páginas. Então que se imagine o que acontecia dois séculos atrás. No início dos mil e oitocentos, o cientista viajante Auguste de Saint Hilaire passou por Minas Novas e nos conta como ficou sem dormir quatro noites seguidas devido aos fogos de uma grande festa religiosa.
Vídeo - queima de fogos no centro de festas da comunidade de Inácio Félix , onde estão a capela, o salão de forró e a cozinha comunitária - 22/01/2017
Os sertanejos falam da ojeriza que os antigos padres católicos tinham da extensa festa popular. Alguns não gostavam nada de ver aquela mistura de rito cristão e folguedo pagão vagando pelas roças ligadas à paróquia e incendiando as ruas da cidade. E essa seria a causa principal da fragmentação dos giros. A partir da década de 1960, mais ou menos, os sacerdotes da igreja teriam passado a ordenar a restrição do alcance das bandeiras. Teriam, assim, estimulado a redução dos dias de comemoração, das lonjuras percorridas e, consequentemente, do montante de bens arrecadados. Algumas folias, desde então, desapareceram. Outras chegaram, capengando, assim mutiladas, até nossos dias.
Foto - padre abençoa o estandarte de São Gonçalo durante a festa do santo em Minas Novas - 13/01/2010
Se antes algumas folias mais afamadas tinham desfecho na sede dos municípios, há muito não têm mais. Aquelas que ainda existem se encerram todas com festas pequenas em povoados antigos, como Bem Posta, que cresceu nos últimos vinte anos, ou recentes, como o Campo Buriti, que surgiu há cerca de trinta anos e se desenvolveu rapidamente em torno da casa de Ti Zé e do campo de futebol ali criado num dos poucos terrenos planos que sobraram depois da implantação, nas chapadas, em meados dos anos 1970, pela Siderúrgica Acesita, de imensas florestas de eucalipto.
Assim que, por todo o Jequitinhonha, as folias ainda ocorrem em núcleos dispersos de comunidades mais próximas entre si.
Vídeo - vista do alto do giro da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 12/01/2010
Fico sempre sonhando em cima do que me contam os informantes e penso na função essencial que esse ritual deambulante exerceu, por séculos, de ampliação da troca de mercadorias, experiências, conhecimentos, artes, muito além da esfera de vizinhança de cada localidade rural.
Foto - rapazes de moto esperam o cortejo que conduz a bandeira do santo se distanciar conforme a ordem do procurador da folia para que não façam muito barulho e arruaça nos momentos mais solenes da festa, em algum lugar entre as comunidades de Inácio Félix e Terra Cavada - 18/01/2017
Ouvi muitas vezes a história do desgosto dos padres pela folia contada pelos mais velhos, mas, ao contrário deles, atribuo as mudanças a uma complexidade de fatores. Entre eles pode estar a ordem castradora da Igreja, embora duvide que o episcopado se privasse facilmente dos polpudos dízimos recolhidos durante as festividades camponesas devido a questões morais de ordem passageira.
Foto - à frente, em mulas e cavalos, lenta e divertidamente, seguem os patriarcas: João de Eva, Batista, Dario e outros, durante o giro da folia de São Sebastião de Inácio Félix - 18/01/2017
Pensemos, atualmente estão sendo construídas estradas por todo lado cortando esses vales e existem facilidades de transporte mecânico praticamente impensáveis sessenta anos atrás. É de se supor que as folias atuais, tão restritas, aproveitassem o recente incremento da infraestrutura para voltarem a se expandir, usando os caminhos abertos e os meios poderosos agora à disposição de muita gente. Mas não é isso que acontece, na prática. Ao contrário, os giros continuam a encolher e muitos cessam, de uma vez por todas, na medida em que vão falecendo os antigos mestres de cerimônia e os membros mais velhos dos grupos corais que os acompanham.
