O GESTO E A PALAVRA

O primeiro livro que quero apresentar para vocês é esse da foto abaixo: Le Geste et la Parole, do francês André Leroi-Gourhan. Publicado já faz muitas décadas, algumas das teses expostas no livro estão ultrapassadas, mas acredito que a linha mestra continua válida.


Não vou entrar em detalhes da teoria desenvolvida em O Gesto e a Palavra, mas o tema principal tem a ver com o modo como a faculdade de manipular o mundo, presente em muitos animais, evolui dos peixes para os primeiros anfíbios e mais tarde se aperfeiçoa entre répteis e mamíferos até chegar aos símios e aos humanos.

Não vou entrar em detalhes da teoria, cada um de nós pode comprová-la até pelo conhecimento comum que todos temos dos animais domésticos, é o bastante. 

Mas, para felicidade geral da nação, hoje muitas pessoas têm a sorte única, jamais provada em toda a história da humanidade, de acessar a Biblioteca de Babel, também conhecida como Youtube, que contém todas as línguas e formas de imaginação visual no que elas criam de pior e de melhor nesse mundo. O importante é estar disponível, cada um escolhe o que lhe atrai e se tem acesso livre ao wifi, o fará de graça e pela graça de Deus. 

A lontra por exemplo é um bicho danado de inteligente. Manipula com extrema habilidade. Mergulha fundo e vasculha o fundo do mar à cata de ouriços, ostras, mexilhões. Quando captura algum desses petiscos complicados, aproveita também para pegar duas pedras e levar tudo à superfície. Daí passa a nadar de costas. Com a bigorna no peito e um martelo nas mãos, agora tem o que precisa para quebrar a carapaça e comer a meleca das entranhas. Trabalho rápido e eficiente. Delícia! 

Os elefantes manuseiam com fineza usando a tromba, instrumento multiuso, capaz de alçar um tronco de cem quilos com a mesma serenidade com que apanha uma simples laranja e joga goela abaixo utilizando um pseudo dedo que possui na ponta. 

Podemos ver as habilidades das lontras a partir de 9:25 e dos elefantes a partir de 35:50 minutos do documentário do link abaixo e a partir de 4:00 minutos também constatamos que pequenos macacos da Tailândia são capazes de usar diferentes utensílios de pedra para diferentes propósitos:

https://youtu.be/estV018_RuE

Os gatos mexem em tudo, quem nunca viu: desenrolam papel higiênico, abrem portas num só pulo e golpeiam passarinhos com uma pancada precisa na cabeça de modo a deixá-los tontos e à mercê dos filhotes. Serve de treino e diversão. 

Os ratos também são animais muito curiosos, hábeis com as mãos e também muito velhacos. Reviram latas de lixo, mordiscam o alimento que encontram e esperam um tempinho antes de comer o restante para saber se está envenenado.

Os primeiros seres humanos se desenvolveram a partir dos símios justamente porque essa faculdade de manipular, testar, pensar, refletir as coisas do mundo (terra, água, gelo, pedra, osso, madeira, raiz, fibra, folhas, frutos) já estava extremamente desenvolvida entre os grandes macacos.

Chimpanzés pegam um graveto, passam na língua, espalhando a saliva pegajosa, então metem num buraco de madeira podre, os cupins grudam na vareta, o espertalhão puxa tudo pra fora e faz seu pequeno banquete, rindo entre dentes. Também dobram galhos de árvore e fazem verdadeiros ninhos onde dormem, camas seguras e confortáveis. Tudo isso pode ser visto no link abaixo, entre 29:20 e 33:20 minutos aproximadamente:

https://youtu.be/0N0Y8tH2tyA

O modo diverso de usar ferramentas idênticas por diferentes grupos de chimpanzés é destacado a partir dos 16:00 minutos desse outro vídeo:

https://youtu.be/0N0Y8tH2tyA

O documentário do próximo link mostra outra cena impressionante mais ou menos entre 30:32 e 32:50 minutos. 


Nesse caso, as câmeras acompanham um bandinho de macacos prego, muito comuns por toda a América tropical. São famosos pela esperteza e se adaptam aos mais diversos ambientes naturais: caatinga, cerrado, zonas de floresta. Abaixo umas fotos que fiz desses malandros no sítio do amigo Luc Pereira, no sul de Minas.



Vamos ao vídeo ver do que são capazes. Derrubam de pequenas palmeiras um certo coquinho verde que sabem, de antemão, que levará muitos dias para amadurecer. Para esse animalzinho de cinco quilos, trata-se de uma sensacional capacidade de previsão, pensem bem. Mas isso não é tudo. Quando a fruta está no ponto, usa, como a lontra, uma pedra chata como base e outra como marreta para abrir as castanhas, após arrancar a casca, amolecida pelo tempo, com os dentes fortes que tem. Vemos que a bigorna já ganhou até marcas culturais, se é que podemos falar assim, pequenos baixos relevos arredondados que resultaram da prolongada atividade comunitária de martelar sobre a noz dura. Não é tarefa fácil, como vimos entre os chimpanzés, os jovens vão treinando até que aprendem, tentativa e erro, exige muita prática. 

