FOLIAS DE ROÇA DO FANADO: O TEATRO AO RÉS DO CHÃO

Foto - uma bandeira do Divino Espírito Santo aposentou-se como quadro na parede de uma das casas do giro da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 11/01/2010 *

De minhas andanças de campo, temas de estudo interessantes vão surgindo. É inevitável. Afinal, o mundo é vasto, é rico. 

Desejas saberes? 

Serás saciado. 

Há dias venho pensando, por exemplo, em quando, na história humana, e de que formas, o teatro subiu ao palco. Quando e como o teatro foi arrancado do seio da sociedade nativa em festa? Quando e como ele passou a ser situado em destaque ou em pedestal? Quando o artista e os técnicos especialistas na profissão, de um lado, e a plateia, o vulgo, o público genérico, de outro, se separaram? Como se dissociou, do evento artístico dinâmico, a audiência estática, passiva, mera observadora? 

Na certa esse fenômeno se deu em vários períodos históricos, e em várias culturas, durante o longo percurso que leva os povos selvagens e camponeses, ligados à terra, em direção à urbanização e ao desenvolvimento de ofícios especializados que fabricam produtos padrão para consumidores padrão: técnico de teatro, figurinista, roteirista, diretor e "ator" (aquele que age), de uma parte e, de outra, a assistência leiga, imóvel, à sombra, em silêncio como um todo, mixados os sujeitos que a compõem.

As comunidades tribais e camponesas estão ligadas à terra de corpo presente, ou seja, produzem e reproduzem a vida em luta contra os elementos naturais e com pouco mais do que as próprias mãos. O trabalho artesanal nada mais é do que o corpo produzindo com as forças físicas primárias a partir de uma luta, forte, fortalecedora, cotidiana, com os elementos naturais, tendo como armas as técnicas sociais, os implementos e as ferramentas mais elementares: catar a machado, a foice, a enxada, a mão, um rol de matérias primas, argilas, raízes, bambus, tocos e galhos e fazer tudo isso andando muito, sob chuva, sob sol; quebrar, peneirar, fazer a pelota de barro; modelar, partindo do bloco até o menor detalhe, da força à minúcia; queimar a panela, a moringa, o pote; suar a fronte por horas defronte fornalhas; construir, com alma feminina e muita massa muscular, para depois rebocar de tabatinga branca o fogão de adobes a lenha onde se vai cozinhar; plantar; carpir, colher, milho, feijão, mandioca, abóbora, chuchu; tecer cestas e receitas a partir do quintal, da base; torrar farinha, assar leitão; refogar couve; fritar batata, brigando diretamente com pau de toda sorte; cavar do toco a caixa de guerra e o atabaque para, você mesmo, depois bater, no dia da festa, no arrasto da companheirada; tocar violão ou viola e cantar; ousar, caramba!, criar do nada, compor, porque sendo a poesia patrimônio comum como a comida e a bebida da folia, todos sabem por experiência que inventar letra e música não é nada de outro mundo, qualquer um pode tentar, sendo ousado o bastante, usando da melhor forma possível os materiais simbólicos que se tem ao alcance dos seis sentidos que possuímos se é que não é mais. 

Foto - mexida bruta da cozinha no pouso em casa de Aparecida, no povoado do Buriti, durante passagem da folia de São Sebastião - 22/01/2011

No ambiente nativo, a poesia é tangível, terrena, disponível para qualquer um que se disponha a aprender, sem pressões, quase sem perceber ou mesmo se divertindo. Aquele que produz e executa, bem ou mal, a obra de arte, é só um a mais na comunidade em movimento de espetáculo, caboclo pobre de bens, como todos os demais, situados, todos, ao nível do chão. Portanto basta que se tenha uma violinha rota, um prato de latão batucado a cabo de garfo, a voz minimamente bem tonada, e a mente ativa, a mente disposta para versejar, para responder verso jogado, para memorizar umas poucas estrofes básicas e saborosas como biscoitos de polvilho, água e sal, só, basta apenas isso, ingredientes básicos porém mais do que suficientes.