Foto - Ti Mané, refinado mestre poeta cantador da folia de Coqueiro Campo, falecido em 2015, saudoso amigo, recebe o consolo salvador de um "cafizin" das mãos de uma das zelosas donas de casa que a procissão encontra pelo caminho - 12/01/2010
A juventude desses lugares? Está a cada dia mais voltada para um mundo de valores absolutamente diversos de seus pais e avós e não possui mais as forças físicas, organizacionais e espirituais necessárias para tocar empreendimento dessa magnitude e magnanimidade. É bom lembrar que os giros antigos eram feitos inteiramente pelo povo caboclo afeito ao trabalho duríssimo da roça e do sertão e desse tipo de gente vai restando cada vez mais pouco.
Foto - Tulesca, sertanejo osso duro de roer e folião incansável, acaba de chegar ao giro da folia de São
Sebastião de Inácio Félix, com a camisa razoavelmente branca e bem passada (ainda) - 23/01/2016
Desparafraseando Euclides da Cunha, "o burguês é, antes de tudo, um fraco". Hoje, uma semana de andanças e desvarios de festa deixa a todos esgotados, eu incluso. Portanto, não suportaríamos jamais os trinta, quarenta dias de marcha da antiga Bandeira do Divino Espírito Santo andando em lombo de burro, quando não a pé, por terras estranhas. E o que dizer de dormir na rede pendurada no galho torto do pequi do quintal da casa do "pouso", debaixo de chuva, porque não tem como voltar pro seu canto e descansar na própria caminha sem perder o rumo da procissão que viajou sete léguas afundo nos grotões? Não é de se admirar que, aos setenta anos ou mais, muitos dos que viveram outros tempos, de vigor e aventurança sem limites, ainda costumem dar um baile de vitalidade nos mais novos.
Foto - duas posturas bem distintas diante do emblema de São Sebastião no povoado de Vendinhas - 04/01/2016
Existe um teste, uma brincadeira que os patriarcas fazem com os moleques de quinze, dezoito anos. Pedem ao dono da casa do momento do giro que encontre uma enxada das pesadas, a trazem ao terreiro, à luz do sol, à roda dos zombateiros, e desafiam os galinhos de briga a levantarem o instrumento simbólico, deitado no chão, pela ponta do cabo. É muito difícil por causa, não do peso em si, mas do ângulo da pegada. Apoiando assim na pontinha do bastão não dá nem para tirar o instrumento do chão, na maioria das tentativas. E invariavelmente, nesse jogo, os jovens saem perdendo. Depois que fracassam, os velhos vão lá e dão seu show, erguendo o bastão e alvoroçando a platéia. Afinal, quem não gosta de zoar a cara do moleque metido a machão? Mas se observamos a cena com olhar pouco mais cético, vemos que se trata de um truque. Acontece que, mesmo quando percebem a manobra sutil, os rapazes não conseguem realizar o levantamento porque não possuem o braço forte e as habilidades histriônicas necessárias à manobra, as mesmas que os anciãos de hoje desenvolveram pouco a pouco, nos palcos das grandes folias da infância e na vida cotidiana, então muito, mas muito mais bruta!
Foto - Tia Luzia viveu quase cem por cento como seus ancestrais, um tipo de gente que não se faz mais - 16/01/2007
Foto - rapazes descansam à sombra e confabulam durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 17/01/2012
Alguns atribuem a falência do antigo ritual católico ao avanço da moralidade evangélica, rígida demais, que se opõe furiosamente a todo tipo de excessos que não sejam os próprios.
Por outro lado, pouco a pouco e até sem que percebam, as novas gerações vão se tornando mais leigas ou seu espírito religioso está ficando frívolo, de fachada. O novo modo de ser social, todo voltado para o conforto material, a ostentação e o hedonismo típicos da cultura moderna, tornou-se incapaz, no mais das vezes, de fomentar as emoções finas presentes nos velhos rituais comunitários, verdadeiras cerimônias teatrais, cheias de poesia e sentimento, produzidas e vividas como obras coletivas de arte.
