AS PANELEIRAS, AS BONEQUEIRAS E UMA RECEITA: COMO PINTAR VITRAIS ORGÂNICOS EM TNT
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Durante séculos, a arte da cerâmica rústica, suas panelas, cuscuzeiras, bules, buiões, cubas, pratos, potes de toda sorte, abasteceu a cozinha pobre de índios e caboclos do sertão brasileiro, criando uma cultura de objetos e um modo de fazer razoavelmente padronizados pelo imenso território.
Em Minas, no vale do Jequitinhonha, fronteira da floresta chuvosa e do semi-árido nordestino, a arte da paneleira prevaleceu até pelo menos a década de mil e novecentos e setenta, e ainda subsiste nos últimos rincões, onde as tenho registrado, ano após ano, desde mil e novecentos e noventa e seis.
Nesses sertões, em especial, algumas comunidades produtoras de utilitários de argila não se extinguiram, como aconteceu à maioria delas, ao longo das últimas décadas. Umas poucas remanescentes e muitas descendentes das primeiras paneleiras, de que estarei, nos próximos posts, fazendo a crônica anacrônica, ainda subsistem, reinventando o antigo ofício, inutilitarizando o utensílio tradicional ao torna-lo um bibelô ou peça decorativa, ou passando a criar e produzir uma estatuária de espírito e formato variadíssimo, muito digno de ser estudada.
Quando os objetos de ferro, aço e alumínio deixaram de ser raros e caros nessas lonjuras sertanejas e começaram a inundar o mercado do Jequitinhonha, algumas paneleiras que há muito já arriscavam fazer bonecas rudes para o brinquedo de suas filhas e netas ou então pequenos presépios de enfeite para as festas de fim de ano, aprendem a conviver com a nova e poderosa concorrência, a partir dos anos setenta, dando vulto e inusitada direção à produção decorativa, até então marginal, e nessa passagem são forçadas a colocar a mente para funcionar mó de revolucionar o velho ofício. Não se deixam abalar. Buscam em minas diversas novas qualidades de barro, mais puras, de maior plasticidade, mais apropriadas às finezas da escultura, além de toda uma gama interessante de corantes naturais que foi preciso selecionar dentre tantos, na natureza, e aprender a beneficiar e testar a queima em função do propósito de decoração. Desenvolvem, nesse processo, toda uma manha de depuração e aplicação dos “oleios” ou “águas de barro”, tinturas naturais a que os ceramistas urbanos chamam de “engobes”. Além disso, aos poucos, obrigam-se a alterar o formato dos fornos e o tempo das queimas considerando as transformações químicas que o fogo opera sobre as tinturas de terra, como adiante, pouco a pouco, veremos.
Acompanho o desenvolvimento local da arte cerâmica há mais de vinte anos, registrando em notas, fotos e vídeos as mudanças econômicas, comerciais, sociais, técnicas e plásticas envolvidas no processo. Com o tempo, espero ter a chance de revelar aqui os detalhes da verdadeira guinada técnico-artística-organizacional feita, nas últimas décadas, por essa gente minha mineira, camponesa pobre, bela, vigorosa, altiva, ativa, criativa.
Como eu mesmo me tornei ceramista amador e ademais tenho um sitiozinho afundado no mato onde realizo minhas experiências no campo da arte, costumo trazer, todo ano, de diversas comunidades oleiras e também dos fabulosos escultores de todo o Jequitinhonha de que tratarei aqui, nas próximas postagens, uns tantos bolos dos mais distintos barros das paneleiras e das bonequeiras, puríssimos, todos, que se encontram por toda parte e de toda qualidade nessas terras minerais, dá-se que estamos munidos de material mais do que suficiente e oxalá possamos brincar juntos, até cansar, por muito tempo, em nossos futuros encontros semanais.
Para começar, trouxe para vocês, queridos leitores, ouvintes, a receita de um modo de fazer que apenas comecei a desenvolver, mas que, acredito, encerra grandes possibilidades.
Trata-se da pintura sobre TNT.
Não, não estou falando do famoso explosivo das bananas de dinamite, o chamado trinitotolueno. Tampouco daquele energético ou bomba de cafeína que atualmente se vende na forma de cápsulas ou bebida gaseificada em bares, restaurantes e até farmácias, nada disso, não.
Estou me referindo ao TNT “tecido não trançado”, como me fez a gentileza de explicar o japonês da loja onde adquiri o primeiro lote do material, uns vinte metros por um e meio de pano, mais que bastante para inaugurar meu novo campo de testes.
Há um ano, quando mudei para novo endereço, mandei instalar na sacadinha do quarto onde durmo uma rede de nylon para evitar acidentes com Chifu e Titia, os gatos. Agora deu a luz de comprar o TNT e o costurar sobre a rede, de modo a formar um grande painel branco e semi-transparente.
O tal tecido não trançado é assim chamado porque, óbvio, não se faz do modo convencional, enredando os fios. Se a gente molha ele dá pra ver, a trama se revela ao olho que atenta e à mão que experimenta. A indústria produz, primeiro, uma tela de quadrinhos, minúscula, de fios finíssimos, formando uma espécie de pixel, e depois espreme e funde sobre a rede formada uma pasta de lã do mesmo material, provavelmente sintético, mas não o bastante para que perca toda a transparência. Era o que eu precisava, além de que a matéria prima é das mais baratas entre os tecidos.
A Wikipédia tem uma definição interessante da coisa: “é produzido a partir de fibras desorientadas”, olha que interessante, “fibras desorientadas”, ou seja, aspas, “aglomeradas e fixadas, não passando pelos processos têxteis mais comuns, que são fiação, tecelagem e malharia”.
Pois bem, estiquei a tela branca sobre a rede de cordas de nylon e depois recortei pequenos quadrados do que sobrou do TNT. Um dia aqui, outro lá, vou pitando os quadritos com tintas minerais industrializadas. Quando estão secos, é só costurar sobre o painel, delícias de fim de semana.
Sou pelo compartilhar e por isso vou dividir com vocês tudo isso, o que acham, não é bom demais?
Primeiro, pegamos os corantes de barro, de tons terrosos os mais diversificados que os há, ocre-avermelhados, cinzentos, amarelados, alaranjados, roxo-azulados, dourados, prateados. Depois os misturamos à cola comum, e por fim aplicamos a pasta resultante sobre o recorte de tecido não trançado. A massa se fixará na malha branca e, após a secagem, as tinturas serão impermeáveis à chuva, que vai molhar bastante toda a armação nos meses de verão. Ao menos, é o que espero, acidentes podem acontecer, pelo que entrego tudo ao que Marguerite Yourcenar titulou: “O Tempo esse Grande Escultor”.
O resultado, por enquanto, é o que vemos nas fotos:



