A COVID, AS MASMORRAS DE GRANDE ESTILO E O OBSERVADOR DE PARDAIS
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Os passarinhos estão procriando freneticamente à vista da nossa janela. Sabem das coisas, previram um bom verão, o banquete farto do tempo das águas que se aproximam, generosas.
De repente, após tantos meses, a cor retorna: um único pontinho vermelho em meio às folhas miúdas da rebrota, a primeira acerola do ano!
Há muito acompanho, no pequeno ângulo enquadrado, o dia a dia alvoroçado dos pardais. Cidadãos oportunistas, vivem entre dois mundos, cutucam brotos, catam sementes, caçam insetos, mas também vasculham o chão da praça, entram no quarto e roubam migalhas de pão, não se espantam com a gente, caras de pau que são.
Quem achar que o pardalzinho fica no ninho até o dia de alçar um heróico vôo inaugural, conforme a cena clássica de documentário sobre a vida animal, está redondamente enganado. De fato, ele amplia pouco a pouco seu raio de ação. Saltita, a princípio, ao redor do berço, de galho em galho. Dias depois já pode alcançar, em vôos curtos, as árvores da vizinhança. Fica assim por semanas, entre o pedestre e o alado. Por fim, se lança em seu destino aéreo, sai a se aventurar pelos telhados próximos, varandas, sacadas, fios da rede elétrica, pois é sabido, só há regra onde há exceção, afinal, as aves em geral voam, verdade, porém algumas marcham, outras andam pulando, outras mais nem asas possuem embora sejam capazes de correr como raposas, sem falar naquelas que bóiam, nadam, mergulham para pescar e até navegam muitas milhas em alto mar.
A mãe pardal é muito zelosa, vai e volta sem parar ao abrigo de onde chama, chama, chama. O moleque, sempre faminto, acode logo, pois não foi muito longe. Tática da lenta ampliação das liberdades, é muito instrutivo.
Já pombas rolas, agora sei, apreciam varrer para trás, com as garras, as folhas secas que recobrem o solo. Não me canso de admira-las nessa sua dancinha dura, laboriosa. Tudo revirado, passam a pastar, sossegadas como ovelhas, alheias ao bote da morte, entregues ao destino porque confiam no cão pastor. Ledo engano! A rolinha é mais leve porém robusta como qualquer outra pomba, capaz de decolar num bater de espoletas. Por isso está assim tão à vontade no chão, nada mais que um justo excesso de confiança em si mesma.
Invejo-a. Pudéssemos viver tão safos, nós, humanos, soldados ao chão.
Admiro também os assanhaços, a começar pelo nome. Curioso é que não são nada assanhados, ao contrário. Andarilhos solitários, sinuosos como gatos, se penduram de ponta-cabeça, sobem e descem como que levitando, se contorcem confortavelmente, revistam ponto a ponto e em silêncio absoluto o labirinto que é nosso bosque privado aqui dos fundos do lote. Bicho bonito, esguio, elegante esse sanhaço! Desconfio que seja ele o único capaz de ter aberto a couraça de placas da pinha pela base do pendão. Saciou-se e se foi e, depois dele, vieram outros, canários, garrinchas, viuvinhas, sabiás, com acesso fácil à entranha exposta da fruta. Espécie de carniceiros?
O filhotão de Bentevi muito cedo aprendeu a montar guarda, como quem não quer nada, em ponto alto. Está bem nutrido, gorducho, uma fofura, e o amarelo do peito, limpo limpo, ainda puro sem mácula. Imagino que, além de vigiar os horizontes, ele esteja contemplando ou até meditando porque fica paradão assim por tanto tempo, até parece cochilar!
Eu daqui, eles, de lá, cada qual em seu universozinho, em seu universozinho de hábito, dieta, linguagem, nos espionamos mutuamente, sem dúvida, mas ninguém enche o saco de ninguém, exceto o casal de cardeais cabeça de fogo, nômades que passam de vez em quando pela quadra pentelhando Deus e o diabo.
Quem um dia diria que, por força das circunstâncias, me tornaria um observador de pardais? Logo eu que sempre os considerei um tipo de praga urbana, cinzentos, genéricos, sem graça. Nem cantar melodia cantam, apenas piam, e piam feio.
Preconceitos!
Pois sendo assim, diante de tamanhas riquezas contidas no enquadre estreito da minha fenestra, faz algum tempo que venho me perguntando, enfim, quantos privilegiados como eu, mundo afora, conseguem aproveitar de fato o momento, essa parada em tudo, para observarem com mais cuidado o espetáculo que a toda hora se apresenta bem debaixo do nariz?
