COMO OS PSICANALISTAS, OS ANTROPÓLOGOS E OS POLÍTICOS PARAGUAIOS PODERIAM NOS AJUDAR NO COMBATE AO NOVO CORONAVÍRUS SE ELES FOSSEM ESCUTADOS
O cinema comercial made in USA (assim como produtos derivados, de todo o mundo) é bobo, pré-programado, previsível de tal forma que basta ver um filme de determinado gênero para adivinhar o roteiro básico de todos os demais.
Divide-se em especialidades: comédia, comédia romântica, musical, aventura, ficção científica, ou seja, é compartimentado como a ciência mesma e sua irmã, a indústria, os três incapacitados para a mínima concepção do todo.
Peguemos um specimen da fauna: o chamado "cinema catástrofe".
Reparte-se, por sua vez, em diversas sub-categorias: derradeira guerra mundial, invasão alienígena do mal, furacão, terremoto e/ou tsunami, sequência de erupções vulcânicas, epidemias fora de controle.
A fórmula, todos sabemos de cor: após safar-se por um triz de um sem número de perigos mortais, a família do bem acaba bem, enredo para pipoca com coca, sofá de corpo frouxo e mente eletrodomesticada.
Claro, tudo tem sua hora, não é o caso de moralizar em cima da coisa, estamos apenas nos aproximando devagar do tema principal, a falta de escuta, a falta de diálogo e, em consequência, a falta de inteligência no combate ao coronavírus no Brasil.
Até onde posso saber, nem o mais refinado dos enlatados norte americanos do cinema catástrofe subtipo epidemia foi capaz de prever o modo complexo como estamos todos vivendo de fato, há meses, sob o surto mundial da tal covid-19.
Se o corona vírus matasse trinta por cento dos infectados, seria o enredo clássico, espetacular, em pouco tempo a pandemia traria o pandemônio para o sistema médico e funerário em escala planetária, considerando o quadro já bastante dramático causado pela doença real que tem um potencial de letalidade seis vezes menor, salvo engano. Esse caos médico-sanitário também se refletiria muito mais rápida e intensamente nos campos político-militar e social, com as consequências devastadoras que tornam, para a maioria dos telespectadores, mais atraentes os produtos oferecidos pela especialidade da indústria cultural de que estamos falando.
O roteiro da vida mesma, tal como está ocorrendo agora, embora seja muito mais surpreendente, faz-se porém muito menos atrativo à alma viciada no consumo da morbidez que não lhe toca.
O roteiro da vida mesma, tal como está ocorrendo agora, embora seja muito mais surpreendente, faz-se porém muito menos atrativo à alma viciada no consumo da morbidez que não lhe toca.
O tal corona está infectando pessoas de todas as nacionalidades e etnias, de todas as classes sociais, em proporções diversas, verdade, mas não há quem possa dizer que está absolutamente seguro em virtude, apenas, de sua localização geográfica, posição institucional ou status social. Sim, ele atinge em cheio os mais idosos ou os que possuem doenças prévias de certa gravidade, mas vez por outra e contra todos os prognósticos, vitimiza crianças, jovens e adultos em perfeito estado de saúde, assassina militares enormes de peito estufado, verdadeiras fortalezas de carne e osso, massacra homens e mulheres de grande força de paz e amor, líderes comunitários, sacerdotes e crentes fervorosos, yoguis, lamas budistas, artistas marciais, mestres de arma e meditação, além de mandar para o buraco, indistintamente, assistentes sociais, médicos e enfermeiros dedicados, treinadíssimos, brancos, negros e pardos, ou seja, aí também, por causa de sua condição física ou espiritual, ninguém pode apostar que esteja livre de tomar no meio da testa uma das milhões de balas perdidas que circulam nesse momento pelo ar sem endereço certo.
Para quem como eu, como você, leitor-ouvinte, que víamos a morte tão confortavelmente à distância, diante dessa perspectiva do projétil minúsculo que pode estar endereçado para mim, para você, e não só para o povo da baxada, o neguin que mora ali na favela ou o banbanban que transita de carro pela linha amarela, somos forçados a nos reposicionar diante dos mistérios da vida e da morte, admitindo, enfim: "sim, uma destas bolicas bélicas pode ser para mim!"
