O SERTÃO VAI VIRAR CIDADE E A CIDADE VAI VIRAR SERTÃO



Muitos leitores podem se perguntar se ainda existe esse tal sertão. Respondo: está acabando, mas ainda existe. 

Uma cidade sertaneja da atualidade pode possuir toda a infraestrutura moderna, assistência médica e dentária, oferta de serviços diversificados e alguns até sofisticados, hospital com leitos de UTI, laboratórios médicos, consultorias jurídicas, técnicos em informática, lojas de roupa fina, meia dúzia de supermercados bem fornidos, etc., e mesmo assim se situar no coração de uma vasta zona rural povoada por uma população pobre e numerosa que ainda vive sobretudo conforme rotinas práticas e hábitos culturais pouco diversos dos de seus ancestrais. 

Os mais velhos estiveram mergulhados por completo no antigo estilo de vida roceiro e comunal até trinta ou quarenta anos atrás. Os mais novos, por outro lado, uns mais, outros menos, já se voltam desde a infância para o eldorado burguês que, para a maioria, não passará de uma miragem. 

Das centenas de jovens e crianças que conheci nesses lugares, alguns dos quais vi crescer, por muitos anos, conto nos dedos aqueles que saltaram do setor braçal para o de serviços, seja porque a família não possuía o bastante para bancar curso técnico ou superior para o filho, seja porque o rapaz não conseguiu custear a própria especialização ao mesmo tempo trabalhando e estudando, ou não logrou progredir nos estudos por conta de uma base de educação formal muito precária, na escola pública local. 

Essa situação está mudando nesse interior do interior. Muito aos poucos, a formação de professores e alunos melhora, mas boa parte da juventude com que convivo aqui, ainda em nossos dias, permanece desamparada no sentido de que faltam apoios institucionais para que possa dar esse salto, difícil no curso de uma ou duas gerações, do estado camponês regional, de pobreza sustentada, para os padrões de classe média que se encontram à vista de todos nos centros urbanos e atualmente constituem a meta de vida de todos.

Isso provoca um estado de coisas insustentável a longo prazo: oceanos de ambições excessivas e profundas frustrações a pressionar os diques simbólicos, os frágeis pilares da ordem social capitalista.

A vida vivida mesma, porém, do brasileiro pobre, de todas as idades, em geral só é digna por que contadinha, regrada em tudo, de escolhas rígidas de gosto, gasto, investimento, cultura, lazer, prazer, enquanto as vitrines presenciais e virtuais da modernidade formam em torno um cerco permanente e cada vez mais apertado de tentações de consumo. 

Já os sertanejos de sessenta anos ou mais viviam e, os últimos da espécie, ainda vivem diferente, também contidos, porém livres e diversificados a seu modo, no quadro estrito da cultura camponesa tradicional. Com desejos mais tímidos e satisfeitos muito mais a contento com o que sai da mão e é orgânico, o caipira não tem nada de bobo, conhece os atrativos da vida citadina e da indústria, goza de muitos deles, mas muito moderadamente, por pura praticidade, como de resto faz com tudo. 

Ainda hei de aprofundar aqui o tema curiosíssimo da relação do caboclo velho com os bens tecnológicos, especialmente com o celular. 

Mas deixo de rebarba um causo, o acontecido: 

Um belo dia eu estava de conversa, na cozinha de fora, com minha amiga paneleira Dona Rosa, falecida há cerca de três anos, octogenária. Como de costume, passávamos a manhã a prosear animadamente enquanto ela e a filha Josina preparavam nosso almoço sensacional. Em tantos e tantos anos, jamais nos faltou papo e caldo de substância, louvado seja!

Na ocasião surgiu, de baixo, da trilha que corta a mata ciliar do riacho, um dos netos de Rosa. Eu o conheci de criança, entre a meninada que segue os giros da folia. Vê-se que é da raça, tornou-se um galegão alto e magro a ponto de curvar-se em seus mal completos quinze anos. Entrou sem cumprimentar ninguém, assentou-se na banqueta habitual, sacou do bolso o smartphone e esfumaçou-se antes mesmo de ter encarnado entre nós. Poderia ter ficado no grande sertão de onde veio, espaço para solidões é o que não falta nessas paragens. Talvez, de longe, tenha ouvido nossas vozes, nossos risos, e sentiu sem querer a falta de nossos bons humores, o calor de nossa velha e boa humanidade. Talvez. Durante quinze, vinte minutos, opôs a tudo e a todos essa indiferença ostentada que só vemos raramente entre os antigos, pois a maioria deles ainda é fiel às regras de reciprocidade que formam a espinha dorsal de toda sociedade tradicional. 

