FAMÍLIA, PÃO, BISCOITO: UMA REFLEXÃO SOBRE O TRABALHO INFANTIL
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Essas duas bravas mulheres dão testemunho exemplar de como sobreviver à dureza das lidas sertanejas, à ação cultural deletéria da baixa modernidade, à viuvez precoce, à barbárie machista e a muitos e muitos outros atropelos do destino.
E fizeram e seguem fazendo isso, em idade avançada, sem perder alegria, vontade de viver, e preservando o sentimento são até onde é possível, com dignidade para dar e vender, como na fotografia abaixo aparece estampado.
E fizeram e seguem fazendo isso, em idade avançada, sem perder alegria, vontade de viver, e preservando o sentimento são até onde é possível, com dignidade para dar e vender, como na fotografia abaixo aparece estampado.
Enfrentaram de peito aberto todas as dificuldades da vida pobre e vigorosa de enxada e fogão, basicamente com o que puderam tirar da terra com o poder da própria mão, nas labutas do roçado, da horta, da criação de animais, no zelar infindo da casa, nos cuidados maternos e avoternos, no trabalho pesado, de várias frentes, da produção e do comércio da cerâmica, do modo como, pouco a pouco, oxalá veremos aqui, em texto e imagem, em futuras postagens.
Dona Maria, a da direita na foto, é uns treze anos mais nova que Dona Izabel que hoje tem seus noventa e tantos e vai que vai, capengando, pelejando, aprumando, capengando... Maria ficou viúva muito mais jovem do que Izabel que, por seu lado, se separou do marido, contra todos e contra Deus, anos antes de que esse partisse também.
Maria viúva de Marçalino criou sozinha o único filho que tem, o Sivaldo, motorista experimentado, de entregas locais em caminhão, pau pra toda obra e trabalhador caprichoso que cuida como poucos das benfeitorias do sítio, assim como da bela família que formou com a esposa Graciele, firme em sua inabalável doçura, e os filhos que, ao longo dos anos, vou vendo crescer: a Bia, que, quem diria, já virou moça, o Bruno, moleque calado colaborador, que mira nossas lentes profundamente com olhos hipnóticos de jabuticaba e agora esse outro da foto, a cara da mãe, alerta como um gato, escalador nato.
É muito comum que eu passe as manhãs, que é quando o dia costuma ser mais fresco, na casa de uma família dessas minha velha conhecida dos sertões do Fanado. Com o decorrer do tempo, se acostumam e até começam a se antecipar a minhas visitas infalíveis de fins de dezembro ou janeiro.
Em geral nossos encontros são memoráveis!
Enquanto fazemos nosso tour habitual por galinheiros, currais, quintais, hortas e campos e sobretudo quando nos reunimos para prosear na copa e cozinha, que ocupam cômodos mais vastos ou varandões dos fundos das casas, a mestra trabalha duro para preparar o almoço da tropa de nós outros incorrigíveis tagarelas vagabundos. Graciele, palavra pouca e prática certeira, prepara nossa comida com tanta desenvoltura e esforço fácil que mal notamos, o tempo passando, a obra prima ficar pronta.
Um dia desses, já muito tempo faz, minhas velhas companheiras me levaram até a borda de um desfiladeiro ainda dentro do terreno de Dona Maria, de onde vislumbramos as ruínas da casinha da grota que rasga morro abaixo por detrás o Campo Alegre. Foi lá que visitei Izabel faz uns quinze anos, antes que, instigada pela família, se mudasse para o Buriti, mais próximo das zelosas filhas Faustina e Deuzani, onde estaria mais segura, com o avanço da idade.
Data desta remota era da grota a seguinte imagem, preciosa em diversos sentidos:
Já à época, como de praxe, mandei imprimir e levei pra ela, no encontro seguinte, o retrátu que, como tantos outros, ficaria célebre pelos seres vivos que revela: no caso, a cabocla suja de pó e cinza de mexeção, grata surpresa à boca do pote que ela mesmo fez e onde acaba de colher um enorme ovo de pato.