Embora possa não interessar ao cinema comercial, o que vivemos hoje daria um tema perfeito para grandes ficcionistas como Julio Cortázar ou Adolfo Bioy Casares, afinal, por causa desse cenário muito cru mas muito estranho que se assemelha à atmosfera de inúmeros contos, novelas e romances argentinos memoráveis, do gênero "realismo fantástico", o mundo está suspendido pelo medo, mas um tipo de medo muito peculiar, pois não há no horizonte nenhuma nave mãe alienígena repleta de lagartos biônicos que vieram limpar o planeta da patética raça humana, nenhum meteoro colossal em rota de colisão, nenhum novo dilúvio ou outro tipo de punição divina a nossos persistentes pecados, nenhuma expansão desenfreada das hordas zumbis, nada. Tudo deveria, então, estar normal, só que não, não está, existe uma pulga atrás da orelha.
Para aqueles privilegiados como eu, como você, que papeamos confortavelmente aqui través a net, esse espaço fora do espaço, nós que não nos encontramos na linha de frente da batalha nos postos de saúde, hospitais, laboratórios ou no mundo chão do camelô forçado a correr o risco de morrer da peste para não morrer de fome, tudo parece estar nos eixos, só que não, o absurdo está no ar.
Viver virtualmente é muito bom enquanto sabemos que, lá fora, nos esperam a vias de fato. Símbolo perfeito dessa nova normalidade de um non sense que fingimos não perceber? Meus companheiros do kung fu dando porrada através do aplicativo apropriado, misericórdia!
Viver virtualmente é muito bom enquanto sabemos que, lá fora, nos esperam a vias de fato. Símbolo perfeito dessa nova normalidade de um non sense que fingimos não perceber? Meus companheiros do kung fu dando porrada através do aplicativo apropriado, misericórdia!
Desemprego em massa, falências e bancarrotas, o avanço da miséria entre o povão, ou seja, desastres econômicos agravados pelo grande surto gripal não interessam a esses pacotes ficcionais formatados porque poderiam passar a impressão de que o sistema capitalista que os produz em série a custos elevados é imperfeito e isso não lhes vem ao caso, jamais! A ordem, qualquer ordem, só por ser ordem, é incapaz de trazer à luz a bomba relógio que carrega insuspeita no estômago e ameaça desintegra-la de um minuto a outro, a ordem é como o ser humano, recusa-se terminantemente, com firmeza agressiva, a admitir finitudes, e essa recusa gera o que? Conflito e morte. Poucas pragas devem ter matado mais gente do que, por exemplo, as guerras religiosas.
A nova velha ordem de baixa intensidade da quarentena também não seria capaz de inspirar um roteiro de suspense, afinal, todos já sabemos de antemão porque estamos suspensos, nenhuma revelação redentora nos aguarda no final. Vacina não, não é vitória. No máximo, prêmio de consolação.
É pena que não consegui fazer um apanhado dos clássicos do gênero para fundamentar um pouco mais meu argumento! E olha que bastaria um toque de dedo no Youtube, o estoque dessas pequenezas grandiosas é inesgotável! Mas não tive saco pra isso. Deixo a tarefa para meus milhões de seguidores imaginários, referências podem ser inseridas no campo dos comentários.
Imaginem vocês se Holywood seria realmente capaz, não diria de inventar, mas de produzir uma película retratando algo semelhante a essa nossa realidade mortal virtual, estanque, sem graça, de heróis de escassa musculatura, sem logomarcas, mascarados vestidos em roupões sem estilo, de tonalidades pálidas, puramente práticos, supermans e wonderwomans que se cansam, desanimam, desesperam, desistem, correm da raia ou, pasmem, adoecem e até morrem! Não, isso não atrairia público, não daria bilheteria! Ora, sem passar pelo filtro do dinheiro as coisas não existem na casca mais superficial do sistema capitalista, portanto, não restam dúvidas, um filme catástrofe baseado na covid-19 seria um projeto abortado na prancheta pelos membros da equipe econômica!