A simples e calma sobreposição das duas matérias, uma natural, o corante de barro, outra industrial, a cola tenaz, resulta na formação de um ovo ou um olho, técnica ou arte por si só, conforme o ponto de vista com que observamos o fenômeno. Em seguida, misturamos a clara escura e a gema clara, formando a pasta que deve ser como que prensada com pincel largo sobre os pelos do TNT, o que os rebaixa, uniformiza, e reduz um pouco a transparência do “tecido”. A pasta de barro e cola recobre a pasta de fibras, tudo se funde pragmática e lindamente, é isso, muito bom.
Vejam por si mesmos, no vídeo:
A massa, uma vez seca e solidificada, fica pronta para que apliquemos em cima o desenho divertido que nosso corpo criativo desejar inventar.
Não precisamos ser Vermeer ou Van Gogh, basta mirar como Miró, brincar com gosto de liberdade, sem pressa e sem maior pretensão, o mundo das formas simples é infinito, qualquer um pode encarar como criança esse singelo e prazeroso desafio, essa é uma crença que sempre viveu em mim, mas que foi fortalecida por minhas expedições anuais ao sertão, onde testemunhei incontáveis vezes o modo como o experimento prático-plástico acontece livre e espontaneamente e não só, claro, na arte do barro.
Nisso eu creio, leitores, ouvintes, demais, que tudo não passa de uma brincadeira, alegre, simples, acessível, tenho horror ao endeusamento, à mistificação da arte e do artista individual que é típica da cultura moderna, de mecanismos elitistas que apartam o desfrute, o aprendizado e o fazer artístico do comum dos mortais.
Saindo de São Paulo, Mário de Andrade também visitou, há quase um século, o Brasil profundo, entendeu o modo social com que se cria a chamada “arte popular” e expressou esse ideal da arte e do artista desmistificados.
Falaremos de Mário e deste ideal outras vezes aqui, falaremos do modo como os figureiros, os escultores em barro e madeira, e também os poetas iletrados, os cantadores foliões do sertão mineiro encaram o processo criativo: do coletivo para o coletivo.
É com o mesmo espírito que iniciamos essa série de compartilhamentos...
Enquanto isso, o resultado que está aparecendo em meu painel é deslumbrante, vão me desculpar o orgulho besta. Deu tudo certo, como eu esperava. De dia, na medida em que o sol gira no horizonte, iluminando a sacada, o visitante pode apreciar a coisa como se fosse um vitral orgânico, ondulante, pulsante. Durante a noite, quando cessa a ventania, com a luz artificial projetada a partir do quarto, desfaz-se a transparência e formam-se quadros de estampas mais definidas, onde se ressalta, não mais o brilho e o movimento, mas o concreto da cor.


Fotos tiradas do vitral atravessado por "luz fria", de céus nublados.

Fotos tiradas do vitral atravessado por sol forte.

Fotos gerais do vitral sob luz natural, de dia, e artificial, à noite.
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