PARA CONTER A PANDEMIA: CUIDADOS MATERNAIS


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Eu e minha companheira viramos uma espécie de nômades da Covid-19. Enquanto tudo estava no início, permanecemos vivendo e convivendo como antes, na capital, mas com o avanço da onda epidêmica e o acesso facilitado aos sistemas de trabalho on line, nos mudamos para o outro lado da fronteira, para o meio do mato, o sítio onde pudemos atingir um grau de isolamento social quase ideal. 

O paraíso durou pouco, menos de um mês. No dezenove de abril, recebemos uma notícia terrível e precisamos rearrumar as malas, às pressas, e viajar mil quilômetros mais ao norte para prestarmos assistência a uma pessoa nossa muito linda, muito amada. Era o início de um tempo arriscado e desgastante: quebra da quarentena, a necessidade de tomar providências urgentes e incontornáveis, enormes apreensões, tristezas pesadas, luto. 

Desde então habitando a cidade pequena encravada em território sertanejo, e diante das novas circunstâncias, ficaríamos muito mais expostos à contaminação.

Conclusão: não existe um modo de cumprir idealmente a regra do isolamento, qualquer um pode ser defrontado com as exigências maiores da vida, incontornáveis, e de uma situação pacífica, controlada, do dia para a noite, somos empurrados para o imprevisto, obrigados a retomar, de onde paramos, o jogo de xadrez com o gênio do caos. 

As ruas, sobretudo a central, do comércio, nos últimos cinco meses, nunca deixaram de fervilhar de gente e um pouco a cada dia tem sido inevitável transitar por elas, para cima e para baixo, fazer compras em lojas e supermercados ou buscar por serviços especializados: entrega domiciliar, apoio hospitalar, transporte fretado, caixa automático em agência bancária, etc. 

Eu mesmo me vi forçado, neste período, por duas vezes, a consultar um dentista, apesar do medo enorme de expor minha boca ao manejo de um profissional que trabalha debruçado sobre dezenas de outras, potenciais fontes primárias das viroses da temporada. Até conseguir convencer as enfermeiras a me liberarem uma dose da vacina para as gripes comuns do ano, precisei ir por três vezes ao posto de saúde local. Numa delas havia entre os pacientes um roceiro velho de boca tapada e olhos decaídos aguardando para fazer o teste para a tal Covid.

Outra coisa é que na casa da cidade alugada pela família cabocla que frequentei, durante o dois primeiros meses de nossa estadia, a ligação com a comunidade original da roça era constante e é impossível mudar hábitos centenários de um momento a outro, nem com os melhores argumentos científicos do mundo. Parentes vinham e voltavam, em levas, semana sim, semana não, trazendo as novidades, além de quitandas, doces, queijos, frangos vivos pra matar e comer, entre outros afagos de praxe. No dia a dia, era aquele entra e sai de amigos, vizinhos, irmãos e irmãs da igreja, namorados e namoradas, enfermeiras, cabeleireiras e manicures, a criançada da vizinhança embolada com a doméstica, em férias eternas, perambulando, cada vez mais sem lei e, claro, sem máscaras. 

Uma vez dentro da residência, dificilmente os que vieram protegidos da rua permanecem assim, pois entre paredes o clima é de relaxamento, familiaridade. Claro, em geral ninguém vai ficar mascarado dentro de casa. O tapa-rosto é um troço incômodo pois, além de atrapalhar a respiração, dificulta também a comunicação, o convencimento, a imposição, a conspiração, a burla, a piada, a sedução, enfim, o jogo social. 

Uma boa parte de brasileiros, de todas as origens e classes sociais, talvez tenha mais dificuldades nesse ponto, pois vive para a cena pública, adora se exibir. Além disso, não gosta de regra, formalidade, só segue uma norma estatal se não houver um modo qualquer de burla-la. 

Até nossa democracia é especial, tem um nível a mais de "controle" popular: depois de discutido, votado em plenário e promulgado um dispositivo legal, ocorre a seguir um período de teste, espécie de pós-plebiscito tácito, que vai determinar, em última instância, se a coisa "pega", como dizem, ou seja, se funciona na prática. Excelente! Acontece que a obrigatoriedade do cumprimento está implícita no conceito de lei. Em outras palavras, uma lei de eficácia relativa é tudo menos uma lei. 