O planeta todo foi afetado pelo mau invisível, então, embora alguns estejam tentando, está difícil desenhar para a platéia um inimigo bem definido, uma entidade do contra, do oposto exato a ser eliminado, elemento essencial da arte de manter a tropa excitada. Só por falta disso, de um anti-herói facilmente identificável, a história já seria sem sal pra caramba, não dá! Os extra-terrestres, por exemplo, não poderiam assumir, no filme, o lugar do outro lado, do negativo, do culpado, pois está comprovado que o corona é produto cem por cento terráqueo e se saiu de algum laboratório, foi das escolas de zootecnia espalhadas aí pelo mundo. Não, não acho que foi de propósito, mas ocorreu de forma derivada do manejo inveterado de porcos, frangos e outros bichos que o bicho homem come, montanhas e montanhas de carne picadas, moídas e engolidas todo santo dia! Em suma, trata-se apenas de mais um de uma série de micróbios modernos que estão saltando, às vezes, de animais selvagens para povos tradicionais (que já não vivem mais isolados com seus vírus de circulação limitada), às vezes, de animais de criação, (geneticamente alterados, mecanicamente tratados e confinados em massa) para empregados de granjas, frigoríficos, açougues, mercados e, daí, para a população em geral.
Dirão: "essa é muito boa, o agrobusiness responsável indiretamente pela Covid?! Sua Excelência fala isso com base em que?! Já leu a respeito algum estudo sério, sistemático? Seu cérebro está derretendo com teorias conspiratórias de esquerda, você está delirando, meu rapaz!!"
Será?
Se lembram quando surgiu a chamada "gripe suína"? Foi aquela correria dos grandes meios de manipulação para banir o termo da consciência pública o mais rápido possível, substituindo-o pelo famoso H1N1, limpo e abstrato como uma nuvem.
A exemplo da arte dramática coca-e-pipoca, o jornalismo agro-é-pop jamais suscitaria essa e outras correlações de ideias potencialmente danosas à imagem de virgem imaculada do grande negócio que nos enfia goela abaixo todo santo dia. Sua natureza corrompida não deixaria.
"O que? Então está querendo falir as granjas de porcos que dão emprego direto e indireto a milhões de pessoas mundo afora, seu terrorista!?"
Okey boys, eu sou mesmo exagerado, talvez eu deva me retratar.
Outro dia mesmo nosso querido JN teve a delicadeza de achar buraco na pauta para um trechinho de entrevista feita com determinado antropólogo cujo nome, infelizmente, não anotei. Óbvio, ele falou do "assunto do momento": a escalada de casos da covid entre os índios da Amazônia. Esse sujeito deu, de forma muito serena e didática, uma aula básica sobre o modo de atuação dos profissionais de sua área. Disse que os povos da floresta precisam deles para que traduzam informações científicas sobre a doença (bulas de remédio, procedimentos, formas de prevenção e de tratamento, etc.) para o contexto dos dialetos locais e levando em conta uma série de hábitos culturais muito antigos e muito arraigados que não mudam da noite para o dia, ou seja, todo um estado de coisas que forma uma barreira difícil de transpor para os leigos no campo antropológico, por exemplo, médicos e agentes de saúde, por mais criteriosos e bem intencionados que possam ser.
Então, um viva ao Jornal Nacional!! Agora o Brasil inteiro sabe que a sociologia também é ciência e é ciência prática, tem utilidade para alguma coisa, porra finalmente!!
Então, se o antropólogo bem formado é útil na promoção do convencimento dos indígenas a respeito das recomendações de natureza científica em face do avanço assustador da epidemia, porque seu trabalho não seria igualmente importante nas comunidades densas e pobres das grandes cidades ou nos bairros rurais sertanejos mais remotos onde também se encontram populações com características espaciais, organizacionais e culturais muito específicas?
Nesse momento estou há três meses cumprindo, da melhor maneira possível, meu período de quarentena numa cidade pequena do interior de Minas Gerais.
