PARA QUE SERVE A ANTROPOLOGIA?


Estamos hoje tão apartados das culturas que foram nossas raízes quanto das culturas que sempre nos foram estranhas.

Paul Ricoeur


Tem gente que pensa que as ciências sociais não têm utilidade porque não possuem verdade já que não desenvolveram os modos de aferição seguros das ciências ditas duras e objetivas, as ciências da natureza. 

Eu vou dar um exemplo muito simples que atesta a utilidade e a verdade subjetiva de uma ciência da cultura, da vida social dos humanos em sociedade: a antropologia. 

A folia de São Sebastião da comunidade de Inácio Félix, no vale do Rio Fanado, próximo à cidade de Minas Novas, Vale do Jequitinhonha, faz uns três anos, aconteceu, como sempre, no meio do janeiro, mês das chuvas mais pesadas no sudeste do Brasil e em toda Minas Gerais. 

Choveu a semana inteira e eu, meus sentidos, meus músculos, minhas roupas, meus calçados, e minhas câmeras de vídeo e fotografia passaram por um teste difícil.



Em certo ponto das filmagens ouve-se um grito do nada, súbito: aai!... Sou eu. No momento do acidente, eu dirigia a câmera para algum foco à esquerda e ao mesmo tempo um folião bêbado vinha vindo à direita em sua montaria, quem sabe se deixava seu cavalo andar a rédea solta ou virou-se para contemplar a paisagem ou cochilou sobre a sela, acontece que o bicho monstro passou raspando em mim e o casco me atingiu de raspão. Minha sorte foi que eu estava calçado de tênis e, como havia muito barro na estrada, a ferradura, forrada de lama, deslizou, arranhando apenas três dedos de meu pé direito. Sobrou um pequeno hematoma, o susto maior do que o dano. 

Enfim, foram dias e dias, de casa em casa, desfilando a bandeira e dinamizando relações, pelas chapadas, vales, veredas, enfrentando colinas enormes, descendo e subindo encostas, de grotão em grotão. 

Com a chuvaiada, as trilhas vão se fechando de mato ou se decompondo com as enxurradas e algumas valetas que venceríamos com alegria de vigor em dia seco, tornaram-se verdadeiras armadilhas diante das novas circunstâncias.


E foi assim que durante uma semana cambiou por completo meu universo dinâmico. Todas as noções de firmeza e estabilidade que meu corpo possuía, todas as disposições prévias que ele dispunha para vencer os obstáculos da natureza, tiveram que mudar radicalmente em face da nova ordem cinestésica com que o acaso nos presenteou durante aquela folia. 

Quando por fim a bandeira se recolheu, o mastro subiu, depois desceu e o foguetório encerrou a grande festa popular, eu fui obrigado a voltar a minha vidinha plastificada e aplastrada comum, no palco seguro, previsível, retilíneo, limpo, da cidade. 

Que surpresa proustiana, que saber súbito e profundo do corpo deu de se dar comigo então! 

Sete dias da rotina pesada cumprindo o giro debaixo de chuva, se arrastando, atolando, derrapando, apegado ao guarda chuvas roto, caindo de bunda no chão abraçado à bolsa com as câmeras, tomando correria de mula doida e pisão de casco de cavalo, alcancei ao final de tudo um ponto robusto a partir do qual o banal da vida citadina tornou-se por contraste uma normalidade extraordinária. 

Tudo isso apenas por conta de um pequeno, leve choque de civilizações! 

Conclusão possível: só consigo enxergar objetivamente meu estilo de vida a partir de um mergulho nu, sem contenções, em outra forma de existência, sobretudo a partir de uma prática do corpo e da sensibilidade estranha qualquer, por um tempo relativamente prolongado. 

Tais experiências podem ser proporcionadas por uma visita de coração aberto de algumas semanas às comunidades que ainda vivem, essencialmente, conforme nossa própria cultura matriz (não é preciso ir muito longe), nossa cultura brasileira de raiz nativa, índio-cristã, sertaneja, cabocla. 

A objetividade e a utilidade da ciência social da antropologia estão provadas, então, por esse expediente muito simples? 

A partir de um modo diverso de operar o corpo e a postura sensível em face de matérias, energias, animais e pessoas estranhas, o sujeito chega àquele estado de objetividade alterocêntrica em que pode visualizar à distância seu próprio ser-estar no mundo. 

Ademais, nesse processo, se tiver sorte, ele pode se livrar de hábitos que se tornaram limitações culturais e recuperar seu poder infantil, original, de escolha sobre os rumos de suas próprias forças e sensibilidades. 

Ah, o valor da verdade subjetiva dos espelhos!

Comentários

Postagens mais visitadas