Que naturezas maravilhosas! Virou a fótu du ovãu di pátu, muitas e muitas vezes comentada, nos seguintes janeiros, nas rodas de prosa na casa dela, dos filhos e netos, ou nos tantos pousos da folia onde nos trombamos no povoado e nas roças adjacentes do Coqueiro Campo e de Terra Cavada.
Sim, prezado leitor, nessas paragens, onde ainda reina a lei da escassez, faz história um flagrante bem retratado! A abundância de edifícios, produtos e mensagens da grande cidade banaliza as percepções de afeto e provoca dispersão, confusão da inteligência e da sensibilidade, mas na pobreza sitiante, confronte o silêncio profundo das vastidões sertanejas, cada dom minimal dos sentidos encontra sua medida no pequeno mesmo da vida.
Por muito tempo Dona Izabel não demandou muita atenção da família pois sempre soube se virar sozinha muito bem. Só a encontrei, nesses anos, uma única vez parada de todo, se recuperando de uma internação hospitalar mais prolongada. A visita aconteceu no início do ano passado, no dia da próxima foto, em que ela aparece mei perrengada ao lado do Isac, o neto disparado seu favorito, todos sabem, segredo nenhum. As notícias que tenho tido é que, desde então, ela vem se recuperando bem, madêra qui cupi nu rói.
Espero poder mostrar aqui, aos poucos, como essa morena forte atarracada, de porte ereto e lindos olhos esmeralda, transplantou, ao cabo de seus oitenta anos de idade, da tapera do vale para a morada da chapada, além de seu modo peculiar de vida caboclão sustentável, todo um ecossistema que, ano após ano, foi-se firmando, floresceu, sombreou, arejou o lote do povoado, a vida como um todo uma verdadeira construção de obra de arte.
E assim que já faz pelo menos seis anos que criamos o seguinte ritual, que tem tornado nossos encontros mais ricos de amor e divertidos. Vou visitar minha amiga uma vez no Buriti, em sua casa, pois seria imperdoável que não fizesse desse modo. Se ela tem notícia de que estou zanzando em automóvel pela região, já fica antenada, assuntânu. Assim que apareço de surpresa nos primeiros dias do ano, tomamos café com quitanda, depois vamos dar um vistaço atento e comentado nos quintais enquanto a comida requenta. Logo voltamos pra cozinha onde colocamos os causos em dia acalentando o fogo e aproveitamos para marcar a data em que voltarei para rodarmos de carro vale abaixo até Maria de Marçalino. Na derradeira descida, fui forçado a cumprir o rito desacompanhado, que infelicidade, Vóbéla tava n' ospitau!
Reservei para falar hoje de uma das mais saborosas visitas que eu e Izabel fizemos à casa de Maria uns três anos atrás. Por décadas, juntas, as duas parceiras de vida e trabalho exploraram as minas de argila, manufaturaram o barro, construíram as peças e as queimaram à base de muita carga de lenha catada ao léu no cerrado, além de que - feito inédito e notável entre as mulheres - as transportaram, em lombo de mula, pelo labirinto de trilhas que cortam o vale, até as praças mais próximas, onde as vendiam nas tradicionais feiras de sábado: Minas Novas, Turmalina, Veredinha, Vendinhas, ou mesmo Lagoa Grande, do outro lado do rio. Izabel, mais parruda, era quem apertava a barriguêra, a cinta dos animais, assegurando a carga pesada e frágil que ia chocalhar de cabo a rabo pelas altas ribeiras.
As mais longas e lucrativas expedições comerciais, até as cidades do sul, ida e volta ao país Dazágua, eram empresas masculinas, das grandes tropas, às quais Maria e Izabel também destinavam seus produtos, no atacado, para revenda.
Tempos duros, não, minhas queridas?!
"Ôôo, que nada! dá mesmo é sodade! Agora, môz, que vale?!, a gente tem tudo e não pode mais nada! Naquela época a gente podia tudo, acordava às duas da madruga pra chegar com a primeira luz na feira de Veredinha, e era um converseiro só daqui até lá, aquela alegriagem! E quando voltava, já noite fechada, passava café e depois sentava pra curtir o cansaço! Então era a satisfação: jogava o níquel em cima da mesa, batia na tábua a moedinha contada e daí a gente deslumbrava!"
