PRESENTES DE HORIZONTES: NO MEIO DO CAMINHO, UMA PEDRA ENCANTADA
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O clima geral vem mudando, as longas temporadas de chuva no verão, comuns no passado, são muito mais raras, de todo modo insuficientes para abastecerem a maior parte dos mananciais.
Em meados dos mil novencentos e setenta, o plantio de eucaliptos em escala industrial, contribuiu, junto a mudanças climáticas de maior escala, para a secagem de pequenas fontes que alimentavam milhares de riachos nesses sertões das altas nascentes da bacia do Araçuaí-Jequitinhonha. Atualmente, os rios da região ainda correm o ano todo, mas seus níveis estão baixando.
Adiante falarei das experiências de ensino de arte que estou, aos poucos, introduzindo numa comunidade cabocla desses sertões.
Por enquanto, fico pensando...

Meus jovens amigos pintores aprendizes nasceram todos depois que o riacho do vale profundo onde vivem parou de correr de forma permanente, muitos anos atrás. Embora a vida desses meninos pobres não seja moleza se comparada aos filhos das classes mais abastadas das grandes cidades do Brasil, eles desconhecem boa parte das agruras bravas por que passaram as velhas gerações de seu povo.

Depois que a corrente cessou, por um tempo as mulheres tiveram que andar uma légua até o rio para lavarem roupa e trazerem água para uso doméstico, um sacrifício danado! Algumas delas ainda não chegaram aos trinta anos de idade e se lembram muito bem desses tempos difíceis. Contam que muitas vezes vinham descendo a grota com bacias e baldes equilibrados, como de costume, sobre a rodilha de pano assentada no alto da cabeça e davam um passo em falso ou escorregavam na lama e, pronto, inútil chorar o caldo derramado, era recolher o sabão, as vasilhas, a "panaiada riturcida", e voltar atrás, muito além, no grande vale, para começar tudo de novo.
Por enquanto, fico pensando...

Meus jovens amigos pintores aprendizes nasceram todos depois que o riacho do vale profundo onde vivem parou de correr de forma permanente, muitos anos atrás. Embora a vida desses meninos pobres não seja moleza se comparada aos filhos das classes mais abastadas das grandes cidades do Brasil, eles desconhecem boa parte das agruras bravas por que passaram as velhas gerações de seu povo.

Depois que a corrente cessou, por um tempo as mulheres tiveram que andar uma légua até o rio para lavarem roupa e trazerem água para uso doméstico, um sacrifício danado! Algumas delas ainda não chegaram aos trinta anos de idade e se lembram muito bem desses tempos difíceis. Contam que muitas vezes vinham descendo a grota com bacias e baldes equilibrados, como de costume, sobre a rodilha de pano assentada no alto da cabeça e davam um passo em falso ou escorregavam na lama e, pronto, inútil chorar o caldo derramado, era recolher o sabão, as vasilhas, a "panaiada riturcida", e voltar atrás, muito além, no grande vale, para começar tudo de novo.
Essas grimpas de morro ainda recebem chuvas sazonais entre outubro e março. Muita gente aproveita essa época de fartura para plantar suas rocinhas de milho e capim forrageiro para o gado.
Mas o lugar, na certa, hoje estaria deserto de pessoas, não fosse a chegada da rede de energia, faz uns quinze anos, e com ela a possibilidade de extrair, com bombas elétricas, a água do fundo de poços artesianos que foram, em geral, financiados pelos poderes públicos municipais.
Antes, outros programas governamentais já tinham disseminado, por todo o interior do semi árido, milhares de cisternas, primeiro de cimento, depois de materiais sintéticos, onde recolhem e armazenam a água captada das calhas dos telhados, durante o incerto período chuvoso. Até hoje as cacimbas são essenciais à permanência, nessas localidades remotas, de muitos assentamentos sertanejos, mas não seriam suficientes para matarem a sede, durante as secas mais severas, das pessoas e dos animais de criação.
Daí que entra o milagre chamado energia elétrica. Energia elétrica se converte em múltiplas utilidades mas principalmente na maior delas, água pura, fresca, subterrânea. Assim, muitos ficam no lugar, ou vão e voltam para os centros mais prósperos, todo ano, em exílios forçados dentro de seu próprio país.
