OS SENTIDOS DO FESTIVAL DA DÁDIVA
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No registro imaginário que rege a sociedade de consumo (...) a posse dos bens não responde à sua necessidade, à sua utilidade, mas a seu valor imaginário: o de garantir àquele que os possui o privilégio de privar o outro dessa posse. Segundo a lógica fálica que rege a circulação das mercadorias na sociedade de consumo, o gozo de um bem, o desfrute de um prazer, não significaria nada se não representasse o gozo de um poder: poder de privar o outro desse bem, desse desfrute. Maria Rita Kehl, Sobre Ética e Psicanálise, p. 102.
Existem inúmeros livros de antropologia a respeito do sistema do dom, donativo ou dádiva e o modo como ele funciona no seio das comunidades indígenas e camponesas, pelos quatro cantos do mundo e em diversos períodos históricos.
Existem inúmeros livros de antropologia a respeito do sistema do dom, donativo ou dádiva e o modo como ele funciona no seio das comunidades indígenas e camponesas, pelos quatro cantos do mundo e em diversos períodos históricos.
Um livro clássico que trata do tema é Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas, de Marcel Mauss.
Outro, muito mais recente mas de igual importância, é O Enigma da Dádiva, de Maurice Godelier.
A respeito deste último espero postar aqui em breve uma resenha à parte para aprofundar o assunto.
Todas as formas de sociedade, inclusive a nossa, urbana e industrial, abrigam pessoas que vivem afetivamente mais próximas umas das outras, formando círculos científicos, religiosos, esportivos, profissionais, familiares, pequenas comunidades que se diferenciam de outras, mais amplas ou mais distantes.
Nesse nível do grupo, a lógica comunitária envolve parâmetros complexos e instáveis, as trocas de bens e serviços nem sempre seguem medida de valor fixo, em moeda ou outra qualquer referência padronizada, típica das relações de compra e venda de produtos e serviços entre comerciantes e consumidores anônimos no contexto materialista cru do mercado.
Pensemos naquela turma de operários de uma mesma roça sertaneja que migrou em várias levas para a grande cidade, e aos poucos formou em terra estranha um núcleo de irmãos, primos, cunhados e amigos. Num certo sábado eles podem se reunir para doarem um dia inteiro de trabalho voluntário e gratuito na dura empreitada, que tem que ser feita numa só cacetada, antes que o cimento endureça, de encher de argamassa os moldes de madeira da laje de um dos membros da comunidade que quer ampliar pra cima sua casa. No domingo, o novo pavimento vai secando e é hora de rolar o churrasco e a cervejinha gelada no andar de baixo, tudo patrocinado pelo casal dono do imóvel, boca livre da família e agregados, jovens, adultos, idosos e crianças. A comemoração pode ficar mais cara que a contratação de peões profissionais para tocarem a obra, mas sabemos que não se trata, de forma alguma, do simples enchimento de uma laje.
Pensemos também na associação de pessoas próximas na comemoração do natal, no momento em que todos param para a troca de presentes do chamado "amigo oculto", comunhão ritualística que quebra o clima solto da festa e, a princípio, pretende representar algo mais do que o toma-lá-dá-cá de bens materiais equivalentes entre sujeitos impessoais.
Ou seja, aqui em pleno coração leigo das grandes cidades, onde tudo se move pelo poder do dinheiro, percebemos que ainda se encontra em ação o antigo mecanismo da dádiva, que fomenta e fortalece os laços afetivos ao nível grupal pela via do intercâmbio de produtos e serviços.
Já no contexto dos povos nativos, os povos ligados à terra, a sustentação física e espiritual da vida de cada um depende o tempo todo de um complexo sistema de apoio mútuo. Qualquer membro de uma tribo indígena ou comunidade camponesa pode, de um momento a outro, passar por situações limites de doença, miséria e decadência e assim cada indivíduo sabe de modo muito chão que, se hoje ele é o suporte de uns, amanhã pode precisar do amparo de outros. Nessa esfera de interdependência, a troca espontânea e sem medida monetária de favores e bens ocorre de forma necessária, é muito mais frequente e diversificada que em nosso mundo moderno, onde cada um procura se manter preferencialmente com recursos próprios, acumulando reservas de bens e capitais.