Tomara eu possa resgatar em detalhes aqui, nos próximos anos, a história incomum que acabou levando à sociedade de uma vida das duas paneleiras.
Por enquanto, com o conto anacrônico de hoje, pretendo deixar no paladar do espírito do leitor-ouvinte um gostinho, um gostinho apenas do passado, como prova cabal do que está por vir.
Em geral nossos encontros são memoráveis!
Enquanto fazemos nosso tour habitual por galinheiros, currais, quintais, hortas e campos e sobretudo quando nos reunimos para prosear na copa e cozinha, que ocupam cômodos mais vastos ou varandões dos fundos das casas, a mestra trabalha duro para preparar o almoço da tropa de nós outros incorrigíveis tagarelas vagabundos. Graciele, palavra pouca e prática certeira, prepara nossa comida com tanta desenvoltura e esforço fácil que mal notamos, o tempo passando, a obra prima ficar pronta.
Um dia desses, já muito tempo faz, minhas velhas companheiras me levaram até a borda de um desfiladeiro ainda dentro do terreno de Dona Maria, de onde vislumbramos as ruínas da casinha da grota que rasga morro abaixo por detrás o Campo Alegre. Foi lá que visitei Izabel faz uns quinze anos, antes que, instigada pela família, se mudasse para o Buriti, mais próximo das zelosas filhas Faustina e Deuzani, onde estaria mais segura, com o avanço da idade.
Data desta remota era da grota a seguinte imagem, preciosa em diversos sentidos:
Já à época, como de praxe, mandei imprimir e levei pra ela, no encontro seguinte, o retrátu que, como tantos outros, ficaria célebre pelos seres vivos que revela: no caso, a cabocla suja de pó e cinza de mexeção, grata surpresa à boca do pote que ela mesmo fez e onde acaba de colher um enorme ovo de pato.
Que naturezas maravilhosas! Virou a fótu du ovãu di pátu, muitas e muitas vezes comentada, nos seguintes janeiros, nas rodas de prosa na casa dela, dos filhos e netos, ou nos tantos pousos da folia onde nos trombamos no povoado e nas roças adjacentes do Coqueiro Campo e de Terra Cavada.
Sim, prezado leitor, nessas paragens, onde ainda reina a lei da escassez, faz história um flagrante bem retratado! A abundância de edifícios, produtos e mensagens da grande cidade banaliza as percepções de afeto e provoca dispersão, confusão da inteligência e da sensibilidade, mas na pobreza sitiante, confronte o silêncio profundo das vastidões sertanejas, cada dom minimal dos sentidos encontra sua medida no pequeno mesmo da vida.
Por muito tempo Dona Izabel não demandou muita atenção da família pois sempre soube se virar sozinha muito bem. Só a encontrei, nesses anos, uma única vez parada de todo, se recuperando de uma internação hospitalar mais prolongada. A visita aconteceu no início do ano passado, no dia da próxima foto, em que ela aparece mei perrengada ao lado do Isac, o neto disparado seu favorito, todos sabem, segredo nenhum. As notícias que tenho tido é que, desde então, ela vem se recuperando bem, madêra qui cupi nu rói.
Espero poder mostrar aqui, aos poucos, como essa morena forte atarracada, de porte ereto e lindos olhos esmeralda, transplantou, ao cabo de seus oitenta anos de idade, da tapera do vale para a morada da chapada, além de seu modo peculiar de vida caboclão sustentável, todo um ecossistema que, ano após ano, foi-se firmando, floresceu, sombreou, arejou o lote do povoado, a vida como um todo uma verdadeira construção de obra de arte.