Daí que entra o milagre chamado energia elétrica. Energia elétrica se converte em múltiplas utilidades mas principalmente na maior delas, água pura, fresca, subterrânea. Assim, muitos ficam no lugar, ou vão e voltam para os centros mais prósperos, todo ano, em exílios forçados dentro de seu próprio país.
Vez por outra uma chuvarada mais pesada enche o riacho de forma repentina e violenta. A torrente pode ser súbita e forte o bastante para sair arrancando os canos que levam água potável dos poços para casas posadas na ribanceira oposta do vale, arrebentar cercas de arame das divisas de propriedade ou cercados de bambu do entorno das hortas, demolir galinheiros e mesmo currais, arrastando aves, porcos, bezerros e bois que, após o desastre, são encontrados, vivos ou mortos, atolados na lama, muitos quilômetros abaixo. Depois que passam as tempestades e o sol torna a mostrar a face impiedosa que tem nessas latitudes, o fluxo ainda permanece por algumas horas até que vai se esgotando e pára de novo, de vez, deixando, aqui e ali, uma poça que em breve também desaparecerá. Esses arroubos do riachão são como o fogo da palha, muito alto e vibrante mas fadado a se extinguir por completo e a curto prazo.
À primeira vista, dá tristeza de contemplar o ventre de pedra da cachoeira assim exposto, desértico, sem movimento, sem vida.
À primeira vista, dá tristeza de contemplar o ventre de pedra da cachoeira assim exposto, desértico, sem movimento, sem vida.
Todavia, nem tudo parece estar perdido.
A um segundo olhar, menos derrotado, percebemos que restam, no leito ressequido, baciões de lapa ou enormes blocos de granito polidos por milênios pela correnteza. Uma vez assim, postos a descoberto, se sobressaem por sua beleza muito própria.
Revelam-se pedras de coloração, tamanho e formato muito variados, fixas, soltas ou meio soterradas, um universo de formas e cores mais que bastante para fazer trabalhar a imaginação.
As corredeiras dissolveram e carregaram daqui pra lá parte da terra do leito pedregoso e, a cada novo ímpeto, deslocam bancos de areia ou pedregulho e até rochedos pesados, além de troncos, galhos, folhas mortas e outros dejetos, mudando repentinamente a paisagem e dificultando a travessia de veículos, pessoas e animais pelas estradas que hoje cortam o fundo do vale.
Antigamente, no tempo das tropas, os córregos corriam o ano todo, pelo que gente ou "criação" só conseguia travessar nos pontos onde a corrente se espraiava, os chamados "vaus". Agora não, as vias vicinais para automóveis e motos cruzam ou mesmo aproveitam pequenos trechos do antigo curso do riacho, agora árido e transitável o ano todo.
Um dia resolvi bater pernas em um de meus passeios solitários. Lá embaixo, achei atraente e decidi tomar a trilha do leito seco do tal ribeirão.
O que primeiro chamou minha atenção foi a grande variedade de rochas que compunham o cenário: torrões fundidos de ferro cem por cento ou em ligas e tonalidades diversas, indo do prateado ao ferrugem; muitas lascas de granito cinzento e poroso; blocos de quartzo e arenito puros ou amalgamados, multicores multifacetados, alguns polidos com esmero artesanal pelo aguaceiro, por séculos, até ficarem arredondados ou perfeitamente planos e lisos como certos utensílios primitivos.
Certo, as enchentes abruptas podem trazer grande inconveniente para o povo local, o que devemos lamentar, mas elas também removem dessas terras variadas outros recursos, os mais insuspeitos, e os expõem a todos aqueles que possuem olhos garimpeiros, espertos em separar o diamante do cascalho. Foi durante este primeiro passeio que me bateu a ideia da tal oficina de arte.
Naturalmente, idéias não nascem do nada, a história é antiga, o cérebro é individual mas a mente é coletiva.
Naturalmente, idéias não nascem do nada, a história é antiga, o cérebro é individual mas a mente é coletiva.
Quando criança, na cidade pequena onde nasci e cresci, o verão costumava ser tão bravo em matéria de insolação, que impedia nossa agitação pelos quintais e ruas ou pelas roças próximas na maior parte do dia. Uma das melhores vacinas contra o tédio que eu possuía, nessas horas de sol-a-pico, era o exercício de deitar sem camisa, de costas, buscando como um cão sem pudores o frescorzinho do chão de ladrilhos da varanda da casa de meus avós. Daí ficava ali, por longos períodos, mirando os céus, observando as nuvens em movimento, enquanto elas iam esboçando, e depois apagando, um desenho, após o outro, muito lentamente...