Em resumo, entre nativos, o ciclo de doações e os favores mútuos se baseia numa realidade incontornável: a dependência material e afetiva entre os membros do grupo, o fato de que é a entidade comunal como um todo que provê, em última instância, a sobrevivência do corpo e a saúde da alma de cada um.
Dona Laura do Ribeirão da Cachoeira me contou que dez anos atrás os parentes e amigos vizinhos ainda costumavam mandar as crianças baterem à sua porta ao raiar do dia, para pedirem um tição: fagulha acesa em toco de bambu ou ramo de canela de ema, erva oleosa e combustível usada por todo o sertão. Podia ser também uma caixa de fósforos, desde que para ser consumida com parcimônia e devolvida de pronto. Tudo isso porque a dona da casa acordou e descobriu que não tinha como acender o fogão a lenha para quentar a água do café, algo inadmissível: deixar a família seguir pro batente sem o alento dessa droga de uso matinal universal. Laura diz que nem sempre tinha para oferecer sua própria brasa viva ou que o seja um único "pau di fósfru" e precisava remeter ida e volta o moleque pé de chinelo a voar pela trilha até a casa da comadre da crina da colina mais próxima ou da grota ainda mais adiante.
Fogão a gás e estoque de caixinhas de fósforo hoje não faltam mais na casa da maioria e ficou muito mais fácil coar café sem precisar incomodar o vizinho ao primeiro cantar do galo. Por conta desses e outros pequenos privilégios de conforto técnico, independência e individualismo, agora quase todo mundo se sente como que saído do tempo das cavernas, e poucos suspeitam da armadilha em que estão caindo, pouco a pouco, da lenta e danosa erosão dos laços comunais.
Numa sociedade de recursos limitados, nenhum gesto de doação pode ser medido pelos envolvidos conforme o padrão da moeda e quem acaso toma muito essas trocas ao estrito modo materialista pode facilmente ganhar o desprezo da comunidade, ser considerado muquirana, mão fechada, unha de vaca ou coisa parecida.
E assim esse sentido de interdependência no seio das tribos indígenas ou aglomerados campesinos produz também o fenômeno muito interessante de que estamos falando, estudado há mais de cem anos pelos antropólogos, que aprecio chamar de "festival da dádiva".
Parece que essa lógica cotidiana da troca fundada nas noções de sobrevivência comunal das comunidades nativas precisa se expressar de um modo mais alegórico, inebriante e irracional, uma ou duas vezes ao ano, pelo menos, em tais festivais.
Sempre me pergunto: porque esse fato social é universal e porque possui idênticas características em culturas as mais diversas? Gosto de pensar que é porque, bem no fundo, as sociedades tradicionais, sempre assombradas pelo fantasma da escassez, trazem no coração a esperança de que, um dia, todas as necessidades humanas estejam satisfeitas em excesso e todos sejam livres para extravasarem seus dons de mão e de alma numa festa perpétua em que poderíamos implodir de vez o sistema de valores mais ou menos mesquinho da troca de bens e serviços de padrão mercantil. Durante esse tempo, tudo é possível, o desprendimento vira regra e o esbanjar recursos e afetos, por milagre, de uma hora à outra e por um período limitado de tempo, torna-se permissível, natural.
As folias cristãs, tradição milenar importada da Europa para o Brasil, são um exemplo clássico desse tipo de festival da dádiva. As folias do Divino, por exemplo, percorriam as roças sertanejas por cerca de quarenta dias, até poucas décadas atrás. Muitos caboclos trazem vivas lembranças desses tempos áureos.
O caixeiro toca o tambor artesanal em ritmo frenético por trilhas e estradas, convocando as pessoas que o escutam desde longe a se unirem ao cortejo. Na dianteira vai a bandeira do santo e ninguém pode seguir na frente dela. Quando a alegre procissão para num "pôzu", é hora de se refrescar, beber, comer, prosear, fofocar, paquerar, dançar e cantar.
Há os cantos leigos, endereçados de forma particular a tal ou tal personagem da casa, a esposa que espera o marido que está fora, cortando cana nas grandes fazendas do sul, a moça bonita que todos cortejam e para quem o mestre cantador se esmera no galanteio, o mascote da patroa, herói de muitos feitos caninos, o moleque famoso na vizinhança pelas artes da malinagem, o filho pródigo e também o que na metrópole desumana se perdeu, bandido, o defunto chefe de família homem honrado, destemido e grande trabalhador, vivo na memória, e por aí vai, a mesa da literatura está sempre bem servida nesse folguedo sacro-carnavalesco muito peculiar.
