VIDA E MORTE VITALINA
Em janeiro de 2018, como de costume, visitei Dona Vitalina, a Titia, no dia em que fazia cento e oito anos de idade. Tempos depois, descrevi nosso encontro numa das primeiras postagens desse blog, que pode ser vista no link abaixo:
Naquela ocasião, ela estava muito abatida, a ponto de que temi pela partida de minha velha amiga. Que nada! Para minha surpresa, doze meses depois, ao me receber mais uma vez em sua casa, Vitalina estava novinha em folha. Fui acompanhado de Ana Lúcia, que não a conhecia e estava deslumbrada com a mulher, pegou e não largou mais sua mão, e não se cansava de admirar suas proezas, falando alto. É muito calorosa, há quem estranhe. A princípio pensei que Titia pudesse estar incomodada com todo aquele estardalhaço afetivo. Mas não, aos poucos vi que ela estava era gostando, quá!, toque de mãos femininas calejadas, afinidades caboclas! Imagens, belas, das duas assim, de almas dadas:
Era a data do aniversário e João e a mãe estavam na varandinha, na certa esperavam ter companhia o dia todo e até no sábado próximo, quando tinha sido marcada para a igreja do culto evangélico uma grande celebração. Titia então estava dependendo da cadeira de rodas para se locomover maiores distâncias, mas lá se foram os ataques de asma. João me contou que no ano anterior ela tinha tido uma gripe forte que tinha gerado as crises, mas logo tudo tinha voltado ao normal. De resto estava perfeitamente sã e lúcida para receber muita gente nessa pequena temporada de comemorações de seus cento e nove anos. João, com essa crueza serena de um monge que lhe é peculiar, disse que a decisão de fazer um grande evento na igreja agora foi porque “não precisavam esperar os cento e dez anos”. Ao ouvir a insinuação, a mãe acrescentou, muito naturalmente: "vai que não completa cento e dez!"
É incrível essa confiança na naturalidade da vida e da morte, tanto dela como da comunidade. Fizeram tudo certo, deu tudo certo, sem choramingo, sem drama. E o mundo esquecendo em absoluto essa sapiência simples, pé no chão, essa inteligência realista comum!
Chegaram duas outras visitantes: uma menina de uns nove anos, ou seja, um século mais jovem que Vitalina e a senhora sua avó, natural desse mesmo povoado do Campo Alegre, mas que fez a vida em cidade grande, algo que adivinhei de pronto nela devido a que exalava uma alta energia nervosa que raramente encontramos nos habitantes locais. De repente, sacou de presente para a dama aniversariante um monte de guloseimas da indústria alimentícia (biscoitos, wafers, chocolates, balas), tudo envolto num grande envelope de papel celofane. Titia ergue a esplendorosa armação diante dos olhos para admirar longamente, como devido, em reconhecimento, fato que é mulher de muito fina educação. É o momento em que a capturo, monumento vivo, em mais uma foto histórica!
Percorro a rocinha do quintal acompanhado de João, como de hábito, filmando e fotografando. São tantos, anos, já estão acostumados, é como se as câmeras nem estivessem ali, o que torna os documentos mais espontâneos e preciosos.
Se ninguém perguntar, não fala, então nem parece que o sujeito esconde um tesouro de conhecimentos ancestrais.
Vamos acompanha-lo enquanto nos dá, de graça e com graça, uma pequena aula sobre como a "Jataí Preguiçosa" rouba o mel da verdadeira.
Voltamos à varanda para arrematar a conversa com as mulheres. Fui perguntando e descobri que, atualmente, Titia não tem tomado remédio algum, exceto um componente de vitaminas que anda engolindo mais por respeito à autoridade médica do que por real necessidade. Toda vez que a vejo assim, penso no que diz uma certa medicina oriental: o paciente pode estar equilibrado, desequilibrado ou doente. Segundo essa lógica, há sinais do desequilíbrio que precedem a enfermidade propriamente dita e que precisam ser diagnosticados e combatidos de modo a evitar o pior. Titia, embora centenária, não estava enferma nem tampouco desequilibrada, todos os seus órgãos funcionavam a contento, aparte o desgaste natural, prova de que isso é possível em idade muitíssimo avançada.
Do nada, sem que fosse provocada, Titia acusou que estava muito mais apta do que o filho João para se lembrar onde estavam certas coisas dentro da casa, incluindo os medicamentos que, ele sim, era obrigado a tomar todo dia, porque tinha a pressão alta e por conta disso já sofreu súbitos desmaios. Ele nunca eleva a voz um tom para nada e o modo como resistiu ao dedo apontado pela mãe foi curioso. Disse, com a maior calma desse mundo: “é mais fácil pra mãe lembrar de tudo porque a cabeça dela só se ocupa com as coisas de casa, não tem mais com que lidar”. Ah sim, como se a vida dele fosse marcada por horários rígidos e repleta de obrigações!
Em certo ponto, a mulher nervosa levantou a bola de um argumento sensível, o modo como certos pastores evangélicos usam a palavra de Deus para explorar os pobres e ingênuos. João se defendeu com um pouco mais de energia, no caso, sem todavia alterar a candura com que enfrenta qualquer assunto, sempre leve e bem humorado. Disse que a instituição só recolhia dos fiéis o mínimo para fazer face à manutenção do templo e a tudo quanto é necessário para que se realizem os cultos semanais. O pastor sempre vem de fora, de carro, e alguém tem que cobrir as despesas. Para sabermos o que de fato acontece, seria preciso uma pesquisa cuidadosa, levaria muito tempo para termos uma ideia do que é simples esforço coletivo, o que é espoliação entre desiguais. O fato é que a estrutura da Igreja Católica, sendo muito mais burocrática, cara, pesada, tende a ruir diante do avanço gradual e inexorável da nova velha fé nesses rincões onde a coleta é de vinténs.