Foto - Rita de Tia Luzia, da comunidade de Palmeiras, chora ao pegar na bandeira e ouvir o canto que evocava sua falecida mãe durante a folia de São Sebastião de Terra Cavada - 16/01/2009
Para quem está presente, logo fica muito claro que a maioria dos jovens de hoje ainda curte as folias e festas católicas devido aos muitos atrativos mundanos que o ajuntamento de gente oferece, até porque estão viciados no tipo de evento de massas que ocorre por todo lado, em cidades e vilarejos de toda a região, os quais prescindem da motivação religiosa e dos requintes da ópera cooperativa. Claro, há sempre aquelas nobres exceções, gente jóia rara que cedo na vida compreende o valor afetivo e a beleza das tradições do passado. Alguns se esforçam heroicamente para absorve-las e reafirma-las a seu modo e contra todas as expectativas.
Foto - menino aprende a pegar na bandeira durante o canto da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 17/01/2011
Tudo considerado, o encolhimento dos giros da folia se deve mais, acredito, ao avanço dos ritmos e mentalidades da nova era. A década de mil novecentos e sessenta marca, talvez, o início de uma aceleração das transformações. Por isso nos deparamos, na atualidade, com o confronto final dos mundos tradicional e moderno. No horizonte próximo é possível ver a extinção de toda uma cultura centenária com a morte dos últimos legítimos sertanejos, nascidos nos anos trinta, quarenta ou cinquenta do século passado.
Foto - menino da comunidade do Brejo absorve o impacto afetivo da reza cantada da folia, parado entre o pai e a curiosa bandeira do santo mártir, pintada a mão - 17/01/2015
Registrei algumas vezes, em filmagens e anotações de campo, essas histórias contadas dos tempos áureos da vida cabocla e da folia no Jequitinhonha. É material para outras postagens.
Vídeo - Ti João Caixeiro fala do mestre puxador de uma das antigas folias que girava do outro lado do vale do Fanado - 18/01/2012
Exemplo, meu amigo mestre cantador, o Odair de Terra Cavada. Tipo muito emotivo, um belo dia nos segredou, numa roda de papo ao lado da capela de Inácio Félix, que chegava a chorar como um menino ao fim das verdadeiras sagas que eram essas grandes folias de antigamente. Imaginem, uma quarentena inteira em êxtase! Mais do que o bastante para que se formassem laços viscerais entre os camaradas, no embalo da cachaça, da prosa excitada, da poesia do canto, da dança. Depois do último ato, depois que o mastro era baixado e o emblema do santo se recolhia, vinha a despedida, o fim do sonho em vida, e o buraco que ficava era medonho demais, cada qual de volta para sua taperinha, seu rincão de solidões profundas. "Rapaz era triste sem base!"
Vídeo - na casa de Vanderlei (esse que segura o filho mais novo, de pé), Odair, assentado no chão, ao fundo, "puxa", junto com Batista, o terço cantado durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo em sua passagem pela comunidade de Palmeiras - 10/01/2010
Desde que ocorre a decadência local da folia, a festa anual de São Sebastião de Poço d'Água vem tomando vulto e fama e tem atraído investimentos maiores.
Alguns anos atrás, Inventaram um campeonatinho de futebol que reúne os times da redondeza: Buriti, José Silva, Galego ou Mangabeira, além do da casa. Novos tempos, novos roteiros e personagens: o teatro popular, antes de desaparecer, sobrevive se repaginando.
Foto - decisão por pênaltis do campeonato de futebol realizado durante a festa de São Sebastião de Poço d'Água - 02/01/2012
Acontece num mesmo dia: dois jogos eliminatórios de noventa minutos e mais um final, ou seja, tudo muito simples. As horas assim avançam, junta povo e começa a beberagem.
Vídeo - é gol! em jogo de campeonato de futebol realizado durante a festa de São Sebastião de Poço d'Água - 02/01/2012
Mas, claro, ainda acontece a reza das beatas ou, de preferência, missa, com a presença do padre vindo da cidade.
Ergue-se o mastro após a procissão do estandarte do mártir, duas voltas em torno do campo e retornamos à capela, ao centro. E pronto, tudo muito ligeiro e prático, como dita a baixa modernidade, mas ainda com vigor, força simbólica, energia emotiva cabocla forte, puxada pelos mais velhos.