Temos aqui uma excelente prática de imaginação plástica que recomendo, em especial, a quem estiver de bobeira e com a vontade estagnada num dia de muito calor. Recreia e refresca o corpo-alma, atiça e, ao mesmo tempo, acalma.
Mais tarde, na adolescência, passei a procurar e encontrar esse tipo de imagem de sonho em troncos e raízes muito especiais que eu recolhia durante minhas frequentes deambulações pelo mato.
Levava aqueles monstrengos para casa e os estocava pelos cantos do meu quarto-oficina, para o espanto da família extensa e também dos visitantes ocasionais. Na verdade, nesses passeios, não era comum que um tôco desses se destacasse a meus olhos, entre milhares, no emaranhado da floresta. Os melhores eu encontrei quando não estava os procurando, como costuma acontecer em muitos campos do ofício e do conhecimento. Em seguida, eu passava semanas envolvido em trabalho minucioso. Primeiro, raspava toda "sujeira": musgos, lianas, cascas. Depois, aos poucos, ia entalhando detalhes na direção apontada pelas fibras do cerne do galho ou tronco. Gostava também de compor histórias em cima de cada "aparição" dessas: "As Aventuras do Doutor Kbôe-Kbôe", "Procurando o Cristal do Pássaro de Fogo", "O Ínfimo e o Infinito". Se fosse preciso, eu colava nos tôcos assim lapidados um rol de adereços. Podiam ser de pedra, arame, durepox e outros materiais que adornavam e compunham a roupagem do personagem que surgia assim assim, no ato, como deve ser o modo de fazer de alguns escultores-autores do teatro de bonecos, acho. Os resultados eram estranhíssimos, dá para imaginar. As pessoas da casa não gostavam muito das tais esquisitices e não poucos foram os que duvidaram, à época, da sanidade espiritual do pobre rapaz. Fazer o que, simplesmente seguimos adiante nosso destino de Lobo da Estepe pois aqui estou, ainda, ainda garimpando, ainda trabalhando.
Temos aqui uma excelente prática de imaginação plástica que recomendo, em especial, a quem estiver de bobeira e com a vontade estagnada num dia de muito calor. Recreia e refresca o corpo-alma, atiça e, ao mesmo tempo, acalma.
Mais tarde, na adolescência, passei a procurar e encontrar esse tipo de imagem de sonho em troncos e raízes muito especiais que eu recolhia durante minhas frequentes deambulações pelo mato.
Levava aqueles monstrengos para casa e os estocava pelos cantos do meu quarto-oficina, para o espanto da família extensa e também dos visitantes ocasionais. Na verdade, nesses passeios, não era comum que um tôco desses se destacasse a meus olhos, entre milhares, no emaranhado da floresta. Os melhores eu encontrei quando não estava os procurando, como costuma acontecer em muitos campos do ofício e do conhecimento. Em seguida, eu passava semanas envolvido em trabalho minucioso. Primeiro, raspava toda "sujeira": musgos, lianas, cascas. Depois, aos poucos, ia entalhando detalhes na direção apontada pelas fibras do cerne do galho ou tronco. Gostava também de compor histórias em cima de cada "aparição" dessas: "As Aventuras do Doutor Kbôe-Kbôe", "Procurando o Cristal do Pássaro de Fogo", "O Ínfimo e o Infinito". Se fosse preciso, eu colava nos tôcos assim lapidados um rol de adereços. Podiam ser de pedra, arame, durepox e outros materiais que adornavam e compunham a roupagem do personagem que surgia assim assim, no ato, como deve ser o modo de fazer de alguns escultores-autores do teatro de bonecos, acho. Os resultados eram estranhíssimos, dá para imaginar. As pessoas da casa não gostavam muito das tais esquisitices e não poucos foram os que duvidaram, à época, da sanidade espiritual do pobre rapaz. Fazer o que, simplesmente seguimos adiante nosso destino de Lobo da Estepe pois aqui estou, ainda, ainda garimpando, ainda trabalhando.