No ano seguinte, encontrei meu camarada Toni de João da Eva durante o giro da folia de Reis de Terra Cavada. Quando viu a imagem de Titia num dos álbuns de fotos que, como de costume, levei para distribuir na comunidade, me comunicou que ela tinha falecido no curso do ano que passou. Contei como estive lá no dia de seu aniversário, em dois de janeiro de 2019. Lembrei que havia a previsão para uma grande festa no salão da igreja evangélica que ela frequentava e ele ouviu falar que Vitalina foi levada de cadeira de rodas mas se manteve alerta até tarde da noite, recebendo os abraços, batendo papo com muita gente.
Dias depois fui ao povoado de Campo Alegre, direto à casa da bonequeiro Dona Maria, pois estava lhe devendo uma visita. Achei tudo fechado, devia estar na velha morada da roça, alguns quilômetros acima, mais próxima ao chapadão. Era para ser assim mesmo. Eu pensava em deixar as últimas fotos de Titia para que Dona Maria entregasse a João, porque meu cronograma ficou apertado nessa temporada, tinha outras visitas a fazer e não podia demorar em cada casa. Ao menos esse era o roteiro que inventei para mim. O fato é que o acaso da ausência de Maria corrigiu a tempo minha falta de "feeling" do movimento do dia, como não raro acontece comigo. Certo, eu deixei nos últimos dois ou três anos de visitar a família da querida amiga e procurava, com meu ato, reparar minhas faltas. Mas, por outro lado, “pensando” mais instintivamente, como eu poderia não comparecer esse janeiro à casa de João, depois de uma sequência de quinze anos ou mais de visitas anuais, justo quando nossa querida Titia não estava mais entre nós e precisava prestar ao homem minhas condolências? Desde o momento em que parei o carro e o vi de longe, soube que era aqui que eu deveria ter vindo diretamente nesse dia. Como não? Não se deixar dominar por razões práticas, ou pelo menos não se deixar sempre dominar por elas, eis a ciência mística que, penando, começo a entender. Claro, ao ver meu amigo, compreendi meu erro e me entreguei, derramei. João não esperava meu abraço longo e carregado. Mas não demorou para que a alma do suave lutador também se rendesse e então desmilingüimos juntos, senti o sentir debaixo do couro, da couraça rija do enxadeiro, e assim nos comunicamos. Se o Reino de Deus é dos mansos, sem qualquer sombra de dúvida, há nele um lugar de destaque para João e sua mãe Vitalina.
Ele contou que a prefeitura vai mudar o nome da rua, a principal dentre as poucas do povoado, para Rua Vitalina. Campo Alegre é mais velho que os lugarejos vizinhos de Buriti, Poço d'Água, Zé Silva, Gentio, mas está mais mal situado, na crista de um morro a meio caminho rumo ao Fanado, e cresceu muito menos, nos últimos anos, do que os demais.
Fizemos o costumeiro giro do quintal. Em matéria de agricultura, João é mais esperto do que a média de seus contemporâneos, queria te-lo visto no tempo em que tratava de suas roças grandes de verdade, mas já o conheci assim restrito aos cuidados com Titia, praticamente um ser caseiro. Esse ano, pressentindo a longa estiagem, plantou não mais que uma meia dúzia de pés de milho, só pra não dizer que não plantou. Mas estava orgulhoso do estado de sua pequena plantação de amendoins, que se firmou depois das chuvaradas de dez, doze dias atrás. A vida aqui tem que ser resistente, o solo é seco e socado, a insolação é brava, sem trégua: árvores cascudas, folhas duras, de verde pálido, que não murcham, diferem do padrão mais escuro e tenro dos pés de manga, do milho e da rama do amendoim. Na parte mais pedregosa do terreno, João, agora, assentou duas novas mudinhas. Para que não morram por algum descuido seu, inventou um sistema para manter o chão sempre úmido ao redor das plantas. Pegou uma garrafa pet, fez um rasgo na parte inferior, só um rasgo, não um buraco, para a água não evaporar. Com delicadeza, ele abre e fecha essa brecha quando quer reabastecer o reservatório. O expediente também evita a infiltração das lavas do mosquito da dengue. Daí amarrou na cintura da garrafa uma tira de pano e a pendurou de cabeça para baixo junto às mudas. Então torce a rosca da tampa com muito cuidado, obtendo uma vazão mais ou menos equivalente a uma gota por minuto. Se abrir demais, a água logo acaba, mas desse jeito, afirma que pode durar até uma semana. Se chover, é fácil, basta fechar a tampinha, pronto.
Teve gatos desde os onze anos. Contava que o comprou com as "nicas" que apurou na venda de sua primeira panela de barro. Deu o nome de Chico. Todos os que vieram depois, sabe-se lá quantos ao longo de tantas décadas, se chamaram Chico. Depois que o último dos Chicos desapareceu, há poucos anos, ela não quis outros mais, porque "a gente se apega demais nessas criaturas e quando eles se vão fica uma tristeza danada!"
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