DIALÉTICA DO MASCARADO
Dialética já foi uma palavra muito afamada. Hoje em dia anda em desuso. Mas tem a ver. Senão, vejamos.
Na postagem do link abaixo, discorro sobre minha experiência durante os meses de isolamento relativo que passei numa cidade remota do interior mineiro por causa da epidemia do coronavírus.
Em certo trecho da narrativa, descrevo um curioso fenômeno. Gente que vive em grandes comunidades de roça do sertão se fia muito no trato pessoal informal. No entanto, como muitos conterrâneos, amigos, compadres, parentes estão usando máscaras, ultimamente, a identificação e o contato ficaram mais ou menos prejudicados. Sobretudo quando o caboclo vai em suas diligências à cidade, dá um belo curto circuito na mente afeita aos velhos hábitos de urbanidade entre iguais na pobreza. Na feira, no comércio, onde topam com conhecidos da rua e de outros sítios rurais, fica muito mais difícil identificar alguém desde longe pelo feitio do cabelo ou dos olhos, pelo estilo de vestimenta, por seus trejeitos ou modo de andar.
Todos nós seres humanos possuímos um profundo poder de identificação interpessoal porque, na origem, quando todos éramos camponeses-caçadores atados à terra de pés e mãos, a sobrevivência dependia dos conhecimentos comunais, não havia como sobreviver sozinho. Aliás, isso sequer podia ser suposto, um homem, uma mulher, um jovem sem sua tribo estava condenado à solidão, ou seja, à morte. Na vida nativa, não havia e não há a ilusão de que possamos sobreviver sozinhos, tão típica do cidadão atual, carente auto-suficiente, sempre firme na crença de que o dinheiro pode comprar tudo, sim, o dinheiro, mera convenção, tão palpável como uma transação eletrônica.
O tapa-rosto tem atrapalhado muito os rituais de reconhecimento e comunicação interpessoal entre os membros da comunidade sertaneja, fundamentais num mundo em que tudo depende dos laços diretos entre pessoas, e onde os encontros se dão, no mais das vezes, de forma espontânea e descontraída.
Na "rua", olhos ansiosos agora nos miram, de passagem. Vê-se que estão angustiados porque não conseguem atestar com certeza quem está passando do outro lado. Cumprimentar desconhecido é gafe. Deixar de cumprimentar os companheiros é fora de cogitação.
Compreendo a ansiedade deles em razão do tipo de vida que levam e do modo como foram criados, mas, depois de passar por diversas vezes por essa tensão de desencontro, acabei descobrindo que, paradoxalmente, o uso do incômodo artefato pode acabar deixando mais relaxada a interação social.
Afinal, se não tenho mais a obrigação de sinalizar claramente para ninguém com minhas máscaras de reconhecimento (um sorriso afável, olhar vago de fingida indiferença, boca torcida de desgosto ou seja o que for), estou liberto para não ser-sentir nada de antemão, ou seja, posso despir as vestes por debaixo da veste, deixando de existir "para" o outro para existir "diante" do outro, neutro, tanto quanto possível, ou melhor, expectante, a princípio.
Para mim, que sempre fui muito contido, o experimento tem sido libertador. O tímido sente uma necessidade irrefreável de mostrar-se cordial porque teme não ser bem acolhido e nesse impulso se antecipa, projeta sentimentos que não são os seus, pois não consegue esperar que o estado de espírito do interlocutor o provoque, antes de mais nada.
Para pobres diabos assim como eu, ficar mascarado pode ter grandes vantagens nessa hora de tornar-se o centro do palco. É como se agora eu circulasse pelo mundo de dentro de uma janela, um álibi para ficar inerte, de face calada, nas aproximações. Resultado: não preciso mais fingir uma entrega que nada me obriga a expressar para fora e, por outro lado, não tenho como interpretar os sinais em resposta do outro, também ocultos.
Nossos primos primatas são todos hábeis sinalizadores faciais e vocais, artifícios de comunicação avançada que um lagarto nem sonha possuir, mas que já são muito antigos e enraizados em nossa velha raça.