As crianças, umas mais dotadas, outras menos, todas aprendem a seu modo, fazer panela, cozinhar, cantar, tocar tambor, jogar verso, sem horários rígidos, sem testes bimestrais, sem graus de provação e aprovação, tudo é assimilado de maneira tão natural que se alguém pergunta aos mais idosos com quem aprenderam esse ou aquele ofício, paneleira, raizeira, pescador, poeta cantador boiadeiro ou o que seja, respondem: "eu aprendi posso dizer que foi com Deus" porque sabem fazer bem a coisa mas jamais se perceberam como sendo ensinados a fazê-la, assimilaram só por se estar presente e observar, cada qual seu estilo, com suas preferências e potências muito particulares, no simples dia a dia, grudando no velho líder comunitário ou noutra guia segura, admirando a habilidade do pai, da tia, da prima, do irmão, do avô do coleguinha, da vizinha, enquanto exercem, cada um, suas artes cotidianas.

Foto - cantando e batendo palmas durante a festa final da folia de Reis em Santa Rita, povoado do município de Chapada do Norte - 06/01/2016

Hei de reconhecer, os poetas populares não compõem lá grandes sonetos shakespearianos, verdade. Não possuem, infelizmente, o aparato cultural para irem assim tão alto em habilidades literárias. Mas posso assegurar que, muitas vezes, apesar da pobreza de recursos, eles produzem coletivamente performances das mais fluidas, instigantes, vitalizantes, e, a despeito do invólucro rústico, possuem finezas muito próprias. Vá lá pra ver!

Em outras palavras, o aprendizado social oferecido em sociedades nativas pode não ser tão diversificado, tecnológico e refinado como entre nós, que vivemos nas cidades modernas, mas o pouco que se tem a ensinar é oferecido indiferentemente a todos, ou a todos os que se disponham a aprender, vivendo simplesmente o momento de arte e ofício, um dia após o outro, uma festa após a outra, na prática. 

E, todo mundo sabe, em termos humanos, tudo é matéria para grandes criações. Em outros textos vou falar da tecnologia social que está por trás da incrível capacidade dessas redes de comunidades caboclas promoverem, uma ou duas vezes ao ano, um evento com o dinamismo e as dimensões de uma folia, que mobiliza uma quantidade impressionante de serviços de arrecadação, distribuição, gerência e execução de recursos comunitários. E estou falando das festas atuais, apenas um vestígio do que se viu antigamente.

O mais assombroso é que ainda é possível observar esse teatro artesanal comunal acontecendo a mil quilômetros de São Paulo/Capital, ou seja, o fenômeno, no momento em que vos falo, está ocorrendo no ambiente do sertão que todavia subsiste no cerne mesmo da nossa sociedade industrial, tecnológica, financeirizada, sociedade que produz um modo de ser, relacionar, fazer e comerciar que hoje está em toda parte e é dominado até a medula pelo espírito mercantil, pela lógica monetarista: de um lado o consumidor geral, de outro, o "show" de entradas pagas. 

Sim, os processos históricos, como todos os processos, são complexos e muitas vezes contraditórios. O carnaval brasileiro atual, por exemplo, ainda tem esse lado ancestral, intra-festivo, orgânico, do teatro "primitivo", por exemplo, nos blocos de rua em que o povão suspende classes e toda a gente se mistura aos condutores do povo em polvorosa, tambores, bandas de sopro, bonecões, grupos de fantasia, todos desfilando conforme um corpo social único, sem aparentes diferenciações. 

Sempre haverá, na certa, nessas festas gerais e gratuitas, quem veio para assistir, mas nos blocos de rua do carnaval brasileiro o sujeito só é só espectador se assim desejar pois não existe nenhuma barreira social ou física que o impeça de se juntar ao "palco" sem limites do evento, ao nível da rua, o mesmo nível para todos, como ocorre nas folias das roças sertanejas. 