Pois bem, todo mundo pretende que os humanos são animais racionais para diferenciá-los dos outros, que não possuem o poder da mente, o raciocínio, a razão. Há duzentos anos os brancos cristãos aplicavam esse mesmo raciocínio para o caso dos ameríndios e escravos africanos. Santa ignorância! Eu e muitos outros pensamos diferente, por razões muito óbvias. O macaco prego, como todo animal inteligente que busca sobreviver, faz ciência, inclusive essa ciência sofisticada que prevê os acontecimentos com muito tempo de antecedência, dias contados para o coco amadurecer e a casca ficar mole, por exemplo. Então nós e os chimpanzés, os macacos pregos, as lontras e os elefantes temos em comum a racionalidade, a capacidade de lidar com as coisas do mundo de modo inteligente, logo, nós somos todos seres racionais, pronto!

Justamente, o que nos diferencia dos demais animais, para o bem e para o mau, é a irracionalidade, a capacidade de fazer algo não conforme a razão impositiva da sobrevivência, mas pura e simplesmente para o deleite, a capacidade de criar fantasmas, inutilidades, a capacidade de olhar para uma concha na praia e ver nela mais do que uma concha apenas, até mais do que uma possível lâmina, se afiada, a capacidade de ver nessa concha um objeto belo em essência que pode servir muito bem para ser inserido no lóbulo da orelha pelo prazer estético e pela capacidade que esse objeto tem de comunicar uma mensagem, dizer algo a respeito da pessoa que o transporta. 

O documentário do próximo link deixa claro como se deu esta transformação.

https://youtu.be/bLrlDi5Uo5M

Portanto, primeiro veio o homo faber e só depois o homo sapiens, mas os grandes macacos também são faber, fabricam instrumentos, e também são sapiens, manipulam o mundo com inteligência, não apenas respondendo a estímulos mas com poder de pré-visão, de antecipação dos fatos. Então seria mais apropriado chamar nossa espécie, para diferenciá-la das outras, de homo ludens, homem artista, homem brincalhão. 

A necessidade de manipular melhor, de forma mais detida, é que induz a vantagem da postura ereta, Gourhan atenta para o fato de que os babuínos e outros primatas já trabalham muito com as mãos livres na postura sentada. O protótipo do ato inteligente é esse, a capacidade de ficar ereto e trazer cada coisa do mundo para o campo frontal da consciência com tranqüilidade, com tempo para contemplá-la, manuseá-la e recriá-la.

A mandíbula forte e os caninos enormes do chimpanzé e do gorila são ferramentas corporais que ajudam a mão a decompor a comida, mas bastou ao hominídeo usar a pedra lascada para partir e quebrar ou retalhar outras matérias, bastou esse pequeno detalhe para a mandíbula proeminente e vigorosa deixar de ser necessária, pois tudo passa a ser cortado, despedaçado, moído, com as mãos usando ferramentas substituíveis e diversificadas. Assim, com o passar dos milênios, a face dos primeiros humanos se encurta, os dentes diminuem e a língua fica mais sutil, além do que a postura ereta muda por completa a disposição da laringe a ponto do conjunto ser capaz de emitir sons articulados e de valor simbólico, ou seja, palavras. 

Assim fica clara a escolha do título do livro que estamos examinando, O Gesto e a Palavra. O autor procura demonstrar como a habilidade de falar, de usar símbolos sonoros, só passou a existir, um dia, em virtude da lenta evolução, em nossa longa linhagem animal, da faculdade de manipular as coisas do mundo e produzir ferramentas.

Quem quiser se aprofundar, está aí a dica do livro, que embora técnico não é dos mais difíceis. 

Mas minha intenção com esse esse texto extenso e chato é introduzir a importância da função artesanal em nossas vidas, sobretudo num momento da história em que essa função se encontra esquecida, subestimada ou mesmo desprezada. Como se desenvolveu a função artesanal? Qual a sua importância no processo de hominização, ou seja, de transformação do macaco em homem? Qual a sua importância para a saúde espiritual da humanidade? Como ela ainda está presente entre índios e camponeses e porque vai desaparecendo entre nós, burgueses, habitantes do burgo, da cidade? Como podemos observá-la atualmente no sertão caboclo mineiro? 

É o que debateremos nas próximas postagens, do modo habitual, mais lúdico, tecendo textos e imagens do Vale do Jequitinhonha.

Para terminar, embora não se relacione mais diretamente ao tema desse post, quero recomendar um último documentário que retrata a vida de um grande grupo de chimpanzés, estudado há mais de vinte e cinco anos pelos protagonistas do vídeo. Trata de política, luta por comando, estratégia de caça, tomada de território, vingança, crueldade, mas também de habilidades e humores muito pessoais, aliança, amizade prolongada e até compaixão:

https://youtu.be/0N0Y8tH2tyA






Comentários

Postagens mais visitadas