DONA VITALINA, CONHECIDA COMO TITIA, JOÃO, E O ESPETÁCULO DE NOSSO ENCONTRO ANUAL
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Tenho que remexer meus registros, mas acredito que visito Titia há uns quinze anos. Sempre que possível, conforme exigências diversas do trabalho de campo, deixo para vê-la no segundo dia do ano, quando faz aniversário. Na foto desse último três de janeiro ela aparece apreciando uma outra que eu trouxe, tirada no ano anterior, conforme nosso antigo costume.
Nasceu em mil novecentos e dez, foi ver um automóvel, um Jeep, trinta anos depois, no início da segunda guerra mundial e saiu, com os companheiros, correndo para o mato, a indiarada.
Em nossa última entrevista, completava cento e oito aninhos muitíssimo bem cumpridos. Sua fortaleza e lucidez são tamanhas que é a primeira vez, em todo esse tempo, que me despeço de minha velha amiga com a sensação de que não a encontraria no próximo verão. Agora está presa à cama e as crises de asma, de que sofreu toda uma vida e nem por isso venceram a guerra centenária, parece que vieram covardemente acertar o golpe fatal na última batalha. Vejo pela testa franzida e expressão tensa que está vivendo à espera do próximo assalto do inimigo e, assim, não tem mais forças para segurar máscaras sociais, revelando uma ansiedade que nunca, antes, deixou transparecer, mulher de um tempo e de um lugar sertanejos duros onde sempre foi vergonhoso revelar para visita as pequenas penas de que a vida mesma é feita, afinal.
Pois se é questão de pena, dá para imaginar o meu penar quando dou a partida no carro, gesto banal que repito há tantos anos, e olho para João, filho caçula, anjo guardião, sozinho, me acenando da varanda.
Eu e João conversamos mais pouco dessa vez, ficamos mei’ que paralisados, melancólicos e estupefatos diante da presença tão frágil tão forte daquela que tanto amamos. Já faz uns cinco anos que, após adentrar a casa, pego formal a mão da dama para cumprimentar e, no momento do toque, sinto profundamente como a alma está pouco a pouco se esvaindo e o corpo ficando mais e mais fugidio, etéreo, quase intangível, de um modo que desconfio que falta pouco para que Titia, a exemplo de Buda, se alce aos céus, evanesça-se, evapore-se, com pureza e simplicidade.
Não consegue mais comer a carne fibrosa de boi ou porco e sequer a de frango, então a família sai em busca do peixe de pequenos criadores locais que nem sabia que pudessem existir, pois a água aqui é escassa, na verdade, umas tilápias raquíticas nada apetitosas. Ela se esforça, puxando o ar com dificuldade, mas segue firme, a espinha não dobra, que ninguém venh’ ajudar, e os olhos enevoados e as mãos trêmulas não impedem que, como sempre, faça o que deve ser feito, como vemos abaixo nos instantâneos que fiz, em que aparece separando cirurgicamente os naquinhos de carne para em seguida depositar sobre a banqueta, um a um, os minúsculos espinhos, chinesa com milênios de prática do Tai Chi Chuan.
Não não desfalece, ainda preserva suas armas: resistência, chão do sertão, pobreza, trabalho pesado, sem falar na paciência, precisão e sutileza forjadas na prática cotidiana das diversas artes, pois foi roceira, parteira, cozinheira e artesã do barro de mão cheia uma vida inteira.
João aprendeu, com o tempo, pois é muito perspicaz, a mirar sua mãe com meus olhos de amor estrangeiro e se compraz com isso, percebo, adora roubar minha fonte de amor renovada, e o que é incrível é que esse roubo me deixa assaz feliz porque o deixa feliz e não me priva de nada. Por isso talvez nesse dia tenhamos ficado os dois silenciados pela áurea de nosso triângulo amoroso, absolutamente sem palavras.
Não costuma ser assim não, minha visita anual sempre foi uma oportunidade de ouro para todos e dá no que falar. A gente aguarda um ano inteiro para se reencontrar ao velho e bom modo caboclo, fazer a roda do café, devorar uns queijos e quitandas fumegantes essenciais, ir animando a festa (sim, a festa!) até pegar fogo, até a prosa ficar causuística, literária, calorosa e bem humorada, porque o café dá uma forcinha mas a droga mais potente é com certeza nosso entrevero em si, a alma soma humana de Naldo, João e Vitalina.
Não costuma ser assim não, minha visita anual sempre foi uma oportunidade de ouro para todos e dá no que falar. A gente aguarda um ano inteiro para se reencontrar ao velho e bom modo caboclo, fazer a roda do café, devorar uns queijos e quitandas fumegantes essenciais, ir animando a festa (sim, a festa!) até pegar fogo, até a prosa ficar causuística, literária, calorosa e bem humorada, porque o café dá uma forcinha mas a droga mais potente é com certeza nosso entrevero em si, a alma soma humana de Naldo, João e Vitalina.
O povoado dito do Campo Alegre se aninha na espiga do morro, a meio caminho entre o rio e os altos chapadões. Preciso atravessá-lo de alto a baixo, conforme o ritual, e o colchete de arame farpado que se abre sobre a última casa da baixada dá no terreiro de Titia e João, à sombra de uma aroeira alta e frondosa onde sempre estaciono o carro com plena satisfação.
Muitas vezes, os olhos caninos do cabôcu véi me avistam desde longe. Logo a dúvida se esfumaça: “é êl’”. Iluminamo-nos todos, nesse momento mágico. Sussurra algo abaixo pra mãe pequenina. São tão sintonizados que o visitante incauto juraria que se comunicam um com outra telepaticamente.
A casinhola de adobe nos resguarda do calor e tem início ali mais um capítulo, sempre igual, sempre muito diverso, da longa história que espero poder aos poucos contar aqui nestas postagens, nestas cartas.
O silêncio é como o ares do lugar, sempre tão puros, tão paz, lá fora, a rua que é uma estrada e vive vazia, os céus limpíssimos, os bosques rudes, ancestrais, que nos envolvem, o mundo torna-se uma concha e tem início o espetáculo.
O silêncio é como o ares do lugar, sempre tão puros, tão paz, lá fora, a rua que é uma estrada e vive vazia, os céus limpíssimos, os bosques rudes, ancestrais, que nos envolvem, o mundo torna-se uma concha e tem início o espetáculo.
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