Durante a ladainha religiosa de louvação à bandeira, a tonalidade e a concentração é outra, mas o sistema é o mesmo: o mestre inventa o verso para quem pega na bandeira do santo e o procurador, ou seja, o administrador e juiz de direito da comitiva, estende a mão e recebe o donativo da pessoa assim poeticamente homenageada. É desse jeito que funciona, leveza espiritual que atrai densidade material e vice-versas!
O que rege a folia é o espírito da troca generosa, "u rést' é bobagi!". Pode-se cambiar um canto desses de menestrel por um litro de pinga, por exemplo. Aliás isso é muito comum e a canção mesmo costuma insinuar: "vô pagá qu' essi cabôc' u gól qui u dônu da casa deu'", ou seja, indiscriminadamente, o particular abstrato "paga" pelo "concreto" espirituoso comum.
O essencial nesse mercado insólito é que não existe forma de mensurar de forma objetiva o que está sendo doado e adquirido em nome do santo, encarnação da festa comunitária.
Alguém pode dar de bom grado cinco chuchus, meia dúzia de ovos ou um galo velho para que o leiloeiro grite a oferta entre os presentes do giro da folia ou dias depois, no povoado, quando as prendas serão reunidas na festa final, tanto faz. Um sujeito qualquer já meio bêbado e empolgado pode aderir à competição de quem se mostra mais dadivoso e pode vir a adquirir o galo, ao final dos lances, por um valor que daria para comprar todas as aves do galinheiro e ainda assim, para coroar o gesto de entrega, devolver o animal para quem fez a oferta ou ordenar que seja cozinhado no ato para que todos comam. Não é recomendado fazer leilão em começo de festa, quando o nível alcoólico ainda está baixo e o povo sem ânimo para abrir o coração que vai abrir a mão. A única regra é negativa (não ser mesquinho), mas não imperativa (quem quiser pode levar o bicho para casa e botar no terreiro, ninguém vai estranhar, desde que o "comprador" não seja um notório reincidente nesse tipo de má vontade). Há quem não entenda perfeitamente esse jogo de revolução dos laços comerciais, seu espírito anda muito entranhado da lógica cotidiana das trocas de base material, e então esse sujeito vai dar vexame durante o giro folião pois não oferece nada, não adquire nada, não devolve nada que adquiriu para o campo aberto da sociedade. Eis o maior dos pecados do festival da dádiva: miopia social.
Já nas cidades modernas, e principalmente nas maiores, com graus diversos, a maioria das pessoas mal possui essas noções de reciprocidade, só quer receber, não sabe "perder" materialmente para ganhar socialmente. Essa falta de exercício comunal vai gerando um caráter egoísta lamentável e um tipo de estupidez profunda, estupidez do afeto, incapacidade de retribuir, de enxergar o valor da retribuição.
Há vinte e três janeiros vasculho os sertões do Jequitinhonha. Ao longo de tanto tempo, criei formas de relação únicas com os muitos grupos sociais que visito, ano após ano, e o monte de gente com quem tenho convivido, em diferentes graus de proximidade.
Acompanhei de perto a evolução de várias famílias, filmei e fotografei crianças e jovens que cresceram e agora estão criando os filhos de quem sigo fazendo nossos (meu e deles) registros de memória. Especialmente, depois de tanto tempo, estabeleci laços duradouros e profundos com os antigos, os últimos bravos sertanejos que vão, junto comigo, envelhecendo, alguns dos quais foram partindo, ao longo de nossa jornada, deixando para trás, além de imensas saudades, uma coleção notável de feitos e histórias que registrei e espero poder ir compartilhando aos poucos no espaço multimídia privilegiado desse blog, minhas dádivas minhas, assim semeadas no campo do bem geral e infinito gratuito.
A cada expedição anual, busco aventuras plásticas, estéticas, literárias, de imersão, mas não desprezo o estudo erudito, o acúmulo de dados em campos determinados, trabalho mais de fôlego.