Poucos sítios do grande vale são mais agradáveis, devo dizer. Divertimento? Pra quem procura. Então que a clausura fica menos penosa.
Entre setembro e abril pode ser terrivelmente quente nos fundões da bacia fluvial, cem quilômetros ao norte. Porém aqui, nas chapadas, nas altas nascentes, o vento corre solto e vem refrescar as tardinhas, as noites, apaziguando a alma da gente ao fim dos dias infernais.
Ah o luxo que é se ter uma noitada inteira de bom sono e conforto térmico puro e simples, natural! Quando o sol e o calorão vão decaindo e libertam-se as brisas superiores, vestimos nossas máscaras e saímos a caminhar, findo o horário comercial e o movimento de gente pelas ruas.
Poderíamos nos perder na teia de becos da baixada do centro velho, ou quem sabe até descer ao rio, tanto faz.
Algumas rotas aparentemente sem saída na verdade vão dar em estrada de roça e daí, nos bastaria seguir adiante, bater canela, ao deusdará.
Mas cadê? Nunca! Só se fosse em outros tempos, antes da epidemia tomar assento nessas paragens, antes de agosto. Desde que a regra apertou, reclusos o dia todo, uma vez livres por uma hora, só queremos subir, voar. Marchamos batido em busca de mirantes, largos e praças de altitude, respiradouros. Felizmente, eles são abundantes aqui, na bela cidade.
A magia está em deixar o espírito navegar por si, vagar acima do casario e das veredas que mergulham nas sombras e daí ao horizonte sob as luzes crepusculares. A perder-se de vista, ao longe, assim a alma se limpa, em banhos de ar diários.
Hoje, essa cidadezinha de que venho falando nas últimas postagens ainda é dos fundões do Brasil, um destino final a mais na teia de rodovias vicinais que cobre o gigantesco país. Mas um dia foi marco estratégico do colonizador, durante o processo de consolidação das fronteiras do temível "Sertão do Leste", império dos Botocudos.
Os cientistas viajantes europeus do século dezenove escreveram sobre essa época, esses sertões. A caminho, a partir do Rio de Janeiro, eram incontáveis os perigos e desafios que deviam enfrentar: desabastecimento, pontes rotas, vaus instáveis, chuvas que duravam um mês inteiro, bandoleiros, tribos hostis, animais peçonhentos, territórios da peste.
Hoje venceriam o mesmo trecho em meras vinte e quatro horas enlatados a bordo de um confortável autobus, mas então eram semanas a fio a pé e em lombo de burro, acampando pelos matos mesmo, às vezes, pois além Diamantina, rancho de tropa sequer existia.
Saint-Hilaire lamentava que, em 1820, na soleira da era moderna, os brasileiros não pudessem usufruir de "estradas carroçáveis" além dos limites da capital.
Duzentos anos depois, com todas as vias franquiadas, assistimos a vida passar pelas janelinhas, como noviços num convento, acossados por fantasmas.
Depois de tantos percalços, quando por fim aportava na derradeira e mais funda povoação da boca do sertão, o intrépido pesquisador se admirava ao vê-la assim como ainda permanece, na essência, até hoje: fileiras de casas assentadas nas cristas de espigões tortuosos, de costas debruçadas sobre a rede de grotas fundas, frescas e arborizadas que levam aos rios.
Nesse tempo, o assentamento era tortuoso, a civilização precisava se render aos limites orgânicos da terra e da selva.
Atualmente, muitas ruelas descem retas na ladeira.
Outras se situam melhor, em altiplanos.
Os maiores edifícios se sustentam em pilares altos fincados no precipício ou em andares para baixo, ocultos a quem passeia de frente às fachadas.
As casinholas rústicas, em vias de extinção, se assentavam mesmo era na pirambeira.
Vizinho dos fundos a ninguém incomoda, encontra-se lá do outro lado do vale, além da linha do matagal.
Nas próximas fotografias, registro um novo bairro que está surgindo mas ainda não tem casas. Foi aberto em meio ao campo alto, na margem oposta do rio, fora da malha urbana. Estávamos no auge da estação seca quando fiz o retrato de cores mortas.
Nesse sítio, a rede de postes e cabos de aço suspensos chegou a certo ponto e parou, por falta de demanda de instalações.
Contudo, em linha reta, em seu trajeto ideal, havia duas árvores nativas que foram derrubadas pelos operários da empresa de energia antes mesmo da chegada, se houver a chegada, dos fios.