Não se trata de uma cidade pequena qualquer porque está situada no coração de um vasto território, que abrange pelo menos uma dezena de outros municípios, onde são escassas as atividades econômicas de grande porte e existe uma numerosa população vivendo ainda, na essência, conforme os antigos costumes caboclos, apesar da crescente influência local da cultura moderna: educação formal, trabalho remunerado, produtos industrializados, eletricidade, televisão, enfim, hábitos urbanos no que eles possuem de melhor e de pior. Conheço muitos jovens que aprenderam a escovar os dentes não com a família, que não tinha tal "tradição", mas na escolinha rural da comunidade, com as professoras. Por outro lado, crianças e adolescentes estão se tornando mais e mais sedentários e obesos pois se exercitam muito menos e se alimentam de forma muito mais desregrada que seus pais e avós, conforme tendência seguida por milhões de pessoas de todas as classes sócio-econômicas que vivem em meio urbano. Veículos automotores encurtam as distâncias e poupam enormes sacrifícios mas tornam as pernas mais fracas e o olhar da paisagem mais desencantado.
São muitos os exemplos que eu poderia dar desses movimentos contraditórios.
São muitos os exemplos que eu poderia dar desses movimentos contraditórios.
Cheguei aqui pela primeira vez cerca de vinte e cinco anos atrás. Na época ainda era muito raro encontrar nas moradias de roça um cômodo específico para banheiro com paredes azulejadas, como hoje se vê por todo lado. Para "fazer as necessidades", usava-se a chamada "casinha", situada do lado de fora, no terreiro. Que sofrimento acordar numa madrugada gelada com vontade de fazer xixi! Era um quarto de metro e meio quadrado sem reboco. Havia uma laje de cimento nu no chão com um buraco no centro justo em cima da fossa, direta inversão do aparelho digestor. Nos dias de muito calor, enquanto cagávamos, ouvíamos o zumbido forte de todo um esquadrão de moscas varejeiras planando lá no fundo, abaixo, no escuro, um assombro! Essa realidade mudou muito desde então e os novos hábitos de higiene e educação facilitam o trabalho dos profissionais da saúde que, com muito mais frequência, hoje em dia, passam pelos sertões distribuindo vacinas, cuidados médicos gratuitos e saberes sobre prevenção de doenças, sem qualquer discriminação.
Apesar disso, apesar de alguns avanços, ainda existem, nesses lugares, formas de pensar, agir e fazer centenárias, muito enraizadas e persistentes, que apontam no sentido contrário, isto é, que podem favorecer a propagação de enfermidades muito contagiosas.
Na próxima postagem, espero narrar em mais detalhes esta vivência pessoal da quarentena no interior sertanejo. Será minha pequena contribuição ao debate em torno da melhoria da eficácia das prescrições médico-científicas nas amplas áreas subsistentes do país de raíz camponesa.
Tenho visto na TV muitas discussões técnicas sobre a necessidade de instruirmos a população a respeito do isolamento social e do uso da máscara e da higiene corporal, especialmente das mãos, como medidas de prevenção essenciais no combate ao coronavírus. Ótimo, concordo, precisamos fazer isso e de forma cada vez mais insistente e incisiva.
Por outro lado, a meu ver também precisamos entender melhor porque uma ampla faixa de pessoas, representativa de todos os níveis de renda e de instrução, se recusa a escutar as recomendações da medicina moderna ou a coloca-las em prática.
É aí que entram os psicólogos, os antropólogos e os paraguaios.
A psicanálise pode nos ajudar a entender certos mecanismos psíquicos que colaboram para a potencialização da onda epidêmica.