Claro, tive uns poucos e bons incentivos formais vindos de dentro da família, afinal, ninguém edifica sobre o nada, somos sempre discípulos devedores de longas linhas ancestrais. Anos antes, quando eu e uma de minhas irmãs, os mais novos da casa, éramos pequenos, tivemos a sorte inestimável de que uma das mais velhas, artista plástica e pintora de grandes qualidades, tivesse sempre à mão uma infinidade de suportes, matérias primas, papéis e tintas que, felizmente, compartilhava conosco sempre que possível.
Uma das brincadeiras de arte mais divertidas que ela nos propunha então, lembro muito bem, era a de respingar pigmentos vários sobre uma base branca e deixar que se espalhassem ou que nós espalhássemos os diversos tons resultantes de modo aleatório, com pincéis, lápis, dedo, palito, régua, o que fosse.
Primeiro era esse gozo de ver o acaso desenhando, misturando por si mesmo pingos, deslizes, correntes, sulcos, desmoronamentos de pós, líquidos, pastas colorantes. Só depois vinha a investida dos instrumentos, quanto mais breve e maluca melhor! De repente a ordem, stop!, tudo para, estava pronta a primeira etapa, sensorial, caótica. Enquanto o quadro secava, observávamos atentamente o processo de cristalização de nossa sopa pictórica, belíssima! Demora até a tintura desidratar, tempo suficiente para observarmos, com atenção intuitiva infantil, estranhando o mais possível a coisa quase pronta para escolhermos onde, em seguida, íamos "atacar". Então, cada um de nós tomava posse de seu recanto da obra e contornava com caneta, carvão ou lápis preto, suas "visões", dando forma a um universo de paisagens extralunares, plantas bizarras e criaturas de sonho.
Pois não é que ainda hoje, com mais de cinquenta anos de idade, eu, o bobo, continuo brincando e reinventando esses artifícios da infância?! Espero que elas, as irmãs, também.
Não nos tivessem sido dados todas as químicas e ferramentas da indústria, nós tiraríamos tudo de que necessitamos dos mais simples elementos, da madeira bruta, da lasca do bambu, da fibra do cipó, da pedra, da terra, do minério in natura que está por todo o lado.
Detalhe: esse exercício não exclui, necessariamente, os recursos tecnológicos, o importante é a atitude plástica, o meio de expressão pode ser qualquer um, o que estiver mais à mão.
Exemplo? O filme do link abaixo, que rodei de minha janela, no entardecer de ontem, mostra, no canto superior direito, a agulhinha formada pela trilha de fumaça de um aviãozão a jato que não podemos ver "mod` a distânça". Só aparece a calda, um rabicho rabisco que se forma na frente enquanto, por trás, se desfaz... Uns dez segundos, apenas... O filete semovente penetra pouco a pouco os nimbos dourados... O mundo mais material está prenhe de ilusões, percebe-se?!, a fantasia encontra-se entranhada nas coisas.
Com base nisso, a mil quilômetros do Jequitinhonha, em sítio escarpado do sul do estado onde há pedras e rochedos que brotam do solo por todo lado, inaugurei, faz uns dois meses, no campo aberto, perto da casa, um novo gênero, de certa forma, tecnológico, da velha e boa pintura rupestre.
As fotos demonstram: o relógio de sol aqui opera verdadeiros milagres, mudando cores, linhas, sombras, sentimentos sobre uma só e mesma obra.
Com base nisso, a mil quilômetros do Jequitinhonha, em sítio escarpado do sul do estado onde há pedras e rochedos que brotam do solo por todo lado, inaugurei, faz uns dois meses, no campo aberto, perto da casa, um novo gênero, de certa forma, tecnológico, da velha e boa pintura rupestre.
As fotos demonstram: o relógio de sol aqui opera verdadeiros milagres, mudando cores, linhas, sombras, sentimentos sobre uma só e mesma obra.
Preciso dizer que essas ideias devem muito a minhas visitas anuais aos geniais artesãos de Araçuaí: Marcinho, Dona Zefa e, sobretudo, Dona Lira Marques. Situada às margens do rio de mesmo nome, é uma das maiores cidades do Vale do Jequitinhonha, com cerca de cinquenta mil habitantes, na atualidade. Espero poder falar aqui no blog de todos esses artistas, um a um, com riqueza de detalhes.
Zefa, falecida não faz muito tempo, dizia que, no entalhe de suas grandes e pesadas esculturas em madeira, gostava de seguir as "aparências", as sugestões das fibras, veios e nódulos inerentes a cada tronco.