Vídeo - depois da final do campeonato, surge a congada, o dito "Mangangá", vindo da comunidade vizinha do Galego para animar a festa de Poço d'Água - 02/01/2012
Não faltam também as rodas de sanfona que alvoroçam os tantos botecos existentes no entorno do largo.
Vídeo - roda de cantiga durante a festa de São Sebastião de Poço d'Água - 31/12/2012
De repente, as rodinhas são interrompidas pelo desfile do Mangangá.
Mangangá é o nome de um besouro comedor de madeira que o artesão utiliza para mastigar as entranhas das toras onde são montados os atabaques e as caixas de guerra. Os tambores, que soam alto, são feitos para seduzir e carrear a gente dispersa, formar uma só tropa afogueada que sai ao ar livre de peito aberto a socar o pé no chão de terra batida.
O Galego, como o próprio nome indica, possui muita gente branca, muitos loiros, alguns, de olhos azuis. Tocam um congado cujo ritmo se assemelha demais com o que observei no Catopê do Quilombo do Baú, em Milho Verde, nas nascentes do Jequitinhonha, duzentos quilômetros ao sul, em paisagem geográfica e cultural bem diversa. No Galego, o Mangangá é tocado sobretudo em caixas de guerra, um instrumento europeu. Só que algumas possuem um tamanho pouco usual, são quase bumbos, mas mantendo a dupla de barbantes esticados rente ao couro na parte inferior, o que as fazem ressoar do modo peculiar da caixa. Acreditar que todo congado é tocado apenas em atabaques e pelo povo negro, é subestimar a amplitude da mixagem cultural possível em vista da vastidão do país.
Mas fui longe demais. Voltemos ao assunto principal.
Os laços fortes que ligam as comunidades de Poço d'Água e José Silva fazem com que se auxiliem na arrecadação, no transporte e na gerência mútua do gado que sobra dos leilões. Ouvi dos organizadores do evento de Poço d'Água que garrotes e bois, que não tinham sido leiloados, eram mantidos e eventualmente engordados em pastos do José Silva até a festa do ano seguinte, ou vice versa, o que nos dá uma ideia da complexa rede de apoios que se forma para a manutenção da empresa a longo prazo.
Estive ausente nos últimos anos e soube que as ofertas de prendas valiosas para o leilão quase secaram nas festas de Poço d'Água, por causa do desastre econômico, sem falar que tudo parou por dois anos por conta da pandemia. Os dotes de gado vinham sendo especialmente generosos porque o povoado se situa a meio caminho entre as cidades de Minas Novas, Turmalina e Capelinha, pelo asfalto, o que atrai ao evento gente de posses de todos os lados. Também porque existiu, até poucos anos atrás, uma intensa migração de mão de obra local para os canteiros da indústria petrolífera. Um vai puxando o outro, as turmas vão se formando na arte da soldagem das tubulações de óleo e gás, um serviço especializado muito mais bem pago que os outros disponíveis, de cortador de cana ou auxiliar de pedreiro, por exemplo. Mas as crises dos últimos anos têm limitado os contratos de obra e as contratações de pessoal no ramo diminuíram muito. Lá na ponta, murcharam também os donativos que abrilhantavam as festas do lugarejo.
A função política, nesses festivais, é exercida por líderes que, munidos de contatos que transcendem o pequeno núcleo da comunidade, viajam pelo campo, e vão para as sedes dos municípios ou vilarejos próximos, buscando seduzir os mais remediados para que contribuam com os festeiros do ano. Enquanto agem em nome de sua localidade, andam muito, reforçam velhas relações e entabulam novas, ampliam a rede de contribuintes, e vão também construindo seu pequeno "patrimônio" de prestígio pessoal. Alguns, sentindo-se fortes o bastante, se lançam na política propriamente dita, dita "partidária". Mas esse é outro assunto.