E assim que já faz pelo menos seis anos que criamos o seguinte ritual, que tem tornado nossos encontros mais ricos de amor e divertidos. Vou visitar minha amiga uma vez no Buriti, em sua casa, pois seria imperdoável que não fizesse desse modo. Se ela tem notícia de que estou zanzando em automóvel pela região, já fica antenada, assuntânu. Assim que apareço de surpresa nos primeiros dias do ano, tomamos café com quitanda, depois vamos dar um vistaço atento e comentado nos quintais enquanto a comida requenta. Logo voltamos pra cozinha onde colocamos os causos em dia acalentando o fogo e aproveitamos para marcar a data em que voltarei para rodarmos de carro vale abaixo até Maria de Marçalino. Na derradeira descida, fui forçado a cumprir o rito desacompanhado, que infelicidade, Vóbéla tava n' ospitau!
Reservei para falar hoje de uma das mais saborosas visitas que eu e Izabel fizemos à casa de Maria uns três anos atrás. Por décadas, juntas, as duas parceiras de vida e trabalho exploraram as minas de argila, manufaturaram o barro, construíram as peças e as queimaram à base de muita carga de lenha catada ao léu no cerrado, além de que - feito inédito e notável entre as mulheres - as transportaram, em lombo de mula, pelo labirinto de trilhas que cortam o vale, até as praças mais próximas, onde as vendiam nas tradicionais feiras de sábado: Minas Novas, Turmalina, Veredinha, Vendinhas, ou mesmo Lagoa Grande, do outro lado do rio. Izabel, mais parruda, era quem apertava a barriguêra, a cinta dos animais, assegurando a carga pesada e frágil que ia chocalhar de cabo a rabo pelas altas ribeiras.
As mais longas e lucrativas expedições comerciais, até as cidades do sul, ida e volta ao país Dazágua, eram empresas masculinas, das grandes tropas, às quais Maria e Izabel também destinavam seus produtos, no atacado, para revenda.
Tempos duros, não, minhas queridas?!
"Ôôo, que nada! dá mesmo é sodade! Agora, môz, que vale?!, a gente tem tudo e não pode mais nada! Naquela época a gente podia tudo, acordava às duas da madruga pra chegar com a primeira luz na feira de Veredinha, e era um converseiro só daqui até lá, aquela alegriagem! E quando voltava, já noite fechada, passava café e depois sentava pra curtir o cansaço! Então era a satisfação: jogava o níquel em cima da mesa, batia na tábua a moedinha contada e daí a gente deslumbrava!"
Tomara eu possa resgatar em detalhes aqui, nos próximos anos, a história incomum que acabou levando à sociedade de uma vida das duas paneleiras.
Por enquanto, com o conto anacrônico de hoje, pretendo deixar no paladar do espírito do leitor-ouvinte um gostinho, um gostinho apenas do passado, como prova cabal do que está por vir.
Nesse dito dia eu cheguei em momento precioso, a fornada de pão e biscoito já estava amassada e modelada e a ponto de se assar.
Bia, ainda menina, então, contudo era já experiente ajudante da mãe na casa e na cozinha. Nesse dia pude ver que ela tinha muito o que aprender em matéria de acender o fogo de garrânchus que vai esquentar a temperatura do forno de quitandas sem formar braseiro. Lutou uns minutos, soprou, abanou, só fez fagulha e fumacê. A mãe viu e veio tomar frente do negócio. Quebrou no joelho vigorosamente alguns galhos mais grossos, tacou pra dentro, incendiou a palha e pronto, que boniteza, o fogaréu se alvoroçou!
Observando assim de longe a mágica, parece fácil, né?, mas já vi o bastante para saber que todo o processo requer um cálculo muito preciso pois não é como faz o pizzaiolo, que deixa as toras arderem ao fundo, à vista, por horas e horas, e vai girando próximo à boca do forno, com a espátula de madeira, a massa enquanto ela cozinha pouco a pouco. A fornada cabocla recebe o calorão da queima de galhos, primeiro, num só golpe. Quando a madeira fina vira pó, a fuligem ainda quente é varrida para o buraco de respiro traseiro. Então as quitandas são dispostas na plataforma e em seguida todos os furos são tampados. O que vai cozinhar os quitutes é o calor do fogo alto e fugaz que ficou preso no forno após a queima e que aos poucos perde força já que não há mais combustível para alimenta-lo depois que a câmara está selada. Assim que é necessário um ajuste rigoroso: se a caloria foi pouca demais, a broua num assa; se ela foi na conta, mas o tempo de cozimento se alonga além do necessário, pode-se torrar a obra inteira. Precisa saber bem até que ponto incitar as chamas, depois o momento certo de liberar a quintura que ficou retida. Nas dezenas de vezes que testemunhei a prática, em minhas andanças por todo o Jequitinhonha, não me lembro de ter visto nenhum erro grosseiro dessas rudes sutis padeiras, exceto um ou outro biscoito polvilho que pretejou nas pontas mas que, assim mesmo, comemos extasiados, entre tragos de café forte cuádu na óra.