Freud teve que fugir com a família da Áustria depois de ter sentido na pele e presenciado no consultório, durante anos, as consequências da "peste emocional" que foi se alastrando pela Europa com o avanço da ideologia nazista. Essa história conhecemos, a praga não precisou de nenhum agente patológico para exterminar milhões de seres vivos e mergulhar o planeta numa terrível crise econômica. Tudo no mundo industrial é hiperbólico, inclusive a barbárie. O planeta está acostumado às piores atrocidades, mas nunca tinha visto nada igual. Além de pessoas, esse germe invisível e imaterial arrasou metrópoles inteiras, pontes, ruas, prédios, hospitais, indústrias, tudo abaixo e por reconstruir. Só os Estados Unidos da América varreram do mapa com bombas incendiárias sessenta e sete cidades japonesas antes do golpe final em Hiroshima e Nagasaki, e isso porque eram os "good guys". A mente brilhante de Freud esteve em posição "privilegiada", se me permitem a ironia, nas ruas de seu tempo e em seu pequeno "laboratório" da mente humana, para analisar como e porque o cidadão comum, educado, limpinho, acima de qualquer suspeita, acaba se tornando veículo de disseminação dessa maladia mental coletiva de efeitos infinitamente mais danosos do que a covid e que agora parece ressurgir entre nós para agravar a epidemia, abre aspas, "de fato". Lacan, outro expoente da prática e da teoria psicanalítica, embora não tenha se aventurado como seu mestre pelo campo da chamada "psicologia de massas", falava da "paixão pela ignorância" que caracteriza uma boa parte da humanidade. A ideia é a seguinte, grosso modo: o sujeito narcisista e ressentido se agarra ardentemente à negação de tudo aquilo que refreia seus impulsos egocentrados. Se contrariado, esse sujeito quer eliminar a crítica socando a boca do crítico. Quem não viu, durante a quarentena, aqueles machões flagrados pelas câmeras dos celulares voando no pescoço do motorista do "lotação" que foi obrigado pela lei e pela empresa a impedir a entrada no ônibus do cidadão que não esteja portando a proteção facial? Pelo fato de não suportarem a menor contrariedade, esses tipos reativos foram imersos, com a pandemia, numa situação social que força a sujeição a regras que limitam seus impulsos vorazes de dominação ou impõem a necessidade de que tenham consideração pela vida do outro. Sim, eles sempre estiveram por aí mas, por causa das novas exigências sociais, os contaminados pela peste emocional estão andando com os nervos à flor da pele e a ponto de causar grandes estragos.
O que fazer com essa espécie peculiar de doente que pode contaminar multidões e fazer da Terra terra arrasada? Sinceramente não sei, mas o caminho do entendimento do fenômeno, acho, está mais na direção do que aponta a psicologia e, sendo assim, a medicina deveria sentar um pouco em meio a toda essa loucura para escutar o que têm a dizer aqueles que entendem mais do assunto. Sem lideranças cientes de tais barreiras psíquicas de compreensão, políticas de esclarecimento público podem se tornar superficiais e ineficazes em aspectos essenciais, eu acho.
Freud teve que fugir com a família da Áustria depois de ter sentido na pele e presenciado no consultório, durante anos, as consequências da "peste emocional" que foi se alastrando pela Europa com o avanço da ideologia nazista. Essa história conhecemos, a praga não precisou de nenhum agente patológico para exterminar milhões de seres vivos e mergulhar o planeta numa terrível crise econômica. Tudo no mundo industrial é hiperbólico, inclusive a barbárie. O planeta está acostumado às piores atrocidades, mas nunca tinha visto nada igual. Além de pessoas, esse germe invisível e imaterial arrasou metrópoles inteiras, pontes, ruas, prédios, hospitais, indústrias, tudo abaixo e por reconstruir. Só os Estados Unidos da América varreram do mapa com bombas incendiárias sessenta e sete cidades japonesas antes do golpe final em Hiroshima e Nagasaki, e isso porque eram os "good guys". A mente brilhante de Freud esteve em posição "privilegiada", se me permitem a ironia, nas ruas de seu tempo e em seu pequeno "laboratório" da mente humana, para analisar como e porque o cidadão comum, educado, limpinho, acima de qualquer suspeita, acaba se tornando veículo de disseminação dessa maladia mental coletiva de efeitos infinitamente mais danosos do que a covid e que agora parece ressurgir entre nós para agravar a epidemia, abre aspas, "de fato". Lacan, outro expoente da prática e da teoria psicanalítica, embora não tenha se aventurado como seu mestre pelo campo da chamada "psicologia de massas", falava da "paixão pela ignorância" que caracteriza uma boa parte da humanidade. A ideia é a seguinte, grosso modo: o sujeito narcisista e ressentido se agarra ardentemente à negação de tudo aquilo que refreia seus impulsos egocentrados. Se contrariado, esse sujeito quer eliminar a crítica socando a boca do crítico. Quem não viu, durante a quarentena, aqueles machões flagrados pelas câmeras dos celulares voando no pescoço do motorista do "lotação" que foi obrigado pela lei e pela empresa a impedir a entrada no ônibus do cidadão que não esteja portando a proteção facial? Pelo fato de não suportarem a menor contrariedade, esses tipos reativos foram imersos, com a pandemia, numa situação social que força a sujeição a regras que limitam seus impulsos vorazes de dominação ou impõem a necessidade de que tenham consideração pela vida do outro. Sim, eles sempre estiveram por aí mas, por causa das novas exigências sociais, os contaminados pela peste emocional estão andando com os nervos à flor da pele e a ponto de causar grandes estragos.