A folia não funcionaria, obviamente, sem uma robusta base material, sem os que, não podendo ou não querendo doar bens fabricados ou "in natura", "pagam" com amor e suor para a roda girar.
Já me referi aos "burocratas", os que arrecadam e armazenam, seja dinheiro, seja produto da indústria, seja prenda caseira, seja cabeça de gado; os que aplicam as riquezas recolhidas, revertendo ao cortejo santo os elementos de que ele precisa e, quando não, os dízimos à Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Contratam ou gerenciam serviços, organizam e fiscalizam os diversos eventos que compõem a festa, remetem as matérias primas necessárias a dezenas de trabalhadores e trabalhadoras braçais, entre as quais se destacam as cozinheiras duronas, infatigáveis, que mexem e remexem arroz, feijão e carne em tachões fumegantes, entornam rios de farofa forte nas mãos em concha da gente esfomeada, ou enchem pilhas e pilhas de pratos descartáveis e os despejam na multidão, indiferentemente, para todos os presentes ao terreiro da apoteose.
Vídeo - distribuição do almoço durante a festa de encerramento da folia de Reis de Santa Rita - 06/01/2015
Frequentemente esquecidas porque atuam nas bordas do espetáculo, as cozinheiras podem não brilhar, não buscam brilhar, afinal, são mãezonas que alimentam a família e agregados há décadas e foram preparadas desde meninas para isso mesmo, meter a mão na massa e brilhar na sombra. Elas são o coração humilde e vital da folia. No fundo, todo mundo sabe. Durante a festa, essas forças poderosas se unem e animadamente cozinham para duzentas pessoas nos maiores "pousos" de roça e até duas mil no encerramento do "giro", que é quando começa a grande festa, coroada pelos shows de fogos e de forró. A qualquer hora da noite, quando bate aquele fomão, seja quem for, pode passar na cozinha ao lado do salão de dança e pegar um prato com arroz e farofa de "toicin" ou uma cuba de caldo de mandioca e carne seca bem quentinho, delícias supremas, salvação da pátria.
Vídeo - distribuição de caldo de mandioca durante o giro da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 15/01/2012
E o que seria do giro sem os quebra-galhos ou os faz-tudos de toda qualidade, alguém que pode trocar gratuita e alegremente uma ferradura que está machucando a mula de um folião bem prezado, que bota para funcionar um Chevete velho que vai carregar panelas e mantimentos do pouso da manhã para o da noite ou que serve de motorista numa outra diligência qualquer.
Foto - trocando por gentileza a ferradura da montaria do "companheiro bão" durante o giro da folia de São Sebastião de Inácio Félix - 17/01/2017
Que coisa mais linda, uma vanguarda de tarefeiros do corpo e da alma dando seu melhor para energizar o todo comunal num momento, não de subversão, mas de potencialização da ordem!
Foto - enrolando por gentileza um segmento de corrente de transmissão em torno do pneu da moto do amigo de farra para permitir melhor tração nas estradas de barro durante um período muito chuvoso do giro da folia de São Sebastião de Inácio Félix - 19/01/2016
E isso não é tudo. Há quem saia por aí, sem que ninguém tenha mandado, a reunir os donativos de gado nos pastos, currais, chiqueiros, galinheiros e depois transportá-los, a pé, de moto ou de carro, até o palco dos leilões.
Vídeo - recolhendo ao curral do leilão algumas cabeças de gado arrecadadas nas redondezas para a festa de São Sebastião de Poço d'Água - 29/12/2014
E o que dizer dos "gritadores de lances"? Durante o giro rural da folia e nas festas finais, são atores indispensáveis. Sua função também reúne um conjunto de talentos que não são de qualquer um. O bom leiloeiro pode, com sua arte, favorecer o aumento do valor dos lances, hipnotizar os doadores, estimular a competição entre eles, ou colocar lenha na fogueira da plateia, entre outras malandragens para tirar do particular e fazer o bolo geral crescer.