A princípio, procuro me guiar por alguns objetivos amplos preestabelecidos, como a pesquisa da arte cerâmica ou da festa popular, com destaque para as folias, e isso me leva a repetir os mesmos destinos, conforme as preferências de coração que foram se firmando, com o passar do tempo, afinidades pouco a pouco construídas com certas paisagens, certas comunidades, certos indivíduos.
Por outro lado, quando vou a campo, me deixo conduzir a cada amanhecer um tanto pelo acaso, conforme o impulso, pelo apelo do dia que me lança a níveis diversos de novidade e improvisação.
Há duas décadas tento levar parte de meu acervo de vídeos e fotografias de volta à minha querida gente sertaneja, presenteando pessoas e comunidades com imagens marcantes, de impacto emocional. Aos poucos, isso virou costume, com seus rituais de promessa e expectativa e seus mecanismos de atuação, remanejo, redistribuição simbólica, uma vez a ideia-coisa dada, transplantada.
"U bão du Nald' é qu' êl' num gósta di fazê fóta posada", um dia escutei, numa festa, falando pelas costas, um tal de Adão, uma das tantas almas chãs do sertão que, com afinco, persistência, tenho a pretensão de ter conquistado para diversos padrões de gozo estético e amorosidade.
De sua parte, o sertanejo tem o solo preparado pois, apesar de se virar com recursos culturais limitados, preserva mecanismos ancestrais de bom gosto em matéria de arte. Eu, da minha parte, trago a cada ano e vou plantando nesse terreno fértil algumas sementinhas da alta modernidade, de que muito me orgulho sem querer impor a ninguém, no mar agitado da comunidade em festa, aprecie e aprenda quem quiser e puder com os recortes que trago, ao modo meu.
Na próxima postagem, pretendo começar a me estender um pouco mais sobre a evolução e as consequências desse trabalho de produção e intercâmbio de bens materiais imateriais, contando histórias saborosas das respostas de graça e gratidão que tenho recebido em virtude desse longo e persistente expediente que realizo de apreensão estética do momento, dádiva e circulação do registro afetivo e gradual constituição da memória, em vídeos, fotografias e textos, de grupos locais, de famílias e de personas em especial.
E assim lá se vão mais de duas décadas semeando. Além das fotos e DVDs dos encontros e folias do ano anterior, costumo levar para distribuir uma carga de livros e periódicos usados e da melhor qualidade que recolho entre amigos, sobretudo de literatura infantil.
Algumas crianças de famílias de classe média de São Paulo recebem a cada ano, dos pais, avós, tios, amigos, uma enxurrada de revistas e livros em edições de todo tamanho e formato, com desenhos e textos esmerados, excelentes em todos os sentidos, visuais, literários, plásticos. Já andei milhares e milhares de quilômetros carregando em meu carro esses tesouros culturais de São Paulo para os meninos e meninas das roças e povoados do Jequitinhonha. Foram encontros e registros memoráveis.
Há os moleques dos lugares que visito há muitos anos, se acostumaram com a farra da distribuição e aguardam ansiosos quando chega o fim do ano, até quando meu carro aponta no horizonte, estaciona na frente da casa de fulano de tal, saio, saúdo, enrolo-enrolo, papo furado adulto com os maiorais, café, broa, rosquinha, fermentos de expectativas. A criança dessas roças pobres está acostumada à escassez e à dureza da vida e é interessante observa-los nesse tempo entre minha chegada e a abertura das caixas de livros com que sonharam um ano inteiro. Raramente se atrevem a me questionar antes da hora e todos nós sabemos de corpo profundo a necessidade dessa disciplina, a necessidade de esperar o momento certo. É sublime, maravilhoso!
Dependendo do nível de influência externa da comunidade, pode acontecer também que, no terceiro ou quarto ano consecutivo, a meninada já esteja folgada comigo, até demais, e vira aquela zorra na hora da distribuição e tenho que intervir pra botar ordem. São contidas, sim, mas são crianças.
Em outros locais essa abertura do baú de magias ainda é mais ou menos inédita. Nas primeiras vezes me admiram as reações de aproximação arredia, os gestos cerimoniais de quem pede permissão, os olhos que evitam brilhar, pequeno mundo cão, vergonhas de sonhar em público. Depois do contato com os livros, que passam de mão em mão, depois de conversarmos daqui e dali, explorando desenhos, paisagens, personagens, visões e histórias, o muro começa a rachar.
