DEUS TAMBÉM GOSTA DE FESTA
Construída há seis anos, no limite alto da área, num pequeno promontório que um dia na certa terá escadas pavimentadas, a igrejinha dos Reis se destaca. Desde então ela permanece a mesma na ponta do cenário árido onde está instalado o espaço sagrado e festeiro: campo de futebol, bar e salão de convívio e forró, grade área de estacionamento, esse ano ampliada e dividida, motos, num cercado ao lado do salão, carros, mais ao largo. Tudo é muito econômico e progride lentamente, com os recursos limitados da comunidade de Terra Cavada e algum pequeno apoio da administração pública.
Os líderes comunitários estão exultantes com o sucesso da festa de Santo Reis, padroeiro local. O salão vai enchendo de dançantes até abarrotar, o calor aumenta, então o povo começa a rodar pelas bordas, no chão seco de terra batida, triscando salto e botina e levantando uma bruma de pó que só se vê no contra luz, e assim o núcleo cimentado, “civilizado" do costume forte, sensual, transborda, pouco importa se as mulheres vieram perfumadas, cabelos feitos, vestes bem passadas, aos poucos as pontas de vestido e canelas suadas se impregnam de poeira vermelha, mechas se desalinham em giros de torso vigorosos, odores de shampoos e águas de rosa evaporam-se em intensas chacolejadas, o lugar rescende euforia de festa e isso é o que mais nos embriaga.
Toni de João da Eva é um líder incansável e criativo. Está sempre pensando em algo novo para as comemorações dos Reis. Ano passado fez um festival de produtos derivados do milho verde e estava empolgado para repetir a experiência esse janeiro, mas a chuva não colaborou, as plantações estão sofridas e atrasadas. Por outro lado, a ideia de fazer um encontro de folias da região, que não vingou em 2019, agora pode ser realizar. No domingo, desde as dez horas, estávamos de novo reunidos, debaixo de um sol terrível, em Terra Cavada, para o encontro de foliões e as celebrações do dia. Claro, tudo foi começar lá pela uma da tarde. Vieram de fora três grupos: Poço d'Água, Veredinha e Pau d'Óleo-Sabará. Todos estavam muito orgulhosos por comparecerem ao famoso espaço de reza e folguedo de Toni de João da Eva, local que alguns não conheciam ainda, pois é de edificação recente. Cada qual cantou na igrejinha sua versão da folia de Reis, tudo filmado e fotografado da melhor forma possível tendo em vista que a nave cheia virou uma fornalha. Minha presença, estranha, porém já amiga, assimilada, é acolhida com carinho pelos da casa e com orgulho pelos visitantes. As câmeras ajudam a dar a esses velhos cantadores, os últimos de sua espécie, a sensação de que estão participando de um momento histórico, de importância maior.
Um ancião de Veredinha, que eu não conhecia, mais exaltado, me questiona sobre como poderia ter acesso às imagens que eu fiz do evento e me surpreende perguntando se eu gravaria um DVD ou colocaria tudo no Youtube. Seus olhos dizem: "não está pensando que eu não sei dessas coisas, está?"
A qualidade dos cantos deixou a desejar, esses grupos de folia vão “pegando no tranco" a longo prazo, e cantar assim, do nada, sem aquecimento, numa espécie de palco, para um público relativamente estranho, intimida. Alguns estavam visivelmente nervosos. No decorrer de um legítimo giro de folia, ficam aos poucos mais seguros, afinados, “calibrados”, como dizem, referindo-se à dose de álcool certa para foguear os ânimos e concertar as gargantas. Assim, porém, de “chupetão”, fica difícil. Todavia, quem assistir as filmagens, vai constatar que todos parecem estar exultantes por conta do sucesso do grandioso espetáculo. É a embriaguês social criando essa maravilhosa miragem de esplendor, pouco importa o que aconteceu de fato, o encontro dos velhos amigos, o discurso edificante de Toni, a áurea sábia de João da Eva, o povo rindo à toa, algumas pitadas de batuque de atabaque, alguns goles de cachaça curtida na carqueja, a ilustre presença do fotógrafo, os elogios vão tomando vulto, Toni se empolga mais de uma vez, dizendo no microfone que a data do encontro de folias do ano que vem já está marcada, dez de janeiro, e se Deus quiser vão vir também outros grupos, aumentando o prestígio do evento.
Terminado o encontro de folias e antes de começar a missa, fomos penar com o calor em outro lugar, numa sombra de árvore, atrás do bar, ou mesmo no salão de forró que é aberto e do meio para o fim da tarde pega a insolação de través, não havendo muito como escapar do apocalipse.
Essa festa, como a vida cabocla mesma, é todo um teste de resistência. Eu, o bom burguês, claro, não estou assim tão preparado, e sofro. Mas me percebo, em alguns aspectos, mais resistente de alma. No auge do calorão, três e meia da tarde, chega o padre e celebramos a santa missa. Assentei na ponta do banco esquerdo dianteiro e lá fiquei, do começo ao fim, seguindo o culto passo a passo, cantando os cantos, balbuciando, bem ou mal, as orações que na infância aprendi de cor mas aos poucos, por desuso, esqueci. O jovem pároco, corpulento, lento, inteligente, que já me viu em outras festividades entrando e saindo da igreja durante a celebração, sinal claro de indiferença do mal devoto, deve ter se intrigado com minha nova postura, tanto mais que tentei fazer o máximo para entrar de corpo e alma na encenação conjunta que, nessas roças, atrai sobretudo as mulheres. Se estou mergulhado por completo no inteiro rito da folia, porque não estaria no momento da missa, afinal? Aprender é sempre aprender a respeitar.
Antes da celebração, Toni, querendo ser diplomata, toma o microfone e salta uma das suas: “A comemoração foi maravilhosa, divertida, sadia e, a gente tem que dizer, Deus também gosta de festa”. Esse ano ele está, em seus discursos, repetindo muito “nós, os católicos”, algo desnecessário uma década atrás quando a igreja de Roma era hegemônica. Escondido nesse "Deus que gosta de festa" deve estar algum recado para os Evangélicos, que trabalham como formiguinhas para acabar com essas velhas tradições prenhes de espírito laico. Toda essa gente, há séculos, desde criança, cresceu promovendo e saboreando as festividades religiosas, tanto que até hoje fazem isso de uma forma perita de dar inveja a qualquer organizador profissional. "Se algum cenário novo ameaça a velha tradição, claro que vamos reagir", é o que parece implícito nesse novo discurso de Toni, mesmo que ele não saiba ou, sabendo, não diga claramente. Imagine-se a inteligência social necessária para planejar e por em marcha os longos giros da folia, e depois realizar dois dias de festejos com comida, sucos, doces para mil pessoas ou mais! Porque Deus não gostaria dessa fartura de felicidade, ó gente!
Um brinde a esse deus que gosta de festa e cheiro de povo!
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