Vídeo - "um cara igual Raimundin tem que gastar dinheiro mesmo!" - "Tem dinheiro não, moço!" - Coqueiro Campo - 19/01/2012
Um homem pode ser muito valioso ao ritual da folia por se tratar de um refinado poeta cantador, virtude incomum porém essencial às dinâmicas cerimoniais, mas nenhum dos que conheci no Fanado, à exceção de Odair, servia como mestre folião e também como gritador de prendas. Ou seja, tem função para todo tipo de gente.
Vídeo - Odair, em seu estilo muito peculiar, grita os lances do leilão de um belo frango durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 10/01/2010
O teatro precisa, de fato, de uma base material, precisa do doador, do gerente, do tarefeiro, do leiloeiro, e de uma base espiritual, precisa do artista, do compositor, do ator.
Zé Pequeno e seus divertidos companheiros foliões convocam para o almoço durante folia de São Sebastião de Vendinhas - 23/01/2099
Existem as lideranças que centralizam as arrecadações da festa, mas todo o esforço social, de múltiplas tarefas, é organizado com tamanha espontaneidade, sem grandes planejamentos, reuniões exaustivas, cada um vai vivendo sua vida normal e ao mesmo tempo fazendo um extra nas tarefas estipuladas e, quando se vê, está pronta a pajelança! Sempre me surpreendo com a eficiência dessa gente, com o modo como se organizam para nunca faltar comida, café, suco, água gelada ou aguardente, pão, bolo, biscoito, doce, em abundância, em reuniões tão grandes, de gente que aparece do nada a pé, a cavalo, de carro, das roças vizinhas, de outras mais distantes, ou das cidades, trazida, tantas vezes, por parentes, ou na cola de amigos. É impossível saber quantos vão aparecer, mas ocorre algum tipo de inteligência comunitária, um cálculo social quase sempre correto já que ao final tudo dá certo, fecham-se as contas, paga-se o músico profissional e suas dançarinas, o pessoal que armou o foguetório, os técnicos de som, os montadores de palco, e não é raro que sobrem recursos que são encorpados no decorrer do ano, também coletivamente.
Claro, há diferenças individuais, existe gente ambiciosa que, direta ou indiretamente, se aproveita da riqueza comum assim centralizada para objetivos pessoais e já ouvi muitas reclamações sobre apropriações indébitas, difíceis de comprovar, pois há muito diz-que-me-disse, e nunca se sabe. Mas posso assegurar que, no geral, a coisa toda funciona de modo tão preciso quanto orgânico. Acho isso admirável!
Mas calma, ainda não acabou. Existem também aqueles que fazem e dão de própria mão ou encomendam de terceiros para repassar as doações destinadas aos leilões de mesa: broas, pães, pratos feitos, leitões, perus, frangos, lombos assados que devem ademais se compor em arranjos tentadores de papel celofane de modo a que façam jus ao maior lance possível capaz de reverter à sociedade festeira, à santidade, à divindade.
E não nos esqueçamos dos oficiais, os comandantes formais, que não precisam possuir as virtudes artísticas necessárias que dão calor humano ao teatro, efusão e também delicadeza, refinamento artístico, poesia, não precisam. São contadores, delegados e juízes, essenciais do ponto de vista da organização formal do evento.
O chamado "procurador" faz papel de homem da lei, repreende os faltosos e descompromissados, bota moral na rapaziada, lembra a hora da reza aos pingaiados, preocupa-se com o tempo conforme o todo do giro e não conforme o pouso em particular. Por melhor que seja a estadia, tira o barco da folia de dentro de uma casa bem fornida e animada e o relança ao mar, porque ainda faltam muitas outras a visitar e, se deixar, o povo se esquece e vai ficando no "bem-bão". Mas aqui não é a casa da Mãe Joana não, afinal, alguém precisa ser o pai castrador dessa matilha!
Vídeo - procurador da folia de Reis de Poço d'Água conclama a todos a se comportarem bem durante o giro noturno pelas casas do povoado - 04/01/2012
O procurador também recolhe e transporta os donativos miúdos recolhidos de casa em casa, além de carregar o emblema do santo quando ninguém mais se oferece para a tarefa, sobretudo nos ermos por onde passa a procissão, levada apenas pelo núcleo dos foliões indispensáveis e cantadores "ponta-firmes".