Carnaval e folia também estão sempre em movimento, como um barco ébrio que quer conquistar, à força de alegria, falsa que o seja, o mundo chato, concreto, do dia a dia, que encerra o horizonte da vida no campo e na cidade.

Mas em nosso carnaval também há o lado "moderno", de espetáculo e público um do outro apartados fisicamente, alienados de corpo a corpo. No caso a coisa se tornou um exagero de máscaras, vestes, poses e temáticas suntuosas desfilando a céu aberto para o regozijo da multidão dos pagantes que lotam grandes estádios, os chamados "sambódromos". 

Em seus próprios coliseus, dois milênios atrás, o povão da Roma Imperial ia ao circo (círculo) para assistir às mortais corridas de bigas ou para ver os bons cristãos sendo esquartejados por espadas, lanças, hienas e chacais. 

Hoje, em tese, com nossos grandes campeonatos de futebol, somos mais "civilizados" do que os antigos romanos que, imaginem, se chamavam a si mesmos de "civilizados" para se diferenciarem daqueles a quem deram o nome de "bárbaros". Ora, os romanos eram civis vis selvagens até com seus próprios cidadãos. Vejam o caso interessante desse Santo Sebastião, alvejado enquanto ostentava os farrapos de suas vestes de soldado do imperador, no tom característico, vermelho escuro.

Foto - o condutor da bandeira da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo depositou a bandeira do santo durante a passagem do cortejo pela casa de Rita de tia Luzia, na comunidade de Palmeiras, numa linha de pregos existente ao lado da relíquia da bandeira do Divino que foi posta ali como enfeite há muitos anos e já estava se decompondo - 11/01/2010 

Mas antes dos colossos imperais, antes que o espetáculo organizado tivesse se desenvolvido com a urbanização, festivais meio sagrados, meio pagãos, meio da cidade, meio da roça, na certa existiram: teatros vivos que vagavam entre as ruas e as trilhas rurais, encenados pela população local para si mesma, algo talvez semelhante ao que ainda hoje acontece nas folias genuinamente sertanejas, mais ou menos preservadas.

Foto - Ti João Caixeiro vai por estradas e trilhas de Coqueiro Campo e Terra Cavada a bater a caixa de guerra bem alto e rápido como uma metralhadora, um convite a todos os que moram nas grotas das redondezas para que se juntem à procissão no dia de São Sebastião - 20/01/2011

Li, não sei onde, que as folias de hoje ainda se movem num formato muito antigo, originado já entre os primeiros cristãos, durante os últimos séculos de Roma. Talvez tenham sido, no início, ritos complexos resultantes da fusão de tradições "pagãs" e cristãs (a palavra "pagão" é invenção de cristão, daí as aspas). Naqueles tempos de grandes mudanças culturais, esse tipo de ritual sacro-carnavalesco acaso seria, ainda, pouco influenciado pela ordem de costumes severos que em breve iria se impor, durante o período medieval? Seja como for, o modelo cerimonial pode ter atravessado, de algum modo, a chamada "Idade das Trevas" e, em seguida ao "Renascimento", pode ter viajado com os conquistadores até as Américas e sobrevivido na forma das atuais (as últimas) folias sertanejas, quem sabe.

Foto - folião experimentado descansa das andanças da bandeira enquanto curte os versos que os rapazes jogam, em homenagem ao dono da casa, durante o giro da folia de São Sebastião de Coqueiro Campo em passagem pela comunidade vizinha de Terra Cavada - 16/01/2011

Só sei que a tradição é velha e que, apesar das mudanças de costumes e essências da fé, que se aceleram nos tempos modernos, ela segue sendo fiel às raízes. As folias que, nos últimos vinte anos, acompanhei no Sertão do Fanado continuam a se constituir no formato desse teatro intra-festivo e em contínuo deslocamento que pode ser um fóssil vivo muito antigo da arte cênica. É feito pelas pessoas do lugar, Santa Rita, Bem Posta, Brejo, Areião, Córrego de Helena, para as pessoas do lugar e, no mais, outras poucas e boas vindas de meia jornada a cavalo, desde o outro lado do vale: do Galego, Vendinhas, Poço d'Água, Buriti, Campo Alegre, Terra Cavada, Palmeiras, Inácio Félix. E o "palco" onde o giro (o círculo) se desenrola é onde o povo cristão (ou nem tanto) reunido está: na capela, de casa em casa, na sala, varanda ou cozinha, nos quintais, na estrada, na trilha, por onde para ou passa a bandeira.