Depois é fácil, é só repetir um ano após o outro a operação de intercâmbio de fantasias até o padrão estímulo resposta se firmar. Algumas alminhas dessas são mais ávidas, estavam sedentas de saber e arte de excelência mas não possuíam a menor ideia das próprias carências. Uma vez ofertada a joia, o espírito exulta, uma flama se acende, havia a lenha, faltava a faísca, o fogo.
Considerem, somando o tanto de família boa que quer ilustrar seus filhos, o arsenal de livros fabulosos que, nesse exato momento, está guardado nas gavetas e estantes das casas burguesas, milhões de páginas que nunca receberam o simples carinho de alguém disposto a folheá-las para dar ao menos uma vista por alto. São tantos os presentes que essa criançada privilegiada recebe a cada aniversário que muitos, simplesmente, acabam esquecidos, intocados. Milhares de livros natimortos, jamais tornados vivos, encarnados. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges dizia isso: um livro só existe quando alguém o lê. Caso contrário, vale tanto quanto uma pedra no meio do nada, uma pedra fora do caminho. Gerações, multidões de livros, revistas e cartoons jamais revistados, revisitados, revivificados! É muito desperdício! Isso para mim é insuportável!
Uma vez uma família paulistana me deu uma caixa de livros e eu não tive tempo para inspeciona-los antes de levar para o sertão. Havia dentro, eu vi de relance, uma edição de quatro grandes volumes enfeixados numa caixa lacrada. Ao chegar a meu destino percebi que cada encarte era composto de cinco páginas grossas de papelão, cada página contendo um desenho repartido em centenas de peças. Eram ao todo vinte pinturas lindas na forma de quebras-cabeças, que maravilha! Tudo ainda junto, coladinho, intacto, faltava destacar para espalhar sobre a mesa e começar a festa! Quem ganhou os livros, nem botou neles a mão e os olhos por demais teleguiados. Imaginem o que aconteceu, por outro lado, quando essas belezas caíram nas graças de meus ávidos coleguinhas do povoado de Milho Verde, próximo às altas nascentes do Jequitinhonha! Entrei no meio da algazarra, fiz justiça evitando os monopólios e incitei, como de costume, que cada novo dono ou dona dos valiosos livros-brinquedos os fizesse circular pelas casas, depois de muito usados. "Quando eu voltar não quero ver um só jogado pelos cantos!", sentencio, curto e grosso, ano após ano. Há sempre aquele caráter possessivo, claro, mas em geral, a roda funciona. Em relação aos quebra-cabeças: três janeiros depois, constato, com surpresa e alta satisfação, que eles ainda eram compartilhados, montados e desmontados sem parar pela meninada da vizinhança. Pouco importavam os extravios de peça, os buracos e rasgos, as manchas de poeira e gordura, a mesma figura, mil vezes destruída, mil vezes soerguida. Salvos do oblívio, do esquecimento borgeano, trasladados e inseridos no circuito da dádiva entre moleques pobres sertanejos, agora esses livros e revistas viviam vidas plenas, milagre feito, coração satisfeito!
Quem lê a literatura existente a respeito da dádiva tradicional entre indígenas, sua exasperação até o belicismo, sabe que a prática pode ocultar o confronto na capa formal do desprendimento, modos de testar os limites do outro, o poder de quem dá mais. Mas isso é bem diferente do egoismo do mercado capitalista em que nada se dá, nada se troca, tudo se compra e na compra o elo entre sujeitos é perdido. O dinheiro oculta a troca de dons humanos assim como o trabalho assalariado oculta a escravidão.
Mas há esperança. Toda essa miséria pode ser superada pela dádiva pela dádiva - mais alto estágio da civilização - a troca de conhecimentos pode ser, agora, na net, regida pelo mais moderno e alto padrão de civilização na troca - a dádiva pela dádiva. A caridade é uma degenerescência do espírito da dádiva pela dádiva. Este espírito está presente em todo trabalhador social, que não espera nada em troca, nem da terra, nem do outro, nem dos céus, por sua ação de formação e transformação, tirando todo o "lucro" do simples fato de observar o broto, o florescimento e o fruto imaterial de sua atividade de cultivador da alma pessoal que é, afinal, alma coletiva.
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