Exemplo dessa verdadeira tara anarquista do povo brasileiro: passarelas sobre grandes rodovias, feitas para animais, pedestres e ciclistas, vira e mexe são usadas por motociclistas e, ademais, é preciso instalar uma longa tela de arame na divisa das pistas porque senão os "populares" passam por baixo mesmo, entre os carros, por pressa, ansiedade, estabanação, quando não por preguiça ou bravata suicida, "vida loca", sei lá. Sem a cerca, os atropelamentos continuariam bem debaixo da passagem segura. 

Em resumo, numa cultura assim tresloucada, não é de se admirar que muita gente esteja surda aos apelos diários, didáticos, insistentes, da mídia, dos profissionais da saúde e de algumas das autoridades do executivo, alertando para a necessidade de que todos usem o protetor facial como regra. 

E em relação aos velhos caboclos, gente de hábitos antigos em vias de extinção, como eles lidam com a questão da máscara? 

Observo que existem, como em tudo, muitas diferenças individuais. Há os anciãos que desdenham do uso da proteção como fazem muitos rapazes também, por hábito de apregoar a supremacia machã. 

Há outros, velhos e jovens, que fazem um uso provisório e mais ou menos relaxado do aparato, com o pano abaixo do nariz ou do queixo. Nem sempre ele é posto assim deliberadamente. Muitos possuem apenas uma ou duas máscaras, em geral confeccionadas artesanalmente, nem sempre bem adaptadas ao feitio particular da face de cada um. Algumas estão como um trapo, arrochadas pela lida pesada, a ação da fuligem de fogão a lenha, dos suores brutos ou do pó da lavoura e da estrada. Outras já foram intensamente lavadas até ficarem frouxas ao limite, não servindo para vendar mais nada. Assim sempre ficaram as vestimentas e acessórios dos homens e mulheres que trabalham muito fisicamente, no campo, na horta e na casa. A roupa é exigida demais, logo fica rota devido ao modo de ser laborioso mesmo da existência cabocla. 

Que se imagine, então, como essas coisas se passam entre nossos irmãos indígenas! 

Entende-se como não é simples chegar em meio a populações acostumadas a uma rotina dura de labor muscular em regime de ar aberto e impor o costume de usar, como dizem, a "fucinhêra"? E como faze-los viver uma vida de isolamento físico em relação à extensa parentela e aos conhecidos mais ou menos "chegados" que frequentam cada morada, em constante circulação? Muitos sinalizam claramente que compreendem a necessidade da proteção facial e do isolamento social como medidas para evitar que a doença se alastre, essa é mesmo entre os antigos uma ideia bastante lógica, do senso comum. Evidente que o mal se espalha mais em meio ao povo congregado, daí a necessidade de evitar as aglomerações de toda sorte. Porém, como fazer isso sem romper os ditames universais da hospitalidade: acolhimento, camaradagem, reciprocidade? 

Conheci nesses dias uma senhora de cerca de sessenta anos, moradora de um bairro rural muito isolado, muito distante da sede do município. Ela me chamou atenção entre outras mulheres da comunidade porque usava uma mascarazinha excepcionalmente bem confeccionada e bem ajustada. Via-se que foi toda feita a mão, mas de forma bastante perita e seguindo à risca algumas instruções dadas na TV que sugerem o uso de no mínimo duas camadas de tecido: uma, exterior, de pano comum, mais fino, outra, interna, de um algum tipo de flanela, mais espessa. Conversamos um bom tempo, ela mesmo tinha feito o acessório, para si e toda a família. 

Pelas vestes já sabia que era "evangélica", mas em nenhum momento ela quis levar o assunto, como é comum entre os "crentes", para os temas bíblicos ou para a conversão dos infiéis. Esperta, inteligente, delicada. Uma pessoa dessas poderia ser um foco de disseminação importante dos novos hábitos, se contasse com o apoio do estado, dos agentes sanitários. Imagino que ela poderia, por exemplo, instruir um grupo de outras senhoras a produzirem grande quantidade de máscaras como a sua, segura, robusta, bem assentada no rosto, e isso usando os mesmos recursos caseiros, limitados, que ela mesma utilizou. Elas poderiam ser distribuídas e adaptadas a cada membro da comunidade pela equipe de costureiras, um serviço personalizado, como cortar e arrumar os cabelos. O município poderia reunir, ajudar a treinar, transportar e remunerar a equipe, parari-parará... 