Nas sociedades camponesas tradicionais, em geral as crianças são incitadas desde muito cedo a ajudarem nos pequenos afazeres domésticos. É questão de educação. É questão, também, de necessidade. Portanto, algo muito natural. Ademais é assim mesmo que a molecada fica esperta e forte, ponto pacífico!
Já no mundo moderno, sobretudo nos meios mais abastados, as pessoas passam os longos anos da infância e primeira juventude entre os estudos, o ócio, e o chamado lazer, divisões que não fazem muito sentido para a gente do sertão que artesaneia a vida cotidiana em permanente embate criativo com os elementos naturais ou executa enormes esforços coletivos de trabalho para realizar, por exemplo, a folia, um cortejo sacro-carnavalesco pelas comunidades de roça que pode durar semanas, dias e dias, noites e noites varadas no canto, na dança e no louvor ao santo, forças de músculo e de alma, virtudes de arte, energias afetivas exaltadas, multiplicadas, esbanjadas.
É maravilhosa a naturalidade com que Graciele insere Bia, primeiro, na tarefa de acender a fornalha e depois Bruno no jogo de destacar os biscoitos e pães das formas quentes e depois guarda-los nos potes. O menino é obstinado, mas ainda muito pequeno e um tanto inapto. Há risco de que se queime. Ninguém parece muito preocupado. É afoito, quebra uma ou duas rosquinhas, na ânsia de arrancá-las da chapa, ou deita outras no chão da cozinha, pra não pelar as pontas dos dedos. Quem se importa! Há valores maiores, óbvios, envolvidos aqui, que fazem ignorar as perdas materiais. Valores elevados: ensinamento de trabalho, de vida, de sobrevivência, e diversão também, porque não, experimento estético, degustação de gestos, símbolos, sentimentos, odores, sabores, tudo numa coisa só.
Recentemente foi muito difundida na região uma campanha governamental que visava atacar o problema da exploração da força de trabalho infantil. Trata-se, sem dúvida, de uma triste realidade em muitos rincões miseráveis do Brasil e, certamente, deve ocorrer também no Vale do Jequitinhonha, um país, por si só, gigantesco, que abriga enclaves camponeses muito diversos, diversamente afetados pelas maravilhas e pelas mazelas da vida moderna. Mas, até onde sei, esse gênero de espoliação não chega a ser, atualmente, um problema grave nesse alto sertão do Araçuaí, entre os vales dos rios Itamarandiba, Fanado, Capivari e Setúbal.
No contexto campesino sustentado de uma família como a de Dona Maria de Marçalino, fazer uma criança contribuir para as pequenas tarefas cotidianas (arrumar as camas, varrer a casa, jogar milho para as galinhas e recolher seus ovos, servir a mesa para os convidados, catar uns cacos de lenha para atiçar o fogo do fogão, etc.), é tido como algo muito normal ou, mais do que isso, algo positivo, sadio, educativo. Assim que, na época, escutei em muitos lares caboclos da região o discurso de mães e pais indignados com o teor da tal campanha. "Então quem der um tapa agora em criança corre o risco de ir para a cadeia? Se não são os pais, quem vai dar rumo à vida dos filhos nesse mundo louco em que vivemos? Vou ser denunciado à polícia porque coloco minha menina para trabalhar na cozinha?" Eram as questões que eu mais ouvia. Tentava esclarecer: "Esperem, não é bem assim, o problema está na exploração econômica e no maltrato, como acontece em algumas carvoeiras, vocês sabem..." Alguns, eu convencia, com base nesse exemplo próximo, outros, os mais ressentidos, nem com isso.