Nada indica que o local vai ser povoado tão cedo, mas a cor da carne do cerne do tronco abatido indica que a obra é recente. Na ânsia, não puderam esperar. A natureza, tão linda até na morte, tinge de sangue a pele gris da paisagem.
Embora distante dos grandes centros econômicos, nos últimos vinte anos a cidade recebeu somas de capital suficientes para se expandir de forma considerável.
Na periferia surgem ruas novas a todo momento, e a tendência é que colonizem também as ravinas hoje ornadas com matas vigorosas que possuem aparência muito diversa daquelas que cobrem o topo das montanhas, em ambiente mais rude, ressequido e pedregoso.
Mais perto dos quintais, os pequizeiros nativos se misturam com abacateiros, bananeiras e outras plantas cultivadas.
O frescor do bosque e a ação humana tornam o ambiente mais úmido e viçoso nos baixios.
Onde é viável, esses terrenos frescos vão sendo rapidamente assaltados pela malha rodoviária.
Numa semana o beco da foto era estrada.
Na outra, terra aplanada.
Na seguinte, se urbanizava.
Algumas rampas começam a ganhar pavimento mas, a partir de certo ponto, a descida se torna tão abrupta que o quebra-cabeças de plaquetas pre-moldadas se esfacela, é inútil seguir montando antes que a base também esteja cimentada de modo a firmar o todo de baixo para cima.
Recentemente a prefeitura recebeu uma montanha de dinheiro do governo federal com destino certo: construir um centro de shows e eventos em local nobre, plano.
Um muro enorme, construído há poucos dias, veio crescendo, paralelo à rua, até que fez uma curva à esquerda.
Nesse movimento, deixou separadas duas belíssimas árvores irmãs.
Vê-se o tamanho da gula desse grande animal?
No texto do link abaixo descrevo o modo como uma nova arquitetura dos bairros ricos de São Paulo está criando um padrão de casas de estilo quadradão, desmatado, defensivo, todo cimento-armado.
Fábricas?
Presídios?
Tumbas?
Aconteceu que, durante esses meses da epidemia do Coronavírus, em minhas caminhadas diárias para fazer flanar o espirito e fotografar, constatei o seguinte: essa tendência asséptica e ressentida da arquitetura da elite paulistana também está presente na cidade sertaneja.
Pasmem, é isso mesmo!
Aqui as fortalezas não se concentram nos bairros ricos, como na metrópole. Disputam com casas mais humildes e improvisadas a velha vila em permanente reconstrução ou os novos espaços conquistados com a derrubada da floresta que ainda domina as áreas periféricas.
Pergunto a dois jovens amigos, sagazes e bem informados, que nasceram e cresceram aqui, se a quantidade de casos de invasão a domicílio tem crescido a ponto de justificar tanta preocupação com segurança nesse recente boom de edificações de alto nível. Como eu previa, eles asseguraram que não, que os problemas desse tipo existem, claro, mas são, a maioria, sem gravidade.
Também quis saber deles de onde vem o dinheiro para construir tanto e tão suntuosamente em anos de baixa atividade econômica e nesse país camponês onde só existe economia moderna na sede do município, são raros os grandes empreendimentos e praticamente não existem indústrias.
Eles apontam um grande número de profissionais liberais e pequenos empresários que vêm progredindo nos últimos anos e hoje formam um grupo capaz de sustentar esse luxo inédito nas construções.
E, claro, esclarecem que muita gente, assim que se assenta em alguma forma de renda um pouco mais segura, se apressa a contrair dívidas para financiar o sonho de uma casa própria o mais ampla possível.
Fico imaginando quantos se arriscam assim, tomando dinheiro emprestado a juros altos, por necessidade, quantos por desejo de ostentação.
É curioso esse mecanismo psicológico, sem respaldo nas estatísticas da polícia local: quanto mais se vêem compelidos a ostentar riqueza, efetiva ou virtual (empréstimo), mais se sentem ameaçados.
Provavelmente há algo nos ares que está fazendo essas pessoas se sentirem assim e, pouca dúvida, deve ser o noticiário "pinga-sangue" da TV aberta que todas as noites penetra essas paredes, apesar dos cães enfurecidos, das câmeras de vigilância e dos rolos de estilete no topo das altas muralhas.