Já Lira Marques se criou na arte da paneleira, e com os anos tornou-se escultora do barro e pintora auto-didata. Utiliza uma grande variável de terras coloridas na cerâmica e pintura que faz.
Ela as extrai na zona rural do município ou em viagens além. Também as recebe em doação ou compra de outros artesãos em trânsito pela rica província mineral. Quando preciso, ela mesma as beneficia e mistura segundo seus propósitos. Em seguida, ela aplica essas tintas naturais misturadas a cola sobre suportes baratos de vários tipos, papelão, papel kraft, pedras roliças de quartzo, algumas muito pesadas, que ela mesma escolhe a dedo, em visitas ocasionais, e depois manda trazer das margens do Araçuaí.
O resultado de seu trabalho não difere muito das imagens oníricas que eu e minhas irmãs fazíamos brotar do papel aquarela quatro décadas atrás.
Para desenvolver a visão mágica que extrai da natureza informe essas realidades fantasmagóricas, é preciso estar no mesmo estado semi desperto, semi devaneante, que o artista busca no momento da performance, seja ela qual for, gestual, plástica, musical, teatral, escrita. Um estado de alma, talvez, semelhante ao que os teóricos da psicanálise chamam de "atenção flutuante", de atenção sem tensão?
Vejam só, senhoras e senhores, como o exercício da menor das artes pode ajudar a todos nós, em tempos difíceis. Em meu país, estamos nesse momento em pleno pico da epidemia do coronavírus. Há três meses em quarentena, observei e fotografei por muitos dias os mesmos cenários do crepúsculo aqui de minha janela. Durante essa jornada sombria, tenho tido a sorte que muita gente amiga não teve, de desfrutar dia após dia de pontos altos voltados estrategicamente para o sol que se põe. Em tempos de clausura, angústia e incerteza, essa abertura tem sido para mim de grande valia para suportar dignamente a sina da prisão. Há no português escarrado do Brasil o dizer: "esse vagabundo ainda há de ver o sol nascer quadrado", ou seja, um dia desses amanhece na masmorra. Eis que estou testemunhando, todo santo dia, "o sol morrer quadrado". Vivo essa pena sem ter incorrido, que eu saiba, num único delito descrito no código penal. Mas não há de ser nada. A diversidade das pinturas que daí surgiram, as cores muito vivas, as energias luminosas, as formas envolventes, ilustram magnificamente o valor de observar e recriar tais surpresas gratuitas do mundo natural, galho, pedra, perfil de montanha, evolução de nuvens.
Assim que tenho juntado nas últimas semanas, em meus arquivos visuais, toda uma coleção de imagens delirantes.
Depois de um tempo, a beleza e a estranheza eram tamanhas, que passei a enviar a alguns de meus correspondentes do whattzap, a cada entardecer, estas "lives estáticas", por assim dizer, verdadeiros presentes de horizontes para aquele ou aquela como eu que, do outro lado da linha, conta os minutos para botar o pé na estrada, rumar para as colinas, lançar a vista ao longe e encher o peito de ar.
Vale dizer que, devido ao modo naturalíssimo como herdei o hábito da aventura plástica de minha irmã mais velha e outros artistas, tornei-me um adepto desse tipo de educação informal e despretensiosa. Convívio simples de ensino e aprendizado, pronto, que bom se sempre pudesse ser assim! Nada melhor para esse tipo de exercício fortuito de coletividade do que promover, entre a criançada e alguns adultos mais disponíveis, o brinquedo instigante de modelar o barro ou pintar em suportes triviais, assim como fazem Lira e Zefa de Araçuaí, utilizando a técnica de descoberta das marcas guias do acaso.
Ao longo de muitos anos, foram incontáveis tardes de domingo brincando em grupo assim, alegre, indisplicente e produtivamente, entre família, amigos e agregados. E não precisamos de financiamento, tempo regulamentado, prestação de conta, parceria com instituição estatal ou organização beneficente para realizarmos a tal magia, afinal, já sabemos, a natureza, fora e dentro de nós, tudo nos dá, sem limites de uso e reuso e nenhum custo monetário, caso seja necessário.
Os entraves maiores que encontro estão, na verdade, na mente de cada um, mais ou menos moldada, cada uma a seu modo, pela mentalidade geral contemporânea, mentalidade vítima da divisão radical entre o produtivo e o criativo, o útil e o deleitável, o prático e o imaginário, o utilitário e o decorativo, o científico e o artístico, o técnico e o mítico e por aí vai. Na cultura, na mentalidade indígena ou camponesa, esses limites são muito menos definidos, o que tem suas vantagens.