Foto - Joaquim Grande carrega a bandeira de São Sebastião e Ti João Caixeiro bate alto e ligeiro a caixa convocando a quem quer que a ouça nas roças circundantes para que se junte ao giro da folia de Coqueiro Campo - 15/01/2013
Resta falar dos festeiros, às vezes encarnados nos personagens de Rei e Rainha, como ocorre nas comemorações do Rosário na região. O casal principal coordena familiares, amigos, diversos membros da comunidade no grande esforço de organização e realização dos festejos e ganha o direito de posar em destaque no ápice dos desfiles.
Vídeo - o congado de Minas Novas presta homenagem ao rei e à rainha da festa de Nossa Senhora do Rosário - 23/06/2022
Mas na folia todo mundo, da nobreza à ralé, é peça fundamental do todo, até o "porreteiro", o agente do caos, que não ajuda em nada, quando não atrapalha, e não desgruda do giro nem a pau. No mais, todos concordam: "sem porreteiro, não tem folia" (loucura em francês se diz "folie").
Vídeo - "sem porreteiro não tem folia" no povoado do Buriti - 20/01/2012
Verdade, a folia perderia muito de seu lado folguedo sem os quebra-ossos, a turba dos ingratos à comunidade do santo, os aproveitadores, uns menos, outros mais alheios ao coração do fenômeno que é a troca de valores imensuráveis de afeto.
Vídeo - nunca falta animação ao simplório Joaquim de Virgínia enquanto ensaia com o dono da casa, o Isidro, um "vilão", para espantar a pasmaceira do início do "giro" do dia da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo passando por Terra Cavada - 15/01/2013
São diversos os seus propósitos: há os que deram as caras mesmo só para "pegar fogo", a exemplo da molecada de noção ainda primária das regras superiores do ritual; há os incapazes de compromisso, os preguiçosos, os relapsos; há até os perversos, aqueles espontâneos e aqueles destilados no álcool; há ainda os muitos que estão ali para tirar proveitos outros, politicagem, negócio, paquera, para se informar ou falar da vida alheia, beber e comer de graça, enfim, a lista é grande mas, interessante, são acolhidos, todos, a princípio, sem grandes reservas, e integrados ao rito que celebra o desprendimento, o altruísmo, a santidade.
Vídeo - Servo, invariavelmente ébrio, trovador de grande memória, canta uma estrofe dos grandes modões que prima em decorar, durante folia de São Sebastião de Coqueiro Compo - 06/01/2014
Nunca vi, em toda minha vida, um espetáculo maior da democracia!
Durante tantos anos trabalhando sempre sozinho e por períodos restritos, lamento não ter reunido dados quantitativos sobre a riqueza material acumulada, gerenciada, redistribuída durante esse verdadeiro festival da dádiva indígena que é a folia cristã sertaneja.
A folia de Cunha, na Serra do Mar de São Paulo, na década de 1940, mantinha a casa do pouso principal, no centro da cidade, com dois fogões a lenha ativos dia e noite durante os sete dias da festona que fechava a longa viagem da bandeira do Divino. Ininterruptamente, dava-se comida, bebida e guloseimas ao povo folião que ia, vinha e voltava, ou seja, era uma empresa riquíssima e sem hierarquias, uma roda gigante de gente maravilhosa.
Muitos brasileiros privilegiados, alguns até muito bem intencionados, costumam reconhecer esses outros brasileiros, nossa gente também, resistente, vigorosa e criativa, como "pobres".
A que erros pode levar um ponto de vista mal fundamentado!
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Todas as fotografias e vídeos constantes desse blog foram captados pelo
autor e aqui expostos generosamente. Recomenda-se moderação no
lançamento dessas imagens, desacompanhadas
do texto, na terra sem leis da Internet. Compartilhem, por favor, a obra, mas devidamente identificada, através dos links do blog e do canal do youtube, obrigado.


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