Utopia?

Para que esse tipo de magia artesanal de efeitos sociais ocorra, é forçoso que os entes públicos, antes de agirem, conversem muito, escutem muito, às vezes insistam um pouco até que extraiam informações essenciais a partir de perguntas bem postas, dentro do quadro da mentalidade e da língua locais, questionando sobretudo o sexo feminino, aquelas irmãs, mães, tias e avós mais atentas e amorosas (em geral as menos falantes), pois elas guardam segredos de atenção maternal que fariam, a meu ver, grande diferença na implantação eficaz dos novos saberes e práticas profiláticas. 

A rigor, de nada adianta usar a máscara lá fora e não aqui dentro, se os estranhos chegam e partem com ela ou sem ela e se todos os residentes também estão entrando e saindo a toda hora para darem conta dos diversos afazeres ou satisfazerem certos prazeres de que alguns, sobretudo os homens jovens, não conseguem se privar. 

É curioso observar o uso intermitente do protetor, o que indica o cumprimento "meia boca", digamos, da ordem, ou seja, como um mero jogo de cena que, conforme a convenção exigida pela roda social do momento, pode mudar. Já vi mais de uma vez os rapazes conversando dentro de casa com a máscara, mas minutos depois era possível flagrar os mesmos assentados debaixo da árvore, do outro lado da rua, proseando entre amigos, todos com a face nua, entre anedotas, pilhérias, exaltação, risaiada, haja descontração! Quer dizer, usam a proteção quando não é assim tão necessário e não a usam quando seria imperioso. 

Certo, em qualquer situação, o controle nunca é total, todo mundo tem que sair uma hora e se arriscar, a vida normal também é assim, "viver, é perigoso". Mas para as pessoas das classes mais abastadas, que moram sozinhas, com um amigo ou companheiro, ou numa família pequena, no contexto de uma grande cidade, fica muito mais fácil escalar alguém para ir a campo cumprir os compromissos familiares, sempre protegido, e voltar para casa onde não há mais ninguém ou onde estão outros que não se expuseram ao contato com a multidão. A receita não é perfeita, porque nada é perfeito, mais é a ideal. No mais, até do ponto de vista psicológico, a gente das classes médias e altas pode suportar por mais tempo a solidão e a clausura pois, na prática, já vive assim, isolada e confinada, muitas vezes, em apartamentos minúsculos como celas de prisão. 

Pois entre os moradores pobres que se acotovelam nas feiras de rua, se amontoam em moradias precárias ou se roçam pelas vielas estreitas das comunidades periféricas, a exigência do isolamento social pode ser, fisicamente, impossível e, culturalmente, muito difícil de se cumprir. 

Da mesma forma, entre os membros de grandes comunidades rurais espalhadas por todo o país, que nascem, crescem, adoecem e morrem no âmbito coletivo, a vivência da intimidade, a privação do convívio humano em ampla escala, é agora, durante a pandemia, como sempre foi, inimaginável, pois não concebem outra forma de viver a não ser a comunitária. "Se os amigos chegam na porta da casa da gente, como é que eu vou dizer pra não entrar?!"

Na cultura camponesa, seja na roça, seja na cidade pequena incrustada no sertão, onde o trânsito de muita gente entre as casas é habitual e o estilo de vida solto, relaxado, sem cuidados de evitação, conforme hábitos de convivialidade que não podem ser repentinamente alterados, muitos fatores agem no sentido da facilitação dos contágios. 

Acredito, por exemplo, que um dos maiores propagadores do coronavírus nesses lugares é o machão rude, bruto, à moda antiga, animal que está ainda muito longe da extinção por essas e por outras bandas. Em geral, esse tipo social se arrisca mais a contrair a Covid e outras doenças, como se arrisca mais a se ferir numa briga de bêbados ou sofrer um acidente de automóvel ou motocicleta. Torná-lo um alvo principal de campanhas de conscientização, poderia ajudar de alguma forma em matéria de prevenção.