Foto - o jovem Lói ajuda a marcar o compasso enquanto bate uma colher numa tampa de panela e tenta "pegar o caboclo" que Genilson compõe, de improviso, e propõe à memória do grupo "respondedor" durante a  folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 14/01/2011
 
Como toda peça teatral, a folia tem diversos personagens, entre os anônimos de passagem, os colaboradores, os fixos e os eventuais, os figurantes mais ou menos assíduos e, em destaque, aqueles verdadeiramente fiéis, os guias que carregam pelo mundo o emblema do santo, e o depositam de pousada em pousada para ser cantado em verso, louvado e venerado. 

Esses mais fiéis ao giro, no Fanado, chamam-se a si mesmos de "foliões", querendo dizer, talvez, com isso, que são "os genuínos foliões". Assim se separam, de certa forma, dos que vieram para ajudar ou mesmo só para acompanhar, sem maiores pretensões, e principalmente, se diferenciam dos "porreteiros", ou seja, dos que aparecem mais pelo "rango" ou pelo  "gól" de graça, pela chance da paquera, da "azaração", quando não só pelo "barulho", pela "zoeira", pra compor a cena da zombaria, da competição machã, da molecagem. 

Vê-se que na folia, apesar da falta de fronteiras físicas ou sociais isolando as pessoas, como acontece em muitas festas modernas, não deixa de existir uma certa hierarquia que divide os "de cima" e os "de baixo".

Seja como for, há espaço no leigo para o sagrado e vice versa, é típico da folia essa passagem frequente da "obrigação" para a "brincadeira". Aos chefes foliões cabe impor o ritmo alternado, ora gozo, ora "compromisso", ora dispersão, ora concentração, ora circo, ora oração, ora pouso, ora migração.

Meu querido amigo Joaquim Grande, falecido em 2014, folião compromissado por excelência, pau para toda obra, se serve durante o almoço da folia na casa de seu cunhado Ci, pouso tradicional da bandeira de São Sebastião  - 19/01/2011

"Óóói a obrigação!" - é preciso que alguém da "diretoria", alguém como Joaquim Grande, grite alto a toda hora aos mais desavisados, no meio da balbúrdia, afinal, a farra é válida mas o objetivo último sempre tem que ser o são, o santo, o divino, acima de tudo. Assim, dada a base moral, quem passar dos limites tem duas escolhas: ou vai ter que "quetar", se moldar ao bem comum ou, se insistir em ser bicho, vai ter que voltar para a noite grande do sertão de onde veio. 

Entre os "ponta-firmes", os foliões propriamente ditos, há os principais, notadamente os mestres poetas cantadores, os "puxadores de verso". Eles lideram e conduzem os grupos de quatro vozes que se espelham, fazendo letra e melodia irem e voltarem tantas vezes quantas sejam necessárias para que se memorizem. 

O mesmo esquema de quatro vozes confrontadas compõe, como dizem, o "canto da folia", a ladainha sacra, de um lado e, de outro, os cantos-danças laicos: "caboclos", "noves", "rodas", "vilãos", catiras de quatro chamadas "paulistas". Hoje em dia, os três últimos estão em extinção e outros tantos devem ter existido e já se foram da memória coletiva.