Ou seja, a classe A local imita os hábitos de seus pares da capital, talvez porque, igualadas em níveis culturais baixos, ambas consumam o mesmo lixo televisivo classe E? Todo santo dia, para o rico, para o pobre, o mesmo ritual satânico de contemplação do mundo cão (tão longe tão perto) no quadradinho da televisão. Tudo isso acaba criando uma tremenda paranóia coletiva, como não? Quem a produz está prestando um imenso desserviço à humanidade, contudo esse, agora, é nosso normal baixo moderno, o circo de horrores, a espetacularização da barbárie que fabrica o clima para mais barbárie.
E é assim que a pequena burguesia daqui importa da matriz a nova ideologia penal policialesca, simulando na arquitetura uma ambiência de guerra que não existe de fato a não ser a mil quilômetros de distância e tomadas as devidas proporções.
Ó céus, quanta pista falsa de sentido e sentimento, quanto desperdício da paz de corpo e mente propícia ao bem-bom do amor e das artes!
O quadro atual é altamente contrastante com o velho modo de viver e construir, ainda existente, ainda pulsante, embora em dissolução.
Vinte e cinco anos atrás eu ainda pude observar a grande quantidade de animais de carga que comparecia nas manhãs de sábado ao entorno do mercado trazendo o povo roceiro e seus produtos para a feirinha tradicional.
Agora, os poucos restantes se tornaram um estorvo e um risco em meio ao trânsito feroz de motos, carros e caminhões. Apesar do barulho e da poluição, a sensibilidade de certos moradores aparentemente tornou-se fina demais para suportar os monturos de bosta largados por cavalos e muares nos pontos de sombra onde, por costume, sempre foram atados, em dias de feira ou festa. "Proibido amarrar animais", diz a placa. Conforme decreto do dono da casa ao lado?
A característica vila do ouro, de taipa, adobe e pau a pique, vai se consumindo aos poucos, por dentro.
No centro histórico, existem casas em todos os estágios de decadência e também lotes vagos que só podem existir porque o solo ressurgiu, nu de novo, por debaixo de ruínas arruinadas até o fim.
A foto seguinte figura, lado a lado, duas tecnologias de edificação: a do barroco pobre, sertanejo, e a moderna, industrial.
A parede da direita sempre esteve exposta, pois a pobreza do tipo atual não proporciona ao construtor a folga necessária ao luxo, ao gasto extra com reboco e tinta. Já a da esquerda, a antiga, de tijolo maciço, teve revestimento mas um dia a manutenção parou e agora ela está descascada, revelando a base feita de um misto de cimento e pedras roliças de riacho.
Vê-se, na passagem da última era se esvaiu de uma vez toda e qualquer organicidade.
Ambos os métodos vão dar lugar a novas técnicas, no futuro, e desaparecer, mas a foto permanecerá como registro arqueológico da perda da naturalidade na arte de construção civil em massa.
As áreas virgens, dos campos da periferia, vão sendo colonizadas pelo entrelace de muros e casas em tijolo baiano exposto.
Em bairros novos, que se impõem sobre a paisagem sem nenhum planejamento, os edifícios, puramente práticos, sem o menor excesso estético, tendem a se mimetizar no fundo em tom de terra crua, numa cadeia monocromática.

E agora estão chegando as masmorras de grande estilo, de onde a vida parece ter sido minuciosamente extirpada.
Elas se concentram num bairro de origem recente, da saída norte, mas estão por todo lado, dispersas pela cidade, entre as demais, mais antigas, os últimos casarões coloniais e muitos casebres caboclos.
Essa mistura entre o modo de viver ancestral e aquilo que o modo moderno tem de pior (isso que eu chamo de baixa modernidade) está por todo lado. Como não poderia deixar de ser, essa mistura está na "rua" e também está na "roça", onde ela se manifesta mais nos hábitos das novas gerações do que no processo físico de urbanização. Inversamente, a sede do município ainda está muito marcada pela vida sertaneja, sobretudo na nova periferia que abriga o povo pobre que vem das comunidades e vilarejos rurais.
E desse jeito, estamos vendo, o sertão está virando cidade e a cidade, sertão.
Realmente, nascemos num interior muito diferente do de hoje, e há 25 anos, como vc disse, uma coisa era interior outracapital. Hoje tudo é igual, mesmas fomes urbanas
ResponderExcluirSim, Ramon, é o fim do "interior".
ResponderExcluirSão muitas as mudanças,
ResponderExcluirAlgumas percetíveis.
Outras nas entranhas dos acontecimentos.
Muda a geração... os pais se tornam avôs os netos pais...crescem uns vão outros voltam com outras mudanças,
Bairro se tornam cidades...
A paixão vira saudades.
A saudade vira história...