Seja como for, o fato é interessante, pois demonstra como uma atitude louvável dos órgãos governamentais como esta, de contribuir para o combate à exploração do trabalho infantil, pode-se tornar um engano, um mal entendido, no seio dessas comunidades tradicionais. O equívoco, no caso, foi criado, a meu ver, por uma propaganda mal pensada para a região, em especial, talvez porque a mensagem seja genérica e condenatória demais, o que à primeira vista desperta mais temor ou revolta do que reflexão. Seja como for, é o exemplo de uma campanha midiática que se provou incapaz de se adaptar à diversidade da realidade de vida existente nesses lugares remotos.
Conclusão: toda ação de proteção ou desenvolvimento social, por melhor intencionada que seja (e nem todas são), precisaria partir da escuta, ampla e profunda, do chamado "público alvo" ou, em outras palavras, deveria requerer, sempre, um prévio, extenso e detalhado estudo antropológico de campo, condição indispensável para que se torne minimamente eficaz em termos de ampliar horizontes, aperfeiçoar as instituições, promover o bem estar das pessoas, seja o que for.
Infelizmente, nesse campo, no Brasil, todo dia vemos como se gastam as verbas escassas com iniciativas surdas que produzem, fatalmente, resultados pífios. Não é de se espantar: antes de se agir, escuta-se, pesquisa-se muito pouco.
Observando assim de longe a mágica, parece fácil, né?, mas já vi o bastante para saber que todo o processo requer um cálculo muito preciso pois não é como faz o pizzaiolo, que deixa as toras arderem ao fundo, à vista, por horas e horas, e vai girando próximo à boca do forno, com a espátula de madeira, a massa enquanto ela cozinha pouco a pouco. A fornada cabocla recebe o calorão da queima de galhos, primeiro, num só golpe. Quando a madeira fina vira pó, a fuligem ainda quente é varrida para o buraco de respiro traseiro. Então as quitandas são dispostas na plataforma e em seguida todos os furos são tampados. O que vai cozinhar os quitutes é o calor do fogo alto e fugaz que ficou preso no forno após a queima e que aos poucos perde força já que não há mais combustível para alimenta-lo depois que a câmara está selada. Assim que é necessário um ajuste rigoroso: se a caloria foi pouca demais, a broua num assa; se ela foi na conta, mas o tempo de cozimento se alonga além do necessário, pode-se torrar a obra inteira. Precisa saber bem até que ponto incitar as chamas, depois o momento certo de liberar a quintura que ficou retida. Nas dezenas de vezes que testemunhei a prática, em minhas andanças por todo o Jequitinhonha, não me lembro de ter visto nenhum erro grosseiro dessas rudes sutis padeiras, exceto um ou outro biscoito polvilho que pretejou nas pontas mas que, assim mesmo, comemos extasiados, entre tragos de café forte cuádu na óra.
Nas sociedades camponesas tradicionais, em geral as crianças são incitadas desde muito cedo a ajudarem nos pequenos afazeres domésticos. É questão de educação. É questão, também, de necessidade. Portanto, algo muito natural. Ademais é assim mesmo que a molecada fica esperta e forte, ponto pacífico!
Já no mundo moderno, sobretudo nos meios mais abastados, as pessoas passam os longos anos da infância e primeira juventude entre os estudos, o ócio, e o chamado lazer, divisões que não fazem muito sentido para a gente do sertão que artesaneia a vida cotidiana em permanente embate criativo com os elementos naturais ou executa enormes esforços coletivos de trabalho para realizar, por exemplo, a folia, um cortejo sacro-carnavalesco pelas comunidades de roça que pode durar semanas, dias e dias, noites e noites varadas no canto, na dança e no louvor ao santo, forças de músculo e de alma, virtudes de arte, energias afetivas exaltadas, multiplicadas, esbanjadas.