O "nove" tenta agregar o máximo de gente entre os que vieram ao pouso do momento da bandeira. Os presentes (que podem variar, de uma casa a outra) vão se agregando aos poucos, quem queira se achegar e se aconchegar. Ninguém força ninguém a entrar ou permanecer na roda, porém, pulou para dentro, fica chato sair porque assim se desmembra uma das filas de quatro, quebra-se a regra matemática, o pilar que dá eficácia à cena teatral. Como todos compreendem o funcionamento da coisa, são raros os abandonos, embora ocorram substituições.

Foto - no "nove" nada impede que se chupe o limão do dono da casa para "limpar boca de pinga" ou se faça uma graça com quem se encara ou se roça na contradança, desde que respeitosamente, pois o clima é ao mesmo tempo familiar e relaxado durante a folia de São Sebastião de passagem pelo povoado do Buriti - 14/01/2011

No "caboclo" ocorre uma descontraída atitude de confronto entre os dois grupos, aquele que lança a cantiga e aquele que é desafiado, no ato, a "responder", a "pegar o verso jogado". Já no "nove" a intenção é mais envolver, agregar as pessoas numa espécie de redemoinho humano. A cada repetição, cinco, dez, vinte grupos de quatro, quantos houver e quantos forem entrando, vão girando, cantando e decorando a modinha. Ao fim de cada verso, os quartetos rodam sobre si mesmos e ao faze-lo defrontam os da fileira seguinte. Assim tece-se gradualmente o face a face de todos, e assim todos vão se mirando nos olhos enquanto cantam e gravam melodia e letra. Desse modo também os grupos vão migrando, de rodada em rodada, do ponto em que a dança iniciou até aquele em que, cada um, retorna à formação de oito membros, os mesmo quatro a quatro que se espelharam na partida. Com essa assimilação coletiva dos entes presentes ao ato assim como do mantra organicizante, timidamente, no começo, porém, com o tempo, de modo mais solto, o coral vai ganhando corpo e alma na medida em que se descontrai. Para quem está dentro e para quem está fora, dá para sentir no ar como aos pouquinhos vai se encorpando a carga afetiva do ato teatral. Uma beleza! Com certeza, uma das sete milhões de maravilhas do mundo!

Foto - Genilson puxa a marchinha que embala a embolação de gente durante "nove" dançado em casa de Pedro, irmão de Joaquim Grande, durante a folia de São Sebastião de Coqueiro Campo - 21/01/2011

Funciona assim: quanto mais gente entra no jogo, tanto mais filas e mais giros e mais carga emotivadora, até que os oito puxadores, com seus batuques e violas, tendo ido e voltado de uma ponta a outra das filas, tornam a se encarar, encerrando a peça, afinal, tudo que é bom tem que durar mesmo é pouco porque senão acaba perdendo a graça.

O esteio desse dança-trança do povo geral é o poder do verso, vivi esse espetáculo de dentro, posso assegurar. Sem a força desafiadora do poeta encantador, a reza (e muito menos a trova "pagã") não se dinamizariam, não se sublimariam. Cachaça e pose social são excelentes artifícios de festa mas e a "finesse"? E a rima rica? E o sentido audaz? E o revirar os nós do sentimento? 

Quem já viu no calor de dentro como funciona esse jogo popular do improviso com classe literária, sabe como é e quer mais.

Os compositores são os únicos que, no frigir dos ovos, fazem o drama moral do circo nômade florescer, eu acho. Sem a presença de espírito, sem a postura ritual, sem a homenagem respeitosa aos mestres do passado, sem a inteligência fina, o brilho e o charme do poeta-trovador, teríamos, no máximo, uma boa arruaça, um ajuntamento de gente excitada, sem propósitos elevados e sem conexão com forças maiores (Deus, o Santo, a Madre Igreja, o rito, a comunidade organicamente organizada, o teatro, a música, a literatura). 