Assim que somos ensinados, desde as primeiras horas de vida, a atuar para fora: sentimentos na forma de signos. Tanto que teatralizamos até quando estamos sozinhos. Isso vira um ciclo ininterrupto de tensão desnecessária, porque podemos estar a sós consigo diante do nada e esse exercício de encarar de frente o vazio, embora torturante, a princípio, a longo prazo pode nos trazer enormes benefícios em termos de flexibilidade e paz interior.
"Inner peace, inner peace", quem não se lembra, é a prece simples do mestre tartaruga do "Kung Fu Panda".
Como qualquer criança burguesa, caseira, solitária, medrosa e imaginativa, eu passava muitas horas sem companhia, inventando meus próprios brinquedos. Um deles era mirar no concreto da própria face. Desde muito cedo percebi que me aproximava do espelho com uma postura pronta a respeito daquele que eu ia ver ou daquilo que eu ia fazer: escovar os dentes, pentear o cabelo, dar um "tapa no visual", checar a "belezura". A brincadeira consiste exatamente em não fazer nada disso, fazer nada, posar diante de si mesmo como quem se defronta com um estranho ali parado que também, do outro lado, tem a ousadia de mirar bem direto no fundo dos olhos, ou seja, o labirinto, o espelho de Borges, o espelho dentro do espelho.
Falar é fácil mas vá lá e tenta fazer! A cara da gente se recusa fortemente a ver-se a si mesma assim nua e crua. Ver-se a si mesmo duramente como um objeto inerte na tela é como uma vertigem, um sopro de morte, tudo o que antes pensávamos a nosso próprio respeito se parte, se desdobra, se reflete, no abismo.
É quando enxergamos também o avanço das rugas, duas ou três novas manchas e marcas crescentes de testa franzida.
Repetindo à exaustão a prática e, prometo, um belo dia, nos libertamos do grande Outro que guardamos dentro mei` que sem saber.
As posturas corporais e especialmente as feições, posturas do rosto, são o carro-chefe desse sistema de sinalização constantemente aceso durante nossa "vida desperta".
Quando o praticante de artes orientais se concentra para iniciar sua rotina de meditação dinâmica, pode sentir claramente o efeito calmante derivado do gradual relaxamento dos músculos da face. Relaxar a face é apagar as máscaras, as tensões cristalizadas da atuação no palco social. Resulta imediato: a representação se dissolve e o resto do corpo, até as entranhas, vai atrás, relaxa. No rosto está a chave do sistema de tensões da representação.
Assim que agora cruzo as pessoas na rua desmascarado debaixo da máscara. Se nos reconhecemos, bem, se não, amém, amanhã vai ser outro dia. E se alguém me pára, me chama, me cumprimenta, faço a cena de sempre, usual, mas enquanto conversamos, daqui de trás do véu, agora sem a necessidade de ostentar o tempo todo na cara os sinais acolhedores, de quem está entendendo e aceitando aquilo que o outro diz e encena, posso ficar num ponto mais sereno de onde me permito observar, escutar e responder de forma mais profunda.
A ansiedade produz uma fuga constante desse ponto expectante, relaxado e profundo. Na ânsia de me fazer socialmente aceitável, me coloco em movimento perpétuo de fuga na relação interpessoal.
Omitindo o fato de que o olhar diz muita coisa, a máscara, ao vedar parte da representação, de algum modo me desobriga da tensão da simpatia, por exemplo, e me liberta da escuta simpática que, então, se faz apenas escuta, pois abraço não é cerco, é concha.
Haverá quem diga que o sujeito dissimulado e malquerente (o soberbo, o falso, o golpista, o manipulador) vai ganhar mais uma arma. Mascarado, passará anônimo por câmeras de vigilância, deixará de ser identificado por testemunhas, escapará dos observadores mais espertos que cruzam as palavras que saem da boca com a expressão facial na busca de dissonâncias, arte que a maioria de nós domina muitas vezes sem tentar compreender.
Dialética, isto é, um mesmo fator (um simples pedaço de pano sobre a boca e o nariz) se divide em duas tendências opostas: mais luz, mais sombra.
Aguardamos a próxima síntese após o trauma universal da mudança revolucionária.
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