Ao longo de muitos anos, foram incontáveis tardes de domingo brincando em grupo assim, alegre, indisplicente e produtivamente, entre família, amigos e agregados. E não precisamos de financiamento, tempo regulamentado, prestação de conta, parceria com instituição estatal ou organização beneficente para realizarmos a tal magia, afinal, já sabemos, a natureza, fora e dentro de nós, tudo nos dá, sem limites de uso e reuso e nenhum custo monetário, caso seja necessário.
Não, não estou advogando aqui nenhuma forma de espontaneísmo, nenhum anti-cientificismo, nenhum misticismo, longe de mim. A questão está na liberdade e no poder de transitar entre fronteiras mentais e práticas, habilidade que, a meu ver, a nós, os auto-proclamados modernos, anda fazendo falta.
Enfim, a maior das dificuldades que enfrento com boa parte das pessoas, e até com certas crianças, quando vamos brincar juntos pela primeira vez nessas oficinas de arte natural, é a ideia pronta que trazem na cabeça, idéia de que devem modelar no barro ou desenhar na pedra "alguma coisa", ou seja, alguma coisa da "realidade", um coqueiro, um boizinho, um chalé na montanha, enfim, alguma "verdade" figurativa.
É aí que se estrepam, a realidade material é muito difícil de reproduzir num suporte físico, com toda sua complexidade de detalhes, brilho, contraste, forma e fundo. Ficam super empolgados em começar, tirar do nada, vamos lá, a fachada de uma casa, o perfil de um peixe ou uma simples banana. Contudo, quando partem para a prática, percebem que a coisa não é tão fácil quanto pensavam, e acontece que logo estão decepcionados com o resultado e a frustração os faz decair para a entrega, a desistência, uma lástima! Isso me deixa infeliz da vida! Então que a proposta que faço a meus parceiros aprendizes de visualizarmos alguma imagem nas formas da natureza pode ajudar muito nessa tentativa de despertar as forças criativas primárias de cada um no limiar da atenção devaneadora, seminconsciente. O acaso, assim, de alguma forma, dá-se forma, linguagem, sentido humano.
É aí que se estrepam, a realidade material é muito difícil de reproduzir num suporte físico, com toda sua complexidade de detalhes, brilho, contraste, forma e fundo. Ficam super empolgados em começar, tirar do nada, vamos lá, a fachada de uma casa, o perfil de um peixe ou uma simples banana. Contudo, quando partem para a prática, percebem que a coisa não é tão fácil quanto pensavam, e acontece que logo estão decepcionados com o resultado e a frustração os faz decair para a entrega, a desistência, uma lástima! Isso me deixa infeliz da vida! Então que a proposta que faço a meus parceiros aprendizes de visualizarmos alguma imagem nas formas da natureza pode ajudar muito nessa tentativa de despertar as forças criativas primárias de cada um no limiar da atenção devaneadora, seminconsciente. O acaso, assim, de alguma forma, dá-se forma, linguagem, sentido humano.
Depois de tantas experiências e com a base sólida de meus mestres, primeiro, meu próprio espírito sonhador de nuvens, segundo, minha irmã mais velha e seus pingos aleatórios, terceiro, as artistas caboclas de Araçuaí, a nova arte rupestre de Lira Marques, acredito que estou chegando a um ponto avançado de minhas pesquisas lúdicas de campo.
Assim que a última oficina espontânea que aconteceu com a molecada do Ribeirão, em janeiro deste ano, foi simplesmente sensacional, vou contar aqui, em texto, vídeo e foto, e vou contar agora, se é que já não ocupo por demais seu tempo, prezado leitor-ouvinte.
Já é o segundo ano que brinco com as crianças daqui de pintar pedras do riacho próximo. Mas da primeira vez não tinha como saber que a fertilidade de um passeio ao acaso ia me despertar a boa ideia e, assim, vim meio despreparado.
Já é o segundo ano que brinco com as crianças daqui de pintar pedras do riacho próximo. Mas da primeira vez não tinha como saber que a fertilidade de um passeio ao acaso ia me despertar a boa ideia e, assim, vim meio despreparado.