O que fazer com essa espécie peculiar de doente que pode contaminar multidões e fazer da Terra terra arrasada? Sinceramente não sei, mas o caminho do entendimento do fenômeno, acho, está mais na direção do que aponta a psicologia e, sendo assim, a medicina deveria sentar um pouco em meio a toda essa loucura para escutar o que têm a dizer aqueles que entendem mais do assunto. Sem lideranças cientes de tais barreiras psíquicas de compreensão, políticas de esclarecimento público podem se tornar superficiais e ineficazes em aspectos essenciais, eu acho.
Parece fácil isso, escutar, só que não. Eu li uma notícia que dizia que o Paraguai, sim o Paraguai, símbolo de improviso, gambiarra, falsificação, contrabando, instituiu uma política muito mais esperta que a nossa buscando evitar a propagação do vírus nas pequenas vilas do interior do país. Com a aproximação da onda epidêmica, as autoridades locais foram instruídas pelo governo central a montarem, à entrada de cada cidadezinha, barreiras sanitárias permanentes. Ali os técnicos anotavam os dados e intenções do visitante ocasional e se a ideia dele era permanecer no lugar, obrigava-se a cumprir em casa uma quarentena severa de duas semanas antes de pode andar livre pelas ruas.
Comparemos com minha experiência pessoal no interior do país das Minas Gerais. Quando eu vim me refugiar aqui, o corona vírus ainda não tinha sido detectado na região. Por isso me deparei, na estrada, com os expedientes que descrevo adiante. Era ridículo, tudo era fake, fake action, visava apenas dar uma satisfaçãozinha aos viajantes e moradores em trânsito no sentido de que o poder público municipal estava tomando alguma atitude viril para evitar a instalação da moléstia naquele território. Primeiro, fui obrigado, por guardas civis muito mal encarados, a parar o carro à altura de uma certa cidade histórica para que empregados da prefeitura fizessem a desinfecção dos pneus, ou seja, excelente medida para evitar a contaminação do gado bovino das fazendas próximas pela febre aftosa. Nem sequer fui forçado a abrir os vidros para que medissem minha temperatura corporal. Duzentos quilômetros além, a poucos metros de meu destino final, fui novamente parado. Desta vez não havia uniformes sombrios, revólveres na cintura, essas coisas muito úteis para causar intimidação em pessoas mas totalmente inaptas ao enfrentamento de agentes infeciosos letais. Estava lá apenas um pessoal com termômetros na mão e vestidos de branco da cabeça aos pés como pombas da paz. Eu acusei 35 graus, muito baixo, muito estranho, mas ninguém prestou muita atenção, tudo bem, siga em frente, aprovado. Anotaram minhas referências, com ênfase para o número do telefone celular, e pronto, só, liberou geral. Jamais recebi uma só ligação das autoridades.
"Escutar os paraguaios?! Só pode ser piada!"
Que tal incluirmos aqui, ao lado dos hermanos paraguaios, o povo cubano que, acostumado a lidar com pragas mais potentes, como o terrorismo do estado norte-americano, também, no combate á COVID 19, nos dá boas lições?
ResponderExcluirExcelente consideracion hermano!
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