De uns oito anos para cá caiu sobre os municípios da região uma verdadeira praga de velozes e furiosos. A todo momento a gente leva susto ao tentar atravessar uma rua mais tortuosa pois os carros e, sobretudo as motos, aparecem do nada, a toda, de um segundo a outro. Qualquer arma que um jagunço possua serve para intimidar, seu esporte favorito. Mas os meios mudam, com o passar do tempo: antes a espingarda ou a peixeira, agora o carro ou a moto. Atualmente o inimigo é quem estiver no caminho, a senhorinha que tem oitenta anos ou mais e lá vai atravessando a avenida como se vivesse no tempo das tropas, o cachorro novo e inocente, a criança destrambelhada. Tá certo que os jagunços originais também barbarizavam geral, ou seja, tudo mudou para que ficasse a mesma coisa. 

As ruas mais antigas da cidade de que estou falando, dos tempos coloniais, ainda são pavimentadas de enormes placas de granito, maravilhosas, extraídas talvez do leito dos rios ou de pedreiras próximas, onde o material é abundante. 


Hoje em dia o piso é muito mais prático, padronizado e feio: blocos de cimento em formatos diversos. Um empregado da prefeitura que participa da produção desse tipo de calçamento, para driblar, quem sabe, o tédio do trabalho repetitivo, um dia estampou uma suástica na parte superior do molde em forma de hexágono, na certa dobrando as pontas de um vergalhão de ferro, com o qual imprimiu, no cimento ainda molhado, o baixo relevo que aparece na foto que fiz. 




Vejam como caprichou. Está feito justo na medida, bem centralizado e tudo. Quem assentou o bloco no chão não percebeu o símbolo, ou não sabia do que se tratava, ou sabia mas não ligou ou quem sabe até gostou. Quantos dos que passam aqui a pé, todo dia, o notaram, nos últimos vinte e cinco anos, desde que deve ter sido implantado? Subterrâneos da peste do ressentimento, que de uns tempos para cá ameaça voltar à tona. 

Por outro lado, o mesmo cenário, em rua mais periférica e tranquila, pode ser o palco perfeito para o universal "jogo da amarelinha".

 

O prédio vizinho à casa onde fiquei, andei observando, abriga uma espécie de cassino clandestino. É simples, despojado: um varandão, cinco ou seis mesas com quatro cadeiras cada uma, baralho de cartas e um único tipo de jogo, o "truco", muito apreciado por velhos espertalhões porque implica em encenação vigorosa, ginga de malandragem, doses certas de ofensa velada e, o principal, catarse, gritaria, cantoria de galo. Parece apenas um salão aberto que se comunica com a rua por um corredor que passa ao lado da casa do dono do estabelecimento, que fica na frente do terreno. O portão de ferro quase nunca está fechado e nota-se o vai-e-vem constante de homens do povo, trabalhadores braçais, na maioria. Nos fins de tarde, tomam banho, se refrescam, jantam a janta da mulher e, como bons burgueses de vida feita que não são, cada um dono de seu pequeno recurso de ostentação, vão torrar o suado dinheirinho da família na rinha do "truc". A movimentação não parece incomodar a ninguém da vizinhança mais próxima, e todos, obviamente, sabem o que se passa lá dentro. No mais, o bafuá pode ser facilmente confundido, por quem está apenas de passagem, com o trânsito normal de uma família extensa, algo comum de se ver em muitas moradias. De vez em quando eu dava uma espionada no local olhando por cima do muro, à noite, para ver como funcionava. O chefe não serve comida ou bebida aos clientes, deve apenas alugar as mesas. No máximo, além da droga poderosa da falsa sensação de poder, deve rolar a cortesia do café pois, nos "melhores dias", a farra barulhenta atravessa a madrugada. Seria muito simples para o prefeito ou o delegado determinar uma blitz surpresa no local, a porta fica escancarada e entra quem quiser, o que facilita o flagrante. Durante a batida, poderiam, no mínimo, solicitar algum alvará de funcionamento ou simplesmente impor multa ao proprietário por descumprimento da lei que proíbe aglomerações durante a pandemia. Pouco provável que o poder público se importe com esse foco, entre outros, de disseminação do vírus, mas, se acontecer, não tendo sido flagrados o comércio de comida e bebida ou a prestação de serviços, o dono vai alegar que se trata apenas de um encontro informal entre amigos. Nunca vi um único jogador usando máscaras e ninguém está minimamente preocupado com o fato de berrar nas fuças do opositor quando encontra o momento teatral perfeito para inflar o peito e soltar o cócórócócóóó!!!