O exemplo desse rapaz não representa, infelizmente, uma exceção dentro da comunidade, hoje em dia. 

Muitas mães dirão que já passaram por isso, que "é normal" e que, com o tempo, "a bubiça passa". Acontece que, no país rural onde impera a carência material e o senso de economia se impõe sem distinções, o fenômeno é recente, afinal não havia antigamente (e ainda não há), muita folga com que se mimar alguém por essas bandas, criança ou adulto. Penso que a diferença está em que, na atualidade, o eldorado da mercadoria está na mira de todos embora no alcance de apenas muito poucas pessoas. 

Na certa, oitenta anos atrás, Dona Rosa não passou por essa fase "aborrecente", que em muitos burgueses se eterniza, de cansaço precoce da existência. Ela e a filha estiveram, desde muito meninas, mergulhadas na faina pesada e incessante, nos roçados, nos pomares, nas hortas, nos quintais, nas lidas e agitos das datas santas, na oficina de cerâmica, nos afazeres domésticos, infindos. A rotina bruta as tornou rijas, eretas, robustas e vivazes, ademais que nasceram e viveram imersas numa situação social de intenso e variado contato interpessoal, familiar, intra e extra comunitário. E assim que, sempre na prática, muita prática, aprenderam e ensinaram as manhas do diálogo, do respeito e da hospitalidade. 

Na época da juventude delas, não existia a figura do adolescente entediado que só sabe interagir dentro do próprio grupo e abomina conviver com gente velha. Primeiro, há pouco espaço no sertão pobre e rude para alguém encarar o vácuo do universo entre uma e outra ação urgente e necessária. Segundo, a gente de toda idade cresce junta e misturada nas diversas situações da vida comunitária, gerando a todo momento interações, deleites e aprendizados derivados da ampla relação entre pessoas de diversas faixas etárias. 

Claro, nem todo jovem de origem cabocla hoje se comporta de modo individualista ou francamente anti-social. Muitos também se comprazem com a vida no campo e em comunidade e ainda cumprem boa parte das antigas normas de sociabilidade. 

Apesar disso, a tendência é a perda de raízes, a dissolução dos costumes comunitários, sem que para isso a juventude precise se exilar de seu buracão sertanejo, o processo de degradação vem até ela e se injeta subrepticiamente em sua mente e em seu coração, algo que está no ar como um vírus ou talvez pior pois a doença se espalha através das ondas eletromagnéticas que em poucos segundos se transmitem de qualquer ponto para qualquer outro desse mundo muito grande cada dia todavia mais pequeno. 

Os cientistas viajantes europeus do século dezenove andaram pelo Brasil e por Minas Gerais e deixaram relatos muito interessantes. Encontraram pelo caminho, em jornadas épicas que duravam muitos anos, as mais diversas condições de vida entre as populações indígenas e caboclas da época. Alguns deles descreveram  casos de anomia, quer dizer, de famílias que viveram em estado de completo isolamento nas vastidões sertanejas durante gerações, a ponto de que passaram a se reproduzir por meio de relações incestuosas e, nesse processo, regrediram em todos os sentidos: tecnológica, material e culturalmente.

E se a sociedade urbana e eletrodomesticada estiver produzindo uma perda universal do sentido grupal? E se essa anomia insidiosa estiver corroendo desde dentro o cimento social? Um vírus ideológico presente em todas as classes e territórios da modernidade? 

Dizem os especialistas que o modo de produção de mercadorias em massa rompeu o frágil equilíbrio entre desejo e satisfação, primeiro, no seio das classes aristocráticas, depois, entre toda a população. Dizem, mas haverá quem queira escuta-los? Como crer num vírus que não se vê, nem por microscópio?

Sem dizer palavra, de repente, assim como chegou, o bicho do mato se foi, pro mato voltou. O silêncio restou, pra trás... Está na cara que eu, Rosa e Josina estamos pensando a mesma coisa... Por fim, a pergunta que não quer se calar: "mas afinal o que vocês acham desse negócio aí, esse tal celularzin?" Rosa era ácida, e muito esperta, senhora da casa, da roça, do mato, do mundo. Tascou: "Uai moz ieu sei lá, ess` treim paréci qui sonsa as pessoa!"

Comentários

  1. Mas o diagnóstico da Dona Rosa foi perfeito! E num é que sonsa mesmo? Rsrs

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  2. Belo texto!!
    Me deu saudade dos textos de sociologia rural dos tempos da faculdade.
    Tamo ficanu tudim sonso!!

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