É maravilhosa a naturalidade com que Graciele insere Bia, primeiro, na tarefa de acender a fornalha e depois Bruno no jogo de destacar os biscoitos e pães das formas quentes e depois guarda-los nos potes. O menino é obstinado, mas ainda muito pequeno e um tanto inapto. Há risco de que se queime. Ninguém parece muito preocupado. É afoito, quebra uma ou duas rosquinhas, na ânsia de arrancá-las da chapa, ou deita outras no chão da cozinha, pra não pelar as pontas dos dedos. Quem se importa! Há valores maiores, óbvios, envolvidos aqui, que fazem ignorar as perdas materiais. Valores elevados: ensinamento de trabalho, de vida, de sobrevivência, e diversão também, porque não, experimento estético, degustação de gestos, símbolos, sentimentos, odores, sabores, tudo numa coisa só.
Recentemente foi muito difundida na região uma campanha governamental que visava atacar o problema da exploração da força de trabalho infantil. Trata-se, sem dúvida, de uma triste realidade em muitos rincões miseráveis do Brasil e, certamente, deve ocorrer também no Vale do Jequitinhonha, um país, por si só, gigantesco, que abriga enclaves camponeses muito diversos, diversamente afetados pelas maravilhas e pelas mazelas da vida moderna. Mas, até onde sei, esse gênero de espoliação não chega a ser, atualmente, um problema grave nesse alto sertão do Araçuaí, entre os vales dos rios Itamarandiba, Fanado, Capivari e Setúbal.
No contexto campesino sustentado de uma família como a de Dona Maria de Marçalino, fazer uma criança contribuir para as pequenas tarefas cotidianas (arrumar as camas, varrer a casa, jogar milho para as galinhas e recolher seus ovos, servir a mesa para os convidados, catar uns cacos de lenha para atiçar o fogo do fogão, etc.), é tido como algo muito normal ou, mais do que isso, algo positivo, sadio, educativo. Assim que, na época, escutei em muitos lares caboclos da região o discurso de mães e pais indignados com o teor da tal campanha. "Então quem der um tapa agora em criança corre o risco de ir para a cadeia? Se não são os pais, quem vai dar rumo à vida dos filhos nesse mundo louco em que vivemos? Vou ser denunciado à polícia porque coloco minha menina para trabalhar na cozinha?" Eram as questões que eu mais ouvia. Tentava esclarecer: "Esperem, não é bem assim, o problema está na exploração econômica e no maltrato, como acontece em algumas carvoeiras, vocês sabem..." Alguns, eu convencia, com base nesse exemplo próximo, outros, os mais ressentidos, nem com isso.
Seja como for, o fato é interessante, pois demonstra como uma atitude louvável dos órgãos governamentais como esta, de contribuir para o combate à exploração do trabalho infantil, pode-se tornar um engano, um mal entendido, no seio dessas comunidades tradicionais. O equívoco, no caso, foi criado, a meu ver, por uma propaganda mal pensada para a região, em especial, talvez porque a mensagem seja genérica e condenatória demais, o que à primeira vista desperta mais temor ou revolta do que reflexão. Seja como for, é o exemplo de uma campanha midiática que se provou incapaz de se adaptar à diversidade da realidade de vida existente nesses lugares remotos.
Conclusão: toda ação de proteção ou desenvolvimento social, por melhor intencionada que seja (e nem todas são), precisaria partir da escuta, ampla e profunda, do chamado "público alvo" ou, em outras palavras, deveria requerer, sempre, um prévio, extenso e detalhado estudo antropológico de campo, condição indispensável para que se torne minimamente eficaz em termos de ampliar horizontes, aperfeiçoar as instituições, promover o bem estar das pessoas, seja o que for.
Infelizmente, nesse campo, no Brasil, todo dia vemos como se gastam as verbas escassas com iniciativas surdas que produzem, fatalmente, resultados pífios. Não é de se espantar: antes de se agir, escuta-se, pesquisa-se muito pouco.
Dá pra sentir o calor do forno caboclo e da acolhida afetuosa dessa valorosa gente sertaneja!
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