O boteco da esquina é outro. Manteve aberta, esse tempo todo, uma bandinha de uma das três portas corrediças de vidro que possui, o que deixou o ar do lado de dentro muito mais estagnado e propício às contaminações. Aí também a circulação sempre foi intensa, e não apenas dos habitués mas de famílias inteiras, como por vezes incontáveis eu testemunhei. Lá dentro, homens jogam sinuca no cômodo abafado, enquanto um moleque sem camisa e descalço aparece para comprar guaraná em litro para os convivas do almoço dominical. A polícia passa, há gente assentada na calçada pelos três cantos da esquina, além do quarto onde está o bar. Relax total, todos tagarelando sem proteção facial e bebericando cervejinha geladinha, embora, claro, nada disso tenha a ver com o bar. Só não vê quem não quer mas tem remédio: vista grossa. Dizem que o proprietário já recebeu uma multa, mas o boteco continuou do mesmo jeito, ou seja, fechado mas aberto. 

Estou vendo há seis meses os editoriais da imprensa e a voz perita das autoridades médicas, políticas e militares alertando, todo santo dia, para a necessidade da população se manter o máximo possível em casa, durante os piores momentos da epidemia do coronavírus. Sem dúvida, existe essa necessidade pois, sem a quarentena, a doença avança mais rápido, atinge mais gente, sobrecarrega o sistema hospitalar, mata muito mais, deixa mais sequelas orgânicas e econômicas e provoca, para além do mal em si, oceanos de luto e trauma que podem atravessar gerações. No Brasil, em todos os estados da nação, uns antes, outros mais tarde, esse apelo diário pelo respeito à regra número um do combate a qualquer epidemia, o isolamento social, tem funcionado, como tudo, de modo capenga, ou seja, gambiarra mesmo, sem pé nem cabeça. Certo, não se desmantela da noite para o dia a cultura secular da imprevidência, do improviso e do cambalacho, o problema exige esforços monumentais e décadas de desenvolvimento humano para ser superado, mas existem formas de promover transformações pontuais com resultados imediatos para efeito de combate à doença, desde que, primeiro, se escute a população. Caso contrário, vai haver, como tem havido, muito desperdício de recursos econômicos e humanos em ações de pouca eficácia.

Agora, como o conjunto de nossas precariedades econômicas, sociais e culturais se manifesta diante das urgências da crise de saúde pública que estamos vivendo no presente? 

A partir das informações disponíveis a respeito do funcionamento das estruturas sociais locais (bairros centrais ou periféricos das metrópoles, pequenas cidades mais ou menos inseridas na rede do grande capital, zona rural sertaneja, tribo indígena, etc.), quais as melhores medidas a serem tomadas para barrar a epidemia, conforme o caso? 

Claro, até as piores autoridades sabem que os pobres em geral e a peãozada assalariada estarão mais expostos ao vírus porque se aglomeram mais em casa e no transporte público, porque dispõem de menos informações ou estão menos capacitados para compreende-las e assimila-las e também porque são forçados a sair para lutar pela vida, nas calçadas, nas fábricas, nas grandes fazendas e granjas, no atendimento público. E claro, até a liderança mais estreita e mesquinha é capaz de compreender que um mínimo de ajuda governamental precisa ser dada ao povão, caso contrário, mais dia, menos dia, se torna inevitável a revolta social, e eles sabem, já que não são assim tão burros, que a revolta social é a única força capaz de enfrentar os podres poderes oficiais mancomunados: o poder burocrático-político-militar, o poder industrial-financeiro e o poder dos conglomerados de manipulação midiática. Se a massa se rebelar, não há gás lacrimogêneo, não há bala de borracha ou metal, não há cárcere e torturador bastantes para darem conta da demanda de massacre, a coisa foge ao controle e aqueles que se beneficiam de uma ordem essencialmente injusta passam a vida numa luta ferrenha, diária, para manter a farsa, manter o controle. Nenhum tirano é tolo a ponto de achar que o solo onde se move um dia vai se tornar sólido e seguro, a vida de quem vive para permanecer no topo, acreditem, não é nada fácil, que o digam César e Mussolini, o primeiro assassinado pela elite calculista, o segundo pelo populacho cansado da política da morte.

Comentários

  1. Você disse aí muitas coisas que penso em escrever e não escrevi. Como dizem lá na nossa terra: Tirou daqui !

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