SENSO ESTÉTICO NATIVO
Como gosto desses meus dois velhos companheiros de folia, Batista, experiente puxador de versos, e o sábio e recatado João da Eva!
Algo que me impressiona, quando entrego as fotos que tirei no ano anterior para pessoas nascidas e criadas no sertão, é sua sensibilidade para a qualidade artística dos registros, o que nem sempre acontece entre gente da cidade, para quem a arte fotográfica se tornou uma entre tantas banalidades tecnológicas, incapaz de provocar surpresa, olhar atento e abertura de coração.
Um dos amigos sertanejos que mais prezo é o Adão, filho de Batista, velho mestre folião. Na foto, ele aparece em destaque durante uma dança do "nove" feita ao ar livre, em terreiro de terra batida, melhor palco encontrado para o momento.
Adão se acostumou, ao longo dos anos, conforme costume local que acabei incitando, a ver e rever as cópias dos DVDs que produzo durante as folias na sua comunidade e nas vizinhas. Além dos originais, que presenteio a certos sujeitos estratégicos, de atitude mais comunitária, ou seja, dados a compartilhar a dádiva, inúmeras reproduções são feitas nas cidades a partir desses primeiros, a pedido de muita gente que aparece nas filmagens ou, simplesmente, gostou delas e quer exibi-las na região ou para o povo de fora.
Adão está na faixa dos trinta anos, tem duas filhas pequenas e, portanto, não é mais tão arraigado, de hábitos rústicos como muitos de seus conterrâneos, seus compadres, seus pais, tios e avós. Mas ostenta um jeito amoroso muito simples e direto que contrasta com sua estrutura forte e gestual vigoroso de trabalhador braçal e exímio domador de cavalos. Com esse jeitão autêntico, o cabra comove a gente de um modo inusitado e profundo que só vendo!
Certa vez eu filmava o cortejo da bandeira de São Sebastião que passava lá embaixo, desde o alto de um penhasco. A cena era linda. Adão de Batista surgiu de moto numa trilha que passava atrás de mim, com sua esposa, a ternura em pessoa, na garupa, e a filha mais nova espremidinha entre os dois.
Pararam para me observar trabalhando e ali ficaram uns instantes, até que o gigante manso exclamou, baixinho, achando talvez que eu estava distraído e não o escutava: "quando o Naldo tá aqui com a gente filmando a folia, ela parece até que fica mais bonita, né não?" Incrível! Para esse espírito grande de criança, o ponto de vista quase épico com que registro as cenas que ele assistiu a vida toda e se tornaram corriqueiras, foi capaz de encher o óbvio de novas cores, novas importâncias.
Ou seja, os DVDs, depois de anos rodando até roer e passando de mão em mão, possuem um poder de educação estética que, a princípio, eu jamais imaginei que pudessem ter.
Mas não é de surpreender que isso aconteça, pois certos caboclos e caboclas, incluindo alguns dos mais jovens, que perderam muitos hábitos, mas não a essência da alma sertaneja, possuem um senso estético desenvolvido no dia a dia que muitas vezes falta quase por completo ao brasileiro médio criado nas cidades, de alma por demais pragmática, quase toda voltada para a conquista do sucesso financeiro, a realização da vida puramente prática e o gozo alienado dos produtos prontos da indústria cultural.
Durante o giro da folia, quando a bandeira está descansando no pouso final ou na parada de uma das casas do roteiro, os velhos puxam uma cantiga improvisada, sem tambor, sem violão, sem espetáculo, assim do nada, entre si, só para se deleitar. Nesses momentos, ninguém atropela ninguém, ninguém pretende se sobrepor a ninguém, ninguém pretende roubar o centro da cena, tudo nasce de um movimento conjunto para o gozo dos presentes, o mais puro teatro vivo. Se um deles propõe uma moda das esquecidas, todos se exaltam, tanto mais quanto maior o nível alcóolico, e se dispõem em roda e encaixam diversos tons de voz, colaborando no cantar.
Numa dessas me animei também e propus uma canção das minhas, de meu mundo. Agindo assim, testando as reações, sabia de experiência, me expunha ao vexame pois, em geral, por temor ao desconhecido, não reagem muito bem a esses meus raros arroubos. Mas dessa vez deu certo, pra minha surpresa, entre os presentes houve um acolhimento tranquilo respeitoso. Batista, esperto, viajado, chegou a suspeitar que se tratava de música de nordestino, o que era de fato, do famoso compositor baiano, Gilberto Gil. Tasquei, comovido: "por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato, da catinga, do roçado, eu quase não falo, eu quase não tenho amigo, eu quase que não consigo, ficar na cidade sem viver contrariado. Por ser de lá, na certa por isso mesmo, não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo. Eu quase não falo, eu quase não vejo nada, sou como rês desgarrada, nessa multidão, boiada, caminhando a esmo". Coisa fina! E eu sabia, seriam muito capazes de senti-la e admira-la.