Tudo o que eu possuía então era um pequeno conjunto de aquarelas e essa tinta provou ser muito fraca para apresentar tonalidades vivas sobre calhaus de cristal e lascas ferruginosas. fotos Nem por isso deixou de ser uma delícia todo o processo, óbvio, mas eu sabia que dava para melhorar e muito, com os materiais certos e uma didática mais apurada.
No começo deste ano reapareci nessas bandas do sertão com pigmentos minerais diversos e um belo estoque de cola tenaz branca. Em uma semana promovi diversas oficinas com crianças, jovens e adultos do lugar.
Depois fizemos uma maravilhosa instalação com as joias prontas enfeitando o cercado de paus roliços que suporta o aterro do quintal de terra batida da família que me abrigou.
Mas calma, tudo começou quando eu chamei os quatro meninos de idade entre doze e quatorze anos presentes naquele dia (um da casa, junto o primo dele, da vizinha, e dois mais, um amigo das proximidades, um outro da cidade) para irmos juntos em expedição ao ribeirão vazio, bem ali pouco distante, não é questão de viajar muito com os pés.
Por todo lado havia material farto para nossa pesquisa inicial e não demorou também muito tempo para que os cinco companheiros viajantes tivéssemos, cada um, pacientemente, buscado no caos e, enfim, pescado, digamos assim, do anonimato, o seu pedaço de acidente natural, mineral inerte e comum que o poder da arte transformaria, muito em breve, em itens do tesouro cultural da humanidade.
Fiz do grande evento algumas tomadas de vídeo que compartilho com vocês, abaixo.
Por todo lado havia material farto para nossa pesquisa inicial e não demorou também muito tempo para que os cinco companheiros viajantes tivéssemos, cada um, pacientemente, buscado no caos e, enfim, pescado, digamos assim, do anonimato, o seu pedaço de acidente natural, mineral inerte e comum que o poder da arte transformaria, muito em breve, em itens do tesouro cultural da humanidade.
Fiz do grande evento algumas tomadas de vídeo que compartilho com vocês, abaixo.
Nas primeiras, os meninos se apresentam e, em seguida, um a um, mostram às câmeras, o peixe milagroso que os deuses resgataram, do nada, das águas sonhadas.
Depois, cada qual descreve o destino simbólico que pretende dar muito em breve ao objeto inanimado, desperto por nossa oficina do chão da imaginação.
Surpreendem com projetos já mais ou menos definidos para as pedras preciosas.
Passamos então à fase dois, limpar com força, com escova e sabão, a superfície das pedras e deixar, sem ansiedades, as bases secarem ao sol enquanto fazemos um par de outras coisas.
Depois, cada qual descreve o destino simbólico que pretende dar muito em breve ao objeto inanimado, desperto por nossa oficina do chão da imaginação.
Surpreendem com projetos já mais ou menos definidos para as pedras preciosas.
Passamos então à fase dois, limpar com força, com escova e sabão, a superfície das pedras e deixar, sem ansiedades, as bases secarem ao sol enquanto fazemos um par de outras coisas.
Até que é chegada a grande hora. Primeiro, escolhemos o dorso de uma pedra chata pintada no ano passado para servir de misturador. A cola branca tende a deixar mais claros os pigmentos minerais que eu trouxe dessa vez. Esse exercício só, de misturar a pasta ao pó, nas quantidades certas, se revela um tremendo de um professor.
Ainda lidamos com a coisa um tanto selvagemente, mas com o tempo, vai ficar mais civilizado. O bom de fazer esse mix de forma mais bem pensada é que tendemos a nos aproximar mais da cor que desejamos imprimir conforme a ideia da obra. Em outra oficina, um dos meninos por exemplo acabou pintando sua pretendida baleia com um azul escuro demais que não parecia se enquadrar em nenhum animal real ou fantástico.
Claro, ficamos satisfeitíssimos com a baleia assim mesmo e com tudo o mais, entre nós pestinhas da roça não tem muito espaço para desilusão, colocamos em exposição na cerca de paus o treco feito, outra vez exposto a sóis e chuvas, de volta ao elemental. Em dois ou três dias estava tudo sujo de novo, esquecido, brincadeira boa é a próxima, vivo é o espírito da coisa.
Adorei! Muito bacana a oficina com as crianças e a baleia azul! A liberdade criativa e para poucos! Privilégio de seres desgarrados de conceitos pre estabelecidos! Brincadeira boa e a próxima! Parabéns pelo texto reflexivo e divertido!
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