O artista do povo, tête à tête, tom sobre tom, se apresenta nos entremeios para os de alrededor, todo e qualquer presente àquele mero rés do chão e que se proponha responder, com voz encorpada, ao verso proposto. E é aí que bate no peito a carga poética que vem do improviso, do imediato exclusivo, nós entre nós, aqui, agora e nunca mais. Essa surpresa, essa novidade resultante da invenção artística, tanto mais vivaz quanto mais fugaz, é o motor da cena comum, sempre imprevisível e, por isso mesmo, tanto mais excitante.

Ao fim de cada "apresentação" dos foliões principais também podemos sentir, entre todos, os que criaram e os que desfrutamos do momento teatral, o sentimento da gratidão. Todos nós ficamos gratificados, senão pela dádiva poética do mestre, pela força estética que nos uniu e nos nutriu coletivamente durante o ato. 

Em meio a velhos camponeses mais ou menos iletrados, surpresa nenhuma (isso ocorreu e ocorre em várias sociedades comunais ligadas à terra), existe um forte senso social do valor da poesia, do valor do poeta cantador. Nesse ambiente, desenvolve-se um gosto genuíno pela arte literária, apesar de recursos formais muito limitados.

Por outro lado, o que chamo de "a baixa modernidade", rasteira, tosca como é, está tornando raro, na cidade e também nos sertões, o sentido que permite ver o valor dessas preciosidades artesanais da vida do povo nativo. O espírito citadino, hiper-higiênico, impecável, protegido, cerebral, mecânico, eletrodomesticado, torce o nariz para tudo que contrasta com ele muito fortemente.

Não é o nariz que cheira, é o espírito e o espírito é um barro plástico modelado pela herança cultural. Dependendo da cultura que formou o espírito, o perfume, a comida, a música de outra cultura, por mais sublimes, podem incomodar ou mesmo causar repúdio. E tem gente que acha que cheirar, comer ou ouvir são fatos biológicos. Engano enorme! No ser humano feito adulto a alma simbólica condiciona todas as funções vitais. A maioria dos brasileiros ingere carne de boi ou porco aos montes, numa boa, mas pode vomitar se souber que comeu por engano um bife de cavalo. Se se pergunta o porque da diferença de reação, provavelmente o enojado não saiba dizer, afinal, em teoria, não existe grande diferença material entre uma carne e outra. Trata-se de uma repugnância socialmente induzida que virou um sentimento profundo, a náusea. Contudo, quem o sente desconhece de onde veio, afinal não existem, entre brasileiros, normas ou costumes ensinados às crianças que imponham tabus sobre a carne de cavalo. É uma ideologia silenciosa. Para se ver como sentidos culturais ancestrais penetram fundo na mente humana.

Não culpo ninguém, a maioria de nós ainda vive apenas um único modo de vida, e tudo consideramos conforme a régua estrita do nosso próprio modo de vida. É um desperdício medonho de riquezas de diálogo, de trocas simbólicas e materiais e, por isso mesmo, uma história de extermínios que nunca acaba. 

Que posso euzinho sozinho fazer contra tão enorme tsunami? Foi assim, no interiorzão do Brasil, durante a conquista do índio pelo cristão, do negro escravizado pelo senhor de engenho de cana, do agricultor e pecuarista caboclos pelos coronéis fazendeiros, e continua sendo assim, mundos incomunicáveis, o mais forte vai se impondo e impondo o massacre de vidas e de velhas tradições teatro-músico-literárias, arquiteto-astronômicas, cerâmico-culinárias, filosófico-médico-xamânicas, enfim, culturas e mais culturas, inteiras, pouco a pouco submissas até que morram, todas, num dia sombrio, restando apenas uma, a "nossa cultura global", a cultura final, brilhantíssima e fria como uma porta de alumínio. 

A boa folia não, a boa folia é de outro mundo, da poeira, do pedregulho, do barro. Porém tal folia, das essências, só subsiste onde ainda subsistam o velho poeta cantador e, como cenário de fundo, vestígios do antigo contexto da vida sertaneja. 

Alguns de meus amigos foliões da velha guarda, e também alguns dentre os mais jovens, ao perceberem que eu quase não bebo álcool, sobretudo cachaça, durante o giro, não se contentam com minha postura excessivamente reservada. Não posso dizer pra eles que estou "trabalhando", soaria pedante demais, então me calo e aceito tudo, bons e maus conselhos, sinceras e fingidas admoestações. Em dado momento da jornada louca, é certo, um cabra não vai mais se aguentar, acabará me chamando num canto pra dizer: "ooo companheiro escuta aqui mas assim não vai dar, você 'tá muito chocho, tem que calibrar, tem que calibrar mais nós sô! Não pode beber muito, tudo bem, mas também não pode beber pouco não, homem, sai dessa!" 

Pode parecer gozação, mas não, é sério, e é sabedoria (e é também uma técnica de sustentação do êxtase). A viagem do cortejo santo pode ser longa e penosa, nem tanto para as pernas afeitas ao trabalho duro e às longas caminhadas "de a pé", mas para o espírito embriagado que precisa se manter sempre aceso, excitado, e ao mesmo tempo altivo, composto, de modo a preservar a pose ou, quando chamado ao "palco", manter o papel dinamizador do músico poeta, centro das atenções, o que exige muita concentração, presença, dignidade, força mental no ato de compor assim como no de "responder". Se ficar muito ébrio, o "puxador", o "respondedor", uma ou duas das vozes do coro podem perder o compasso, a mente desatina, a viola desafina, a perna pesa, e daí é o ato faltoso, o vexame, a derrota na trama do desafio. Por outro lado, se o sujeito ficar muito careta e intimidado, a verve não funciona, ou não funciona pelo tempo extenso em que vai ser requisitada para o bem do espírito de festa, afinal, a bola não pode cair, jamais, numa festa, todos sabem. Parece fácil, mas não é, mesmo para os que têm meio século de prática ou mais: Ti Mané, Ti Zé, Ti Joaquim, Ti João Caixeiro, Antõe do Chapéu, João de Eva, Chato, Batista, Dé, Odair, Nestor e tantos outros. 

Certo, no fluxo nada se cristaliza, momentos ruins acontecem, o beberrão que exagerou e ficou pelo caminho, amanhã ou depois toma jeito e volta a brilhar, ninguém vai julga-lo pelo dia de hoje. Até certos bêbados inveterados, sobretudo se, com seu destempero, não causem muita perturbação, são respeitados e amparados nessas folias de amassar barro, é bonito de ver, a solidariedade aos degradados. Durante uma jornada, muitos se despedaçam, caem dos cavalos, se enlameiam, furam olhos cortando o labirinto de galhos das trilhas fechadas, rasgam a pele nas cercas de arame farpado e as calças nas farpas de quartzo das ribanceiras, se esfolam nos leitos de cascalho. Mas, por mais que os farristas e os depravados às vezes testem a paciência do "povo de Deus", existe, entre os que festejam, um ditado muito repetido: "sem porreteiro não tem folia" ou seja, tudo bem que o mote maior é a bandeira do santo mas, "sem doideira, não tem folia". 

Loucura em francês se diz "folie".

Nas roças mais "desenvolvidas" do sul de Minas e interior de São Paulo, hoje em dia, andam girando certas folias pomposas, limpinhas, comportadas, carentes da malandragem, do rebuliço, da embriaguez, da poesia rústica e refinada que vemos ainda vibrar por aí nos sertões imensos, país afora. A mim que conheço bem as primeiras, ainda muito originais, estas folias disciplinadas do sul pouco me atraem, confesso. Antes, ao vê-las em vídeos no "youtube", com seu brilho falso caubói, fico desolado. Jesus, como é chata e boba a vida burguesa!

* Todas as fotografias e vídeos constantes desse blog foram captados pelo autor e aqui expostos generosamente. Recomenda-se moderação no lançamento dessas imagens, desacompanhadas do texto, na terra sem leis da Internet. Compartilhem, por favor, a obra, mas devidamente identificada, através dos links do blog e do canal do youtube, obrigado.

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