Ao fim da canção, impôs-se o silêncio. Deixei o palco da sala e me encaminhei para a cozinha. No trajeto, alguém abriu a porta e saiu do banheiro. Era um caboclinho surrado e suado de estrada, festa e cachaçaiada. Pelo jeito, estava cagando, concentradamente, enquanto me escutava cantando a cantiga lá fora. Cruzamos de passagem, dois segundos que duraram uma eternidade. O bastante para ver que ele me mirava admirado, intensamente tocado, de olhos marejados.
Quando foi que consegui, ó céus, em ambiente urbano, mover assim uma alma só com minha voz, pura e simples, sem ornamentos?
Outro fenômeno interessante que comprova essa minha "tese". Observei mais de uma vez, nessas festas, os rapazes e moças, de vinte anos ou menos, tentando puxar um coro em roda com as canções da moda, rasteiras, padronizadas, previsíveis, do estilo falso sertanejo que ouvem no rádio, assistem na televisão ou baixam da internet. Nessas horas - admirei com espanto - existe um movimento espontâneo muito interessante dos mais velhos no sentido de ignorar essa moçada até que seu fogo vá esfriando e se extinga em meio ao tumulto festeiro.
Essa folia do Fanado, aleluia!, ainda não cedeu à "arte" alienada, massificada, produzida em laboratório.
E não é que sejam proibidas canções veiculadas pelos meios de comunicação modernos, afinal, muitos dos presentes ouviram radinho de pilha uma vida toda e se deixam embalar pelos célebres "modões" que são sim admitidos nas rodas e cantados com fervor. "Eu tinha um burrinho preto bão de arado e bão de cela, pro leitinho das crianças a vaquinha Cinderela, galinha tá no terreiro, papagaio tagarela, eu ando de qualquer jeito, de botina ou de chinela, mas lá no meu ranchinho a mulher e os filhinhos, têm franguinho na panela". E dá-lhe comoção diante da vida deles mesma assim retratada com tanta, digamos, malandragem poética! Mas nhenhenhem meloso e falsificado? Aqui não! Aqui o filtro fundado num senso estético orgânico que, tenho fé, funda nossa humanidade, ainda é poderoso o bastante para evitar a invasão do território artístico sagrado da folia.
Assim que não é de se admirar que esse mesmo senso, assim milagrosamente preservado, saiba degustar e saiba aprender com aquele, a seu modo erudito e refinado, que trago em minha bagagem e distribuo graciosa e prazerosamente.
Certa vez eu estava aguardando o início de uma celebração na capelinha de Santo Reis da comunidade de Terra Cavada e observava o movimento de uma senhora, assentada alguns bancos adiante. Sua netinha estava próxima exibindo seus encantos e, em certo momento, como eu fui prevendo, a velha dama não resiste, toma a menina nos braços e tasca-lhe um beijo esfomeado, caloroso, de afundar o nariz. Eu, com meus instintos de fotógrafo, vinha mirando a cena de arma em punho, de modo que, quando o desfecho aconteceu, deu-se o clic, no momento exato, um segundo perfeito. Foi então que escutei uma voz masculina dizer, em alto e bom som, atrás de mim: "eta, mas essa sim, fisgou o peixe no golpe ein danado!", ou algo assim. Conhecia o tipo desde que era rapaz e também boa parte de sua família, e seu ar meio zombateiro, que usaria com os colegas da mesma idade, me surpreendeu, pois eu e ele não éramos muito próximos e, até onde me lembrava, jamais tivemos uma conversa mais prolongada. Sua atitude inusitada foi, porém, por demais elucidativa pois demonstrou que ele há tempos me observava observando concentradamente os ambientes a minha volta em busca da foto viva, marcante, comovente. Presenteio ele mesmo e seus parentes há pelo menos duas décadas com esse tipo de foto de cunho pessoal e efeitos duradouros e não é de se se estranhar o fato de que ele, e muitos outros, em silêncio, tenham analisado atenciosamente o modo meu de agir, capaz de produzir tão preciosos resultados.
Assim sendo, percebi que, a revelia e sem saber, estava proporcionando a alguns, ou quiçá a muitos, mais sensíveis, a educação estética e sentimental que sonhava oferecer por meios formais que, todavia, sempre se encontraram fora de meu alcance, seja por minha inabilidade ou inércia em agir nesse sentido, seja por limitações de tempo, pois sempre priorizei a pesquisa em detrimento do ativismo, seja por falta de espaço institucional.
Agora penso: não é que esse é o modo espontâneo com que a experiência artística se dá durante o movimento mesmo da vida sertaneja e, em especial, durante o giro folião?
Eis a lição: muitas vezes a gente se surpreende sobre como as coisas acontecem de um modo muito mais fluido e profundo do que ousamos imaginar.
*
Todas as fotografias e vídeos constantes desse blog foram captados pelo
autor e aqui expostos generosamente. Recomenda-se moderação no
lançamento dessas imagens, desacompanhadas
do texto, na terra sem leis da Internet. Compartilhem, por favor, a obra, mas devidamente identificada, através dos links do blog e do canal do youtube, obrigado.
